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23/04/2017

Músicas Inclinadas

Albert Schröder - Conversa Musical (1885)
Heraldo Palmeira
Nem passou tanto tempo assim daquele meu encontro com Beto no aeroporto do Rio, e recebi mensagem repleta de tristeza. Estava enfrentando suas primeiras dificuldades na relação com Júlia. Águas turvas.
Ao que parecia, o navegador, marinheiro com amor em cada porto, não estava se relacionando bem com a terra firme do porto seguro. Aquele ar radiante de quem, depois de tantos anos, estava vivendo uma relação clara, limpa, monogâmica e deslumbrante – palavras dele – parecia ter sucumbido às (primeiras) nuvens que de vez em quando fecham o céu e fazem inverno em qualquer relacionamento.
Li e reli o que ele me escreveu, tentando encontrar pistas. Garantiu que não havia mais outras namoradas, namoradas ao mesmo tempo, como nos velhos tempos. Mas estava claro que o plano inclinara perigosamente, ameaçando desabar.
Fechei minha porta, entrei no elevador e dei de cara com uma linda mulher chorando delicadamente. “Dor de amor”, pensei. Baixei a cabeça para não haver constrangimento. Quando a porta abriu na garagem, me enchi de coragem para um “Vai dar tudo certo, acredite!”. Ela respondeu com um leve aceno de mão, um sorriso triste, de endoidecer, e desapareceu entre os carros.
Sentei diante do volante; olhei meu rosto no retrovisor pensando que aquela frase também me servia por inteiro. Ainda bem que o cara grisalho que me duplicava estava sereno, dando certeza de que eu contava com ele para tudo, o tempo todo.
Liguei o carro e o locutor inundou o ambiente com as péssimas notícias de sempre. Àquela hora da noite o trânsito já estava ameno, como deveriam ser amenas as noites todas.
Segui devagar, com as janelas abertas. Preferi o sereno da noite à falta de sereno do ar condicionado. Pensei em Beto e Júlia, no que poderia dizer em resposta. Moska calou a trombeta das desgraças do locutor com frases destroçando o alvo.
Eu quero saber a verdade
E você se preocupa em não se machucar
Eu corro todos os riscos,
Você diz que não tem mais vontade
Eu me ofereço inteiro
E você se satisfaz com metade
Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada
Quando se parte rumo ao nada
Pensei que meu amigo podia ter perdido a luz do farol, a mulher que surgiu porto seguro, e já não parecia pisar em terra firme. Pensei que ela quisesse ter certeza de que não havia mais navegação em águas turvas, rotas ocasionais, noites escuras demais. Zizi Possi, a fada-madrinha de todos os veludos, flutuou alguns tons acima.
Eu quero cada gesto, cada palavra
Cada segundo da tua atenção
Faça isso por mim
Leve a dor pra longe daqui
Estou cansada de ouvir
Que eu só sei amar errado
Estou cansada de me dividir
O que é certo no amor
Quem é que vai dizer
O que falar, calar, querer
Eu quero absurdos, quero amor sem fim
Eu quero te dizer que eu só sei amar assim
Ainda faltava um pouco para eu chegar em casa. Não queria aquela tristeza tanta me acompanhando. Dobrei a esquina e parei num sinal vermelho logo adiante. Um casal discutia com certa veemência na calçada de um bar. Ela falava mais, ele aparentava ouvir a dor. Zélia parecia traduzir o que diziam lá fora.
O que você quer
O que você sabe
Não é fácil pra mim
Meu fogo também me arde
Às vezes me vejo tão triste
Onde você vai
Não é tão simples assim
Porque às vezes meu coração não responde,
só se esconde e dói
Me diga como você pode viver indo embora,
sem se despedaçar
Por favor me diga agora
Ou será que você nem quer perceber
Talvez você seja feliz sem saber
Por favor não vá ainda, espera anoitecer
A noite é linda, me espera adormecer
Não vá ainda, não, não vá ainda
Percebi que desabei quando enxerguei o sinal verde embaçado, como se tivesse chovido. Eu estava sofrendo por aquele amor ferido que, mesmo sem ser meu, era dos meus.
Cheguei em casa murcho. Joguei sobre a mesa as chaves do carro e as coisas que a gente sempre carrega. Comi alguma coisa ligeira e sentei.
