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07/03/2015

A nossa Cantareira

Peço licença, hoje, para reproduzir aqui um artigo do Paulo André Barros Mendes, geógrafo e jornalista, publicado no Jornal Belvedere, sobre a Serra do Gandarela.
A Serra do Gandarela tem algumas das  mais importantes áreas de cangas e mata atlântica que ainda subsistem no Quadrilátero Aquífero/Ferrífero, e a Vale pretende destruí-las para implantar mais um gigantesco projeto de mineração em Minas Gerais.
Eu também estive, há algumas semanas, lá no alto da serra, levado por meu irmão Paulo Baptista, e assino embaixo de tudo o que o Paulo André escreveu.

Serra do Gandarela - Vista do mirante das nascentes do Córrego Maquiné (fotografia WBJ)
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Era mais um sábado quente de janeiro, e ainda pela manhã eu fugia para os quase 1.700 metros de altitude da Serra da Gandarela. Já completara um mês sem que uma mísera gota de chuva caísse do céu – simplesmente o verão mais seco registrado em Belo Horizonte.
Saímos da capital, eu e meu amigo Leandro Novais, cruzando a bacia do rio das Velhas em direção a Rio Acima. Na altura de Bela Fama paramos para observar como andava o rio. Logo desanimamos: havia pouca água. Pelas medições passavam por ali apenas 8.000 litros por segundo. Muito menos do que o normal. Pouco mais do que os 6.000 litros por segundo que a Copasa precisa retirar para o nosso abastecimento. Seguimos viagem e ganhamos o alto da Gandarela. Então, parado em um dos mirantes, eu apreciei lá embaixo a bacia do rio das Velhas, as serras que a rodeiam e as matas que ainda recobrem o seu fundo. É embaixo disso tudo que estão os aquíferos do alto Velhas: a nossa caixa d’água natural, a nossa represa da Cantareira.
A represa da Cantareira, em São Paulo, virou estrela de televisão. Porém a Cantareira de Belo Horizonte é invisível, subterrânea. Não é simples medir o seu nível, mas ela também está secando aos poucos – é o que mostra a pequena vazão das suas nascentes.
Então, para nossa surpresa, rapidamente o tempo mudou. Uma massa de nuvens carregadas trouxe um cenário familiar, mas que agora é também incomum.
Na mesma hora me lembrei: “Cheguei a Belo Horizonte com as grandes águas de 1921. Ia começar a chover de janeiro a março, só de raro o céu de chumbo se fendendo e o sol fazendo uma visita de horas, dias, no máximo semana, para, depois, o mundo soverter-se nos ciclones. (...) Chove, chove sem passar.” [Pedro Nava, Chão de Ferro, Ed. Companhia das Letras, 2012]
Então, privilegiados, observamos a maravilha das chuvas: a recarga dos aquíferos do Velhas, com a absorção da água pelos afloramentos de canga da Gandarela. A canga é como uma esponja, ela suga cada gota, e dali elas seguem para o aquífero.
É esse mecanismo que precisamos preservar a todo custo. É ele que enche a nossa Cantareira. Eu via as águas se infiltrando e pensava se elas chegariam ao Velhas, lá embaixo, agora mais um filete do que um rio. Que um dia foi navegável.
É claro que em 1921 elas chegavam. É quando se ouviam os gemidos dos caudais descendo os declives procurando o Arrudas, enchendo o rio das Velhas, o São Francisco. Abri alguns jornais que trazia comigo. Encontrei falas de muitas pessoas, todas preocupadas com essa situação.
Prefeitos? Pregam o uso racional.
Deputados? Se mostram indignados.
Executivos de mineradoras? Distribuem elegantes relatórios de sustentabilidade.
Técnicos? Afirmam que suas gigantes barragens de rejeitos, feitas de terra, são seguras.
Órgãos ambientais? Se dizem vigilantes e eficientes.
Empresários? Alegam seguir padrões internacionais.
Lia essas coisas imerso na névoa, me sentindo em um mundo da fantasia. Então, quando as nuvens subiram um pouco, eu pude observar de novo todo o alto Velhas. O mundo real.
O que eu via lá embaixo eram projetos de mineração que gastam mais água do que cidades inteiras, e ainda impedem a absorção das chuvas pelos aquíferos. Tudo aprovado com aplausos pelos governos, prefeitos inclusive. Em cenas irreais, eles desviam rios inteiros 24 horas por dia.
Olhei para a região das nascentes do Velhas: Mariana e Ouro Preto. Ali, a maior parte da água disponível já é usada para operações de extração e transporte de minério de ferro. Agora fizeram um aqueduto particular, que busca água em Santa Bárbara, a 50 km de distância.
Me voltei para Itabirito, observando a Estação Ecológica de Arêdes. Uma área de recarga de aquíferos, reduzida há poucos dias por uma decisão dos deputados estaduais.
Ainda em Itabirito: suas lideranças entregaram um volume de água equivalente ao consumo atual da cidade para uma fábrica de bebidas. Em um futuro próximo, quando a água faltar, a população lavará louças e roupas com refrigerantes?
Na mesma região, o relatório oficial sobre a ampliação de um condomínio declarou que não haverá interferência nas águas, “uma vez que o abastecimento será realizado por meio da concessionária local”. A concessionária trará água de avião, penso.
Ali perto planejam uma cidade inteira, mas dizem que não faltará água. E asseguram que a lagoa dos Ingleses – recentemente promovida a manancial de emergência de Belo Horizonte – não será prejudicada. Me recordei da Pampulha, e me senti enganado.
Buscando algum alívio me virei, olhando para o norte. Avistei a Serra do Curral. Então me lembrei dos planos, em andamento, para mais uma grande mina de ferro a céu aberto, desta vez na região do Taquaril. O problema é que eles estão pregando uma coisa e fazendo o seu oposto. Sempre, agora, todos os dias.
Pensei: as áreas de recarga dos aquíferos do Velhas não poderiam mais ser destruídas. E a água já armazenada não deveria ser bombeada de forma tão irresponsável. É o futuro nosso e o dos nossos filhos que está em jogo. Mexo de novo nos jornais, me distraio com as formações de canga, olho de novo a paisagem.
O que mais pensar? Nada. São todos uns farsantes.