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29/09/2019

A decepção

Desenho do Alpino


Francisco Bendl
Várias são as situações que nos decepcionam, que nos deixam tristes, que nos tiram o ânimo não só daquele dia como de muitos que ainda estão por surgir.
Refiro-me a um desses momentos ruins quando não somos compreendidos, quando não nos entendem, quando recebemos críticas infundadas e até mesmo injustas.
Por que as pessoas se arvoram na condição de julgadoras do comportamento alheio?
Por que uns e outros têm predileção por apontar nossos erros, enquanto possuem iguais defeitos?
Trata-se de uma tática para que não venham à tona suas falhas?
Ou é melhor criticar do que ser criticado?
A verdade é que a Internet, além de nos ter proporcionado a fantástica facilidade de comunicação, trouxe consigo a exigência de que devemos explicar muito bem o recado a ser deixado.
Devemos selecionar as palavras, as expressões, de modo que não sejam motivos de respostas agressivas e insultuosas, pois uma vez rompida essa linha tênue de amizade que atualmente delimita o nível dessa relação amistosa, adeus amigo ou amiga.
Para recuperar o mesmo nível de confiança perdido ou a amizade abalada será um longo caminho, nem sempre retomado mesmo após várias tentativas.
Especificando melhor as generalidades que mencionei acima, tenho sempre corrido o risco de conseguir inimizades e ofensas com os comentários que registro em um blog, que aborda principalmente temas políticos.
O assunto por si só já acarreta polêmicas, debates, discussões mais acaloradas, e não raro parte para o terreno pessoal, quando se perde as estribeiras e o pau come!
Não sou de levar agressões sem respondê-las à altura do nível empregado pelo ofensor, mas não mesmo. Se eu puder devolver os insultos com maior agressividade vou dar um jeito pois nós, os gaúchos, sempre alertamos que “não me pisem no pala”, pois haverá reações muito maiores.
Todavia, quando se deixa de lado o aspecto político e se adentra no campo pessoal, praticamente não existe mais como se retornar ao tema anterior com a mesma normalidade, naturalidade, pois houve comprometimento de uma relação se não amistosa, pelo menos virtual, e que exigia também respeito e educação de ambas as partes.
Evidentemente que esses episódios e corriqueiros estressam, cansam, decepcionam, em face de uma colocação mal feita ou de uma opinião mal escrita, e que geraram encrenca e desentendimentos sem necessidade alguma.
Fazer o quê?
Não responder às provocações?
Manter-se imune ao calor do momento, da discussão?
Mostrar-se superior ao oponente?
Ou partir para a briga por que é insustentável a posição de inatingível?
Claro, cada pessoa tem o seu temperamento, as suas reações, o seu modo de pensar, a ponto que talvez o certo fosse desconsiderar o impulso de se criar polêmica, mas... e o sangue fervendo?
A raiva incontida?
O desejo de se ser mais ainda contundente, incisivo?
De se mostrar mais valente e corajoso que o outro lado?
Há o outro lado, entretanto, da decepção, da frustração:
Promotora de desenvolvimento!
Criamos resistências psicológicas para decepções mais graves, fortalecemos nosso aparato de suportar desafios que se traduzem tanto em derrotas quanto vitórias.
Porém, diz a experiência de setenta anos de vida que devemos estar ligados aos nossos valores, desejos, interesses, menos aos resultados que as decepções podem nos ocasionar.
O conflito interno que se estabelece entre a decepção com a motivação que temos por conta daquilo que acreditamos, de nossas convicções, certezas, devem suplantar os episódios que nos abalaram, a tal ponto que deixam de ser remoídos desnecessariamente, pois como diz a letra de uma célebre canção brasileira:
“Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima,” samba imortalizado pela notável e saudosa Beth Carvalho!
Se houvesse como, certamente deveríamos seguir a orientação do gaúcho Mário Quintana, poeta famoso e extraordinário:
“Se eu pudesse eu pegava a dor, colocava dentro de um envelope e devolvia ao remetente!”
O problema é que as soluções mais simples são incompatíveis com a realidade, na maioria das vezes.
Agora, se eu ganhasse um real por cada decepção que sofri e que causei, lógico, eu estaria decepcionado em Paris (alô Pimentel)!
Por outro lado, quando me vejo decepcionado porque sucumbi às discussões políticas – então razão tem o Mano que não permite esse tema no seu blog -, volta e meia me lembro de uma frase que não sei o autor, e que retrata fidedignamente como devemos reagir:
“Não existe decepção maior que esquecer de agitar o Toddynho antes de beber.”
Enfim, até a filosofia se mete nas decepções, inacreditavelmente!
Diz assim:
“Eu prefiro viver com a incerteza de poder ter dado certo, que com a certeza de ter acabado em dor” (frase pedante e presunçosa).
Dito isso, lá vou eu de novo arranjar encrenca no blog político, haja vista que, se a cada decepção eu aparelho melhor o meu sistema de defesa, nada como uma boa briga verbal, pois não se tem como ir às vias de fato, como se dizia na minha época porque depois deste texto renovei as minhas forças para CAUSAR e sofrer mais decepções.