A tela do computador estava em branco, o cursor piscando impaciente, me cobrando o que dizer ao meu amigo. Deitado ao lado, na verdade esparramado sobre os meus pés, o staffordshire bull terrier “professor Bart”, uma das criaturas mais brandas e carinhosas que conheço na vida – apesar de a raça ser conhecida por coragem, destemor, energia, força descomunal. 
Bart esparramado (fotografia Heraldo Palmeira)
De repente, a programação do canal de música da tevê me trouxe Ivan e juntos resolvemos a questão da minha angustiante falta de palavras.
Querido Beto,
Esse amor é tão forte que quase arrasta a gente junto, acredite! Vocês chegaram um para o outro com hora marcada, no tempo exato, num tempo em que não temos mais tanto tempo porque já não somos tão jovens – como diz um amigo querido que vive longe, “temos mais passado do que futuro”.
Você me contou do encontro quando ainda nem sabia se a rua tinha saída, mas seria capaz de abrir uma! Agora, quase desistindo, me fala dos primeiros dissabores. Quem vive só de sabores? Qual a receita que não desanda? Ainda mais o que não tem receita – lembra do Milton à flor da pele?
Eu não quero me intrometer; apenas estou pronto para matar vocês dois. Por isso, vou usar as palavras do nosso Ivan, que estou ouvindo cantadas. Pode mostrar para Júlia.
“Vieste na hora exata
Com ares de festa e luas de prata
Vieste com encantos, vieste
Com beijos silvestres colhidos pra mim
Vieste com a natureza
Com as mãos camponesas plantadas em mim
Vieste à hora e a tempo
Soltando meus barcos e velas ao vento
Vieste me dando alento
Me olhando por dentro
Velando por mim
Vieste de olhos fechados
Num dia marcado
Sagrado pra mim
Vieste com a cara e a coragem
Com malas, viagens, pra dentro de mim
Meu amor”
Quer saber mesmo? Deixe barcos e velas soltos ao vento, ao longe. Insista com a terra firme, mesmo a gente sabendo que nem sempre é fácil andar nela. Fazer o quê?
Dê um beijo na Júlia, diga que estou torcendo!
Beijos. Juízos!
A chuva fina seguiu molhando o vidro da janela lá fora. E as lentes dos meus óculos cá dentro. Bart seguia dormindo o sono dos cães justos, enrolado nos meus pés. Eu torcia para continuar testemunha cúmplice daquela felicidade que vi escancarada no rosto do meu amigo, no encontro do aeroporto.
Beto e Júlia são bons de cozinha, grandes anfitriões. É delicado o momento de decidir o cardápio, ele exímio nas carnes vermelhas e caças, ela nos pescados e massas. Sorte de quem frequenta a casa ampla onde nunca falta calor e chama.
Num sábado de peixe cheguei cedo, estava entregue aos queijos e vinhos e pude viver “o processo” de decisão para apresentação do prato. Quando as labaredas ameaçaram sair de baixo das panelas me assumi mediador, salvo por Beto Guedes tocando num canto da sala.
– Moqueca. E façam o favor de prestar atenção na música.
Não sei andar sozinho
Por essas ruas
Sei do perigo que nos rodeia
Pelos caminhos
Quero o abrigo do teu abraço, que me incendeia
Não há sinal de cais
Mas tudo me acalma no seu olhar
Você parece comigo
Nenhum senhor te acompanha
Você também se dá um beijo dá abrigo
Que beijo de lascar foi aquele, meu bom Deus!
A noite já ia alta – como “altos” estávamos todos –, beirando a madrugada, quando fui embora. Saí devagarinho de um dia de felicidade, sem me despedir. Pra quê? Não ousaria cortar os dois, deitados no sofá, envoltos nas sombras ternas, a voz de Simone baixinho. Águas claras.
Música, música
Companheira do quarto dos rapazes
Entre revistas e fumaça
Confidente do quarto das meninas
Entre calcinhas e sandálias
Farol na cerração dos grandes medos
A força que levanta os bailarinos
Feroz como a ira do Irã
Ou mansa como o último carinho
Quando já chega a manhã
Música, música
Já se vão alguns anos da mensagem de Beto se queixando das enxurradas. É sempre bom estar com eles, em dias enfeitados com aqueles pratos especiais! Ouvindo todas as músicas, planas ou inclinadas. Em águas turvas ou claras. Segue o curso do rio, de terra firme e beira de cais.