(Autoria desconhecida)
  
Sadismo?
Masoquismo?
Nada!
Simplesmente DIVERSÃO!






25/09/2019

Os leões de Londres

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel
Quem já assistiu o filme Nunca te Vi, Sempre te Amei e/ou visitou a praça de nome Trafalgar Square, aquela que tem o nome da batalha que vitimou o Almirante Horatio Nelson, reconhecerá tanto o cara lá no topo da coluna rodeada pelos seus quatro leões quanto alguns flashes da abertura do filme.
A essa altura da narrativa, você já terá percebido o quanto me é simpática a paisagem com a qual a protagonista Helene se deparou, maravilhada, da janela de um táxi quando desembarcou na cidade dos seus sonhos pela primeira vez para tratar de “assuntos inacabados” e se deliciou com algumas das dez mil estátuas de leões que moram naquelas paragens. Isso mesmo: dizem que, sem contar com os do zoológico, Londres possui uma impressionante coleção de milhares de estátuas de leões (rsrs)
Os mais famosos leões londrinos e, possivelmente, do mundo, são justamente os quatro da Trafalgar Square que, cercando a Coluna de Nelson, são objeto de milhares de fotos turísticas todos os dias. Eles também são conhecidos como os Leões Landseer em homenagem ao escultor, Sir Edwin Landseer.
fotografia Moacir Pimentel

Mas o maior de todos os felinos de Londres, com mais de dez toneladas, é o leão branco da Ponte de Westminster que, coitado, tem uma cara de profundo tédio. Pudera! Não deve ser nada fácil para um leão de respeito que começou a sua vida profissional vendendo cerveja no topo da Cervejaria Lion, viver ali parado em uma das esquinas da ponte, com a bunda virada para a Roda Gigante.
Na realidade a Cervejaria Leão fechou em 1924 mas o prédio só foi demolido em 1949, para abrir espaço para a construção do Royal Festival Hall. Dizem que o bicho foi salvo do mesmo triste destino e preservado para a posteridade por ordem do rei George VI. O certo é que, quando foi removido, descobriu-se que era um leão de nobre estirpe pois debaixo de uma de suas patas estavam escondidas a data do seu nascimento - 24 de maio de 1837 – e as iniciais WFW, que traduzidas significam um dos melhores escultores ingleses do século XIX: William Frederick Woodington.
De nada adiantou o pedigree. Infelizmente e em seguida o leão foi pintado de vermelho para servir de leão propaganda dos serviços ferroviários britânicos e deixado perto da Estação de Waterloo. Até que um dia a estátua foi restaurada, recuperou a brancura da pedra original e foi instalada no atual pedestal de granito em Westminster.
The Red Lion - fotografia Donjay (Wikimedia Commons)

Trata-se de um felino literário mas é provável que Helene Hannf o tivesse esnobado porque foi descrito em um conto do escritor francês Émile Zola que, em 1893, hospedado no Hotel Savoy do outro lado do rio, ficou impressionado e descreveu a bela fera nos seguintes termos :
“O meu leão britânico está lá imóvel, esperando para me desejar um bom dia”.
Outro leão de estimação dos londrinos cochila em cima da porta de entrada da casa de leilões Sotheby's na Bond Street. Dizem que a escultura do bicho na verdade retrata Sekhmet, uma deusa egípcia, e que seria a estátua ao ar livre mais antiga de Londres pois remonta a cerca de 1320 aC. Como é que um leão de três mil anos de idade foi terminar na Bond Street?
Diz Dona Lenda que, em 1880, a escultura foi vendida por uma bagatela em um dos leilões da Sotheby's, só que o comprador nunca a levou para casa e o leão comeu poeira no porão por algumas décadas antes de ser instalado em morada de tanto prestígio.
Mas se Zola tinha, porque não haveria eu de ter meus leões preferidos? Por acaso, eles também moram no rio Tâmisa. Sempre que estamos em Londres perambulamos por ambas as margens do rio, para cima e para baixo. Nenhum passeio é melhor do flanar ao longo daquelas amuradas ou andar de barco, pelas águas do Tâmisa, embora no inverno possa fazer algum frio por causa do vento.
E foi na região que os nativos chamam de Embankment ou de South Bank - ou seja na ribeira sul do rio - que, há muito tempo, numa manhã de inverno fria e nublada, nos deparamos com a primeira de muitas belas cabeças de leão segurando aros nas bocarras de bronze, cada uma delas alinhada com um lampião para chamar de seu.
fotografia Moacir Pimentel

Quando cheguei ao hotel perguntei ao concierge se aquele bando de leões enfileirados, encarando o rio com anéis pendendo das bocas, tinha algum significado. É claro que tinha! Disse-me ele que os aros serviam para os pescadores amarrarem seus barcos mas que as cabeças e aros dos leões serviam também para monitorar o nível d’água do rio, tanto que a superstição na cultura popular inglesa diz que: “Quando os leões beberem água, Londres afundará”.
Os leões foram esculpidos por Timothy Butler, entre 1868 e 1870, para as obras de terraplenagem e esgoto do engenheiro vitoriano Sir Joseph Bazalgette que realmente calculara que Londres correria risco de inundação se a água do Tâmisa , algum dia, alcançasse os anéis nas bocas dos prezados leões. Sei que os meus são leões menores, feiosos, detalhes desimportantes da cidade. Mas é deles que gosto e fazer o quê?
Também tenho consciência de que uma viagem pelo inverno europeu para a maioria das pessoas é uma péssima ideia. Definitivamente o mês de dezembro, de céus geralmente de um cinza espesso de nuvens e de um frio enregelante que, em vez de só arrepiar, faz até os nativos conversarem batendo os dentes, não é o momento ideal para se agendar sonhos. Sucede que às vezes não temos escolha pois costumamos passar alguns Natais na t’rrinha com a família de minha mulher. E acontece que gostamos de Londres no inverno, serena, bela e fria e fora da lista dos destinos turísticos favoritos.
fotografias Moacir Pimentel

É quando a cidade pode ser vista como realmente é, sem a maquiagem do verão, sem produção, sem qualquer coisa além do ritmo silencioso dos londrinos vivendo as suas rotinas diárias.
Em Londres não se precisa comprar ingresso para por os olhos nas melhores paisagens. Na verdade, só se precisa é de pernas. Essa cidade fantástica, com certeza, não é o lugar mais barato do mundo, mas naquelas paragens há muitas coisas que se pode fazer de graça, como caminhar à beira do rio, subir as colinas, visitar os parques reais ou os museus sem dar adeus a nenhum centavo.
Da estação de Charing Cross, por exemplo, até a ponte de Waterloo e depois na direção do Royal Festival Hall e da ribeira sul se faz um passeio agradável. Essa ponte inaugurada em 1817 cruza o rio em uma curva, e nos presenteia com as mais magníficas vistas: de um lado a cúpula da Catedral de São Paulo, ladeada por modernos arranha-céus, e do outro a visão de conto de fadas do Big Ben, das Casas do Parlamento.
Essa parte da ribeira foi aterrada, tanto é que é conhecida pelo nome de Victoria Embankment ou o Aterro de Vitória. Esse calçadão situado à beira do rio Tâmisa, decorado por alguns  jardins e belos bancos antigos é o ponto de partida para as melhores atrações da cidade, todas muito próximas. Fizemos muitas descobertas enquanto explorávamos suas imediações, como por exemplo as casas onde moraram Benjamin Franklin e um dos meus escritores prediletos: Herman Melville.
Descendo ou subindo o aterro a partir do Big Ben, se pode alcançar em quinze minutos de caminhada tanto a Ponte da Torre quanto o Palácio de Buckingham. É divertido caminhar ao longo do rio, parar para olhar para os barcos e o conjunto de edifícios e fotografar do outro lado das águas, os cento e trinta e cinco metros de diâmetro da London Eye, ou Olho de Londres.
fotografias Moacir Pimentel