(*) Rebatizei meus amigos como Beto e Júlia para deixá-los incógnitos em seus desencontros apaixonados e suas turras de namorados sem forças para resistir. Chegaram às diferenças do amor, que jamais serão as últimas.
(**) Trechos de A seta e o alvo (Paulinho Moska) / Eu só sei amar assim (Herbert Vianna) / Não vá ainda (Christiaan Oyens-Zélia Duncan) / Vieste (Ivan Lins - Vítor Martins) / Cruzada (Tavinho Moura-Márcio Borges) / Música, música (Sueli Costa-Abel Silva).


15 comentários:

  1. Moacir Pimentel23/04/2017, 11:18

    Mestre Heraldo,
    Êta lasqueira! É hoje que a caríssima Donana vai ter certeza que, por aqui, os "escrevinhadores" são românticos.(rsrs) Às vezes me refiro à minha mulher como "a minha dona". Faço isso "na boa", como diz a juventude. Pela estrada afora há que saber que se pode ir e voltar sem sustos e que casa será sempre aquele lugar onde ela nos abre a porta e sorri. Sabendo disso , de que temos um lugar no mundo e que nele sempre seremos cuidados , então podemos cuidar . Dizem que gostar é só isso: querer e poder cuidar.
    Quanto mais eu vivo e envelheço e vejo mais e mais filmes, e leio mais e mais livros e escuto mais e mais canções, neles um momento , um parágrafo, um verso verdadeiros já está bom demais da minha conta.Eu já não mais preciso que o filme todo seja brilhante, que o livro tenha vinte e tantos capítulos de pura esperteza, que todas as estrofes rimem comigo. Uma pequena cena, um só diálogo convincente , um único verso manco de tanta beleza me bastam. É o caso da estrofe de uma musiquinha bobóide que me persegue.
    "Mãe do céu, roda gigante
    Carrossel de prata, noiva deslumbrada
    Enfermeira, freira, santa
    Mariposa branca e dona de mim
    Selo de nossa senhora
    Perdi meu cabelo num espelho assim
    Clara, cara, rara, dona de mim"
    É isso aí. É essa sensação de pertencimento que não pode faltar num compromisso para a vida e para que na caminhada sejam superadas as "léguas tiranas". O resto? A gente inventa!
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira23/04/2017, 14:33

      Caríssimo,
      O que é qualquer texto que eu consiga rabiscar diante de um comentário desse seu? Puro êxtase, como diria Roberto Frejat.

      Sim, há versos que paralisam, que a gente gostaria de ter escrito - lembro de Milton em "Certas Canções" derramando "Que perguntar carece, como não fui eu que fiz?".

      Estes me paralisam desde 1983, quando ouvi pela primeira vez aquele Caetano ainda cheio de frescor: "Você me deixa a rua deserta quando atravessa e não olha pra trás"! É nesse contexto que aparecem, arrebatadoras, as donas. Como negar esses já 34 anos?

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  2. Texto sensacional !

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  3. Olá Heraldo,
    Como adivinhou o Moacir, acho que são todos românticos ,esses escrevinhadores, do decano Domingos a você, o pet do grupo!
    Bem bonito o professor Bart.
    Tive um belo gato chamado às vezes de Bart, o nome mesmo era Bartolomeu.
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira23/04/2017, 22:35

      Ana,
      Depois de textos áridos e/ou ácidos em outros endereços, cansei. Agora quero apenas ser um repórter do que vejo/ouço nas minhas andanças. E quando cabe romantismo é bom demais - o decano Domingos está aí mesmo para nos garantir. Fui criado contemplando os sons, a escuridão, as estrelas e os luares do sertão. Não há como não ter um pé no romantismo.
      Bart (que é só Bart mesmo) é um espetáculo, companheiraço nestes dias de Rio de Janeiro de tantos prazeres emocionais para mim, revendo pessoas adoradas que construíram comigo grandes trechos da minha história.
      Até mais.

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  4. 1) Prosa e poesia completam-se no texto do Palmeira.

    2)Homem e mulher idem.

    3) "Minha Terra tem palmeiras onde canta o sabiá"

    4)Parabéns aos bons sentimentos !

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    1. Antonio,
      A poesia alheia que enche nosso cancioneiro me leva sempre a traçar paralelos com a vida real. Ainda mais quando podem ajudar a compreender bons sentimentos como o dos personagens.

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  5. Exceleeeeeeeeeeente!!!
    Mais uma vez cobro o livro.
    Forte abraço

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    1. Heraldo Palmeira24/04/2017, 17:50

      Obrigado. O livro é uma dívida que pretendo pagar o mais breve possível.

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  6. Wagner Monteiro25/04/2017, 08:25

    Sei que o best seller será questão de tempo!!
    Grande abraço, meu jovem!!!
    Wagner

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    1. Heraldo Palmeira25/04/2017, 16:53

      Valeu, seu "avuador". Abração.

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  7. Obrigado pela leitura, me fez bem. Tudo de melhor pra você, querido HP!

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    1. Heraldo Palmeira26/04/2017, 23:54

      Obrigado, meu caro, pela sua leitura e sua presença.

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  8. kkkkkk Amigo, não pude deixar de dar boas gargalhadas!!! Você tem o dom de nos transportar ... senti o ressonar do Bart, senti o deliciosa aroma da Moqueca!!! E o doce aroma do prazer macio de contribuir para que amigos continuem mais que amigos ... Parabéns de novo!

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    1. Heraldo Palmeira27/04/2017, 00:07

      Muito bom saber que você está por aí acompanhando as "viagens". Abraço.

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