Adicionada ao horizonte londrino mais recentemente a Roda Gigante, conhecida também como a Roda do Milênio, tornou-se obrigatória por causa  das excelentes vistas que oferece da área central da cidade. Uma volta completa na geringonça leva cerca de trinta minutos, tempo suficiente para fotografar tudo e mais alguma coisa.
Mas vamos deixar para ver os novos flashes de “mais alguma coisa” na próxima conversa.


20/09/2019

A Bélgica tem mais de mil marcas de cerveja

igreja de Woluwe Saint-Pierre (imagem eglise.be)


Antonio Rocha
E eu que não era de beber, bebi e gostei de cerveja doce. É uma tradição que vem dos monges medievais que viviam de oração e trabalho em seus mosteiros. Vi cervejas trapistas, beneditinas, franciscanas e suas respectivas propagandas.
O aeroporto é imenso e no primeiro dia aproveitamos para conhecer a pequena cidade onde mora o meu trio (filha, genro e netinha de 4 anos e meio). A localidade chama-se Woluwe Saint Pierre. Woluwe é uma bonita cidade, um município a quinze minutos de carro da capital Bruxelas. Usamos um bonde ou ônibus e vamos para o centro de Bruxelas. Woluwe na linguagem de antigos habitantes significa “rio estreito” que banha a região. A República foi fundada em 1860, é um Reino e governada liderada pela Democracia Cristã.
A qualidade de vida é ótima, mesmo os bairros onde tem as chamadas  “habitações sociais” é um luxo. Ficamos dez dias nesse bonito país, não vi muros altos. A maioria tem meio metro de altura, no máximo um metro e raramente um metro e meio, mas o detalhe é que todos são muros vivos com plantas e muitas flores.
Em Woluwe nunca se registrou um assalto a mão armada ou invasão de casas. No máximo, vez por outra, aparece um “batedor de carteira” quando algum turista desavisado anda com a mochila aberta.
O nome da cidadezinha é dedicado a São Pedro, aquele que tem as chaves do Céu (conversamos bastante). A Igreja local é em homenagem à Santa Alix (Alice) que, na Idade Média vivia na floresta próxima, visitamos a pequena e bela floresta. À noite, aparecem raposas que comem os pombos. E durante o dia, corvos negros, ave predadora dos pombos.
O país fala três línguas, a parte de língua francesa, onde moram os meus queridos, uma outra parte de língua holandesa e um pequeno pedaço, a língua alemã. Mas todo mundo fala inglês. Minha neta na creche estuda o francês e a partir dos seis anos vai estudar também o holandês.
Desculpem o artigo na primeira pessoa do singular ou do plural, mas é assim que está saindo o texto, tipo um relatório, crônica pessoal de viagem.
Duas vezes por semana tem a feira local. Pode-se comprar de quase tudo um pouco: frutas, legumes, hortaliças.
Era verão, chegamos a ver os termômetros nas ruas: 48º graus, Mas depois veio uma frente fria e a temperatura caiu para 26º.
Depois eu conto mais.


16/09/2019

O nosso bouquinista

fotografia WBJ


Wilson Baptista Junior
Se você está lendo este post, muito provavelmente é uma pessoa que gosta de livros. Além das grandes livrarias, onde normalmente se procuram livros para comprar, talvez conheça outros lugares interessantes mundo a fora para ir em busca dos que nos interessam, como os “bouquinistes” das margens do Sena, tão bem descritos pelo Moacir num post anterior, que nos esperam com suas caixas verde-escuras cheias de livros antigos e novos colocadas nos passeios, as livrarias cheias de surpresas meio escondidas nas velhas casas do Marais, as pequenas livrarias londrinas que nos lembram da correspondência encantadora entre Helene Hanff e seu livreiro e amigo Frank Doel, as lojinhas de livros e revistas nos aeroportos em lugares distantes onde a gente procura alguma coisa dali para preencher o tempo de espera ou das longas viagens de volta para casa – ou então talvez seja, como eu fui, um frequentador dos antigos sebos à procura de tesouros.
E lê, um tanto preocupado, as notícias na imprensa sobre como a internet e os meios eletrônicos estão ameaçando fazer desaparecer os nossos queridos livros em papel, e como os preços deles restringem cada vez mais a possibilidade de serem comprados pelo povo.
Mas se você estiver na minha cidade de Belo Horizonte, dando uma volta a pé por perto da nossa casa, e olhar para a esquina da Avenida do Contorno com a Rua Grão Mogol, junto das vidraças de uma enorme papelaria, que antigamente eram vitrines e hoje estão cobertas com um vidro verde fosco, se deparará com uma cena de fazer seu coração de leitor bater mais rápido: um mar de livros expostos na calçada, formando um enorme mosaico colorido nas folhas de papelão que cobrem o cinza do concreto.
Se parar para olhar para eles, como faço muitas vezes, será recebido com um sorriso aberto por um homem de modos simples e francos que deixará você olhar à vontade e remexer nas pilhas de livros que formam uma ilha num dos lados dessa praia inesperada.
E se algum deles lhe interessar, ao perguntar o preço, mesmo que seja um precioso exemplar de capa dura de um livro difícil de encontrar, ouvirá sempre o mesmo preço: “Cinco reais” – e ficará surpreso. E quando perguntar a ele o porquê de ser tão barato, se tiver sorte e tempo para um dedinho de prosa talvez seja convidado a se sentar numa das duas cadeiras ao lado da pilha de livros e a ouvir uma história que com certeza o deixará de coração mais leve.
É a história do nosso bouquinista, para aportuguesar a palavra francesa tão descritiva, o senhor Odilon. Odilon Tavares, se quiser saber seu nome inteiro.
fotografia WBJ
Ele nasceu, para usar suas próprias palavras, “num fazendão no meio do mato”, perto da cidade de Carandaí, aqui em Minas. Rodou um pouco pelo Brasil a fora, trabalhando em obras, e uns quinze ou vinte anos atrás fixou-se em Belo Horizonte. Aqui começou a trabalhar em reciclagem, angariando material.
Observador cuidadoso, viu que no meio do material que angariava vinham muitos livros, e teve a ideia de tentar vendê-los na rua ganhando um pouco mais do que valeriam como papel velho. Experimentou e deu certo, e resolveu aproveitar a parte da tarde para a venda, já que de manhã e de noite são os horários bons de encontrar o material que os outros descartam para a reciclagem. 
(Um parêntese: para nós que gostamos de livros é estranho pensar que possam simplesmente ser jogados fora como lixo. Infelizmente acontece, e  não poucas vezes. Eu mesmo já tive ocasião de ver, numa rua de um bairro de gente de boa renda, que se supõe instruída, uma grande quantidade de livros sendo jogados fora de uma casa em reforma; infelizmente estava passando a pé e não tinha como avisar o senhor Odilon antes da passagem dos lixeiros - não pude mais do que fazer esta melancólica fotografia)
fotografia WBJ

O nosso bouquinista escolheu esta esquina onde estamos conversando porque reunia boas condições para o seu trabalho: um passeio largo, uma boa marquise protetora e uma região de bom poder aquisitivo.
No começo as pessoas paravam, olhavam meio ressabiadas, algumas compravam. E umas foram contando para as outras. Gradualmente o movimento foi crescendo, e ele foi deixando de trabalhar em reciclagem e passando a se dedicar apenas à venda dos livros. Pessoas começaram a trazer para ele os livros que não queriam mais. O estoque cresceu e ficou mais variado, e encontramos nele livros de escola de todos os níveis, romances, best-sellers, livros técnicos, livros mais antigos, livros em outras línguas, todos em boas condições, muitos em estado de novos. Faz tempo que já não tem mais como levá-los para guardar em casa ao fim do dia, e conta com a ajuda noturna de um reciclador seu amigo, que dorme junto ao seu estoque debaixo da marquise para tomar conta dele durante a noite.
Mas voltando à pergunta de que falamos lá atrás: Porque vender por preço único e baixo livros de que muitos poderiam ser vendidos muito mais caro, e o nosso bouquinista sabe disso?
A resposta dele é de nos fazer pensar: “Já experimentei vender mais caro, e consegui, mas hoje a minha preocupação não é a de ganhar dinheiro. No lugarzinho onde nasci e fui criado não havia ginásio, e meus pais não tinham condições de pagar a passagenzinha de ônibus para eu poder ir até o da cidade mais próxima. Então, cresci sem poder estudar. Hoje, posso vender todos os livros a cinco reais, dá para assegurar a minha subsistência, e ao mesmo tempo ajuda a quem não tem condições de pagar os livros de que precisa para estudar pelo preço aí de fora. Essa alegria me basta”.
Por sua maneira de agir e sua simpatia o nosso bouquinista tornou-se uma pessoa conhecida e estimada no bairro, com grande número de amigos e clientes habituais, mesmo que alguns, como eu, namorem os livros expostos e não comprem (mas ele sabe que é porque já não tenho, em casa, lugar para por mais). Guarda no coração as palavras a seu respeito de um conhecido, “pessoa estudada” no seu dizer, que lhe explicou que as pessoas gostam dele porque tem “exterioridade positiva”.
Descobriu a quantidade de amigos que tinha no final do ano passado, quando teve problemas com fiscais da prefeitura, que apreenderam seu estoque exposto de uns dois mil livros acusando-o de estar violando o código de posturas da cidade. Houve uma comoção nas redes sociais, e pessoas amigas intercederam junto ao prefeito da capital, a quem ele agradece a sensibilidade de ter reconhecido a função social da sua atividade e mandado devolver os livros apreendidos.
Durante o tempo em que conversamos uma senhora chegou com uma sacola cheia de livros, um rapaz com mais alguns deles no porta-malas de um carro. Meio a contragosto, porque a prosa estava boa, me levantei da cadeira - a tarde caminhava para o fim e eu tinha ainda algumas coisas a resolver na rua - e quando me despedi do senhor Odilon dizendo que seria bom que houvesse mais gente com a mesma vontade de ajudar os outros, e lhe desejei boa sorte, ele me respondeu: “sabe, acho que é porque faço com o coração, e quando vem do coração Deus está na parada. Vai dar tudo certo.”
Fui embora mais leve.


12/09/2019

Do outro lado do rio

fotografia Moacir Pimentel

 Moacir Pimentel

Assim como Londres nunca foi só uma cidade, mas uma série de enclaves distintos, John Donne jamais foi apenas um poeta metafísico; também escreveu tórridos poemas de amor. Pensando nesses contrastes, depois de se visitar a Catedral seguimos em direção ao rio onde, embora a modernidade esteja abrandando a histórica paisagem, a cidade continua sendo uma colcha de retalhos, do velho e do novo, de muitas identidades, cada qual com suas próprias tradições e lealdades.

Hoje, depois de São Paulo, seguiremos em linha reta e atravessaremos o rio parando no meio da Ponte Millennium para contemplar as águas chicoteadas pelo vento invernal e dar um derradeira espiada de adeus à velha Catedral.

Do outro lado do rio mora outro Museu, o Nacional Britânico de Arte Moderna, mais conhecido como Tate Modern, um dos mais visitados do mundo, superando outros modernosos como o MoMa de Nova York e o Museu Reina Sofía de Madri. Em um piscar de olhos se vai de Donne à Londres mais contemporânea, apresentada em uma escala épica.
O acervo permanente da Tate Modern, reunindo obras de arte inventadas desde o ano de 1900 até a atualidade, é um dos mais completos do mundo. Trabalhos da maioria dos artistas mais relevantes do século XX, como Pablo Picasso, Andy Warhol, Salvador Dalí e Mark Rothko, moram no terceiro e no quinto andar do prédio de uma antiga usina, enquanto que as exposições temporárias rolam ou no quarto andar ou no átrio principal, o imenso e cavernoso vão central de nome Turbine Hall que antigamente abrigava as turbinas da central elétrica. Da última vez que estivemos na Tate uma das três exposições de plantão era protagonizada pelos trabalhos da arquiteta Zaha Hadid. 
fotografia Moacir Pimentel

Mesmo para os que não são amantes de arte moderna, a Tate Modern é um programa imperdível, pela privilegiada localização, pela arquitetura, pelas belas vistas que nos oferece gratuitamente do rio, do teatro Globo – veja na foto acima o prédio branco com telhado de palha - da Ponte Millenium e da Catedral.
Foi ali que fui apresentado à gigantesca e pavorosa aranha de aço de nome “Maman” – nossinhora! - da artista franco-americana Louise Bourgeois. A Maman foi feita sob encomenda para a abertura da Tate Modern na virada do milênio e é tão grande que só pode ser instalada ao ar livre ou dentro de um edifício de escala industrial. Suportada por oito pernas esguias e nodosas, o corpo do aracnídeo fica suspenso acima do solo, permitindo que o espectador ande por baixo de um saco de malha de aço contendo dezessete ovos de mármore branco/cinza que brilham contra a escuridão do interior do corpo do bicho e pairam pendurados sobre a pobre cabeça do observador, de quem se espera que desenvolva um sentimento de empatia em relação à maternidade. Complicado! (rsrs)
Louise Bourgeois - Maman - fotografia de Matt Stuart em Londonist.com

A alguns metros de toda essa modernidade, no entanto, mora a réplica do Teatro Globo, do qual Shakespeare foi um dos sócios. Mas antes de chegarmos ao lendário palco elisabetano, peço licença para contar-lhe uma desimportante mentira turística.
Explico: na primeira foto ao alto da montagem abaixo, espremida entre um predinho de tijolos e o Teatro mora uma casinha de nada, estreita e alva como o fog inglês, dessas de porta e janela e entre elas uma placa avisando que ali pernoitou , na sua primeira noite na cidade e rodeada de tavernas e bordéis a futura esposa do rei Henrique VIII e então princesa de Espanha Catarina de Aragão (rsrs)
fotografias 1, 3 e 4 de Moacir Pimentel / fotografia 2  de Sourav Niyogi, Wikipedia

Como se não bastasse tão cabeluda mentira, a placa ainda jura de pés juntos que ali viveu, durante a construção da Catedral de São Paulo, o badalado arquiteto Sir Christopher Wren. É claro que quando a casa foi construída fazia tempo que a igreja já havia sido consagrada!
Apesar da evidente cara de pau da plaquinha, é graças a ela que a estrutura original da velha casinha, uma resistente mistura dos tijolos de estilo rainha Ana com um bocado de gesso vitoriano, ainda está de pé. E de repente a gente sente vontade de fazer um desejo, como a Virginia Woolf tão pungentemente fez, querendo ouvir mais uma vez o autêntico e não editado e/ou traduzido “som do passado”. Quem efetivamente viveu naquela casa?
Pode apostar que, seja lá quem tenha sido, falaria com o carregado sotaque dos pescadores do sul do Tâmisa que, com certeza, invadiram aquelas paragens enriquecidos que foram pela Igreja Católica quando suas santidades decidiram que às sextas-feiras e nas Quaresmas as suas ovelhas só poderiam comer peixe (rsrs)
E depois para onde ir? Pulando o Teatro, porque ele será outra conversa, que tal dar uma passada no Borough Market bem ao lado?
fotografias Moacir Pimentel

Trata-se do mercado com os produtos frescos – legumes, verduras, frutas, carnes, frutos do mar e peixes, queijos e doces – mais disputados da cidade. Vale a pena tomar por lá o café da manhã. Ou quem sabe não seja uma boa ideia calibrar a fome para almoçar no Café do Museu do Design?
Trata-se de um grande edifício, mas maiores ainda são as filas para ver os insignificantes territórios das exposições. Os visitantes transitam espremidos em pequenos espaços, como a loja de souvenirs, ou olham sem entender nada para o átrio desnecessariamente grande, só que vazio, ou se arriscam na missão inglória de subir todas as escadas que levam do nada para mais nada.
Esquerda: fotografia de Harry Wood in Wikipedia – Licença Creative Commons 4.0 / Direita: Moacir Pimentel

Pense em um museu mal concebido! O conjunto da obra não cumpre o seu objetivo principal de inspirar e educar as pessoas sobre o design. Mas a localização do Café e a vista da janela nos faz relevar o seu inegável pecado: trata-se de um museu de design onde o uso do espaço não faz sentido (rsrs)
Da próxima vez, talvez para aliviar um pouco a visão desse estranho museu, vamos conversar com os nobres leões de Londres...


08/09/2019

Aridez de terra seca




Ana Nunes

Já são meses sem chuva. Entressafra de tempo molhado, de água mágica que brota em nuvens escuras no céu antes azul. Não chove nada.

Persigo a previsão do tempo na televisão, no INPE do IPad e a previsão dos conhecidos... à procura da chuva! Chove torrencialmente em São Paulo, meu filho me conta, chove no Sul, meu amigo me disse, e me lembrou das galochas do passado. Chove no Rio, minha irmã sabe disso. As frentes frias sobem e vão se gastando antes de chegar aqui.
Sinto saudade!
Da chuva mansa de lavar delicadamente ares e flores. Essa chuva delicada no cinza que a cerca,  arrepia minha alma e apazigua meu coração.
Da chuva tempestade. Que borra a paisagem, mistura de cinza escuro o céu, as montanhas e as casas. Chuva duradoura que encharca os morros que deslizam sobre os homens. De granizo e trovão e raios afiados. Essas são perigosas. Trazem sempre más notícias. Elas também enchem os rios que bravos saem de seus caminhos apertados, sobem pelas margens e pelas pontes cegos de fúria com o tempo molhado. São injustos na perseguição às gentes ribeirinhas.
Mas continuo na mesma a gostar delas também, aconchegada no meu abrigo seguro. E com o coração cheio de culpa me dizendo que não posso gostar delas. E fico confusa. E quase choro nas imagens da tv.

Gosto da chuva que faz barulho no toldo e escorre pelos vidros da janela. Imito Bilac e acordo para ouvi-la. E volto a dormir, sorrindo mesmo, embalada pela música.
Se dia meio claro meio escuro, olho pela janela a cascatinha quase espuma junto ao meio fio. Esse riacho arrasta meu pensamento e quase entendo tudo.
Respiro o cheiro bom de terra molhada. Mesmo que seja só nuns quadradinhos pequenos onde, com tão pouco, crescem árvores generosas. E com desdém pelo pequeno espaço dão sombras verdes e colorem a rua barulhenta. Às vezes até perfumam como o jasmim debaixo da janela.
O passarinho gordinho e marrom balança e balança no galho verde que balança com a chuva. Brincadeira de zanga-burrinho da minha infância. Depois de muito brincar sacode as penas para secar e ficar quentinho.

As ruas se colorem de guarda-chuvas listados, de flores ou de bolinhas. O meu é grande e xadrez verde e vermelho (comprei em Portugal...) e saio por aí trombando com os outros e sorrindo feliz. Já falei que sou um pouco planta e fico viçosa nesse caminhar molhado.

Aqui perto de mim, um jardim grande corre junto às janelas e as garagens até chegar ao muro. Nesse verde inesperado vive uma palmeira, comigo desde o começo dos tempos desse lugar chamado casa. Somos contemporâneas. Ela cresceu muito, muito, acima dos três andares e balança perigosa no vento forte que precede a chuva. Vai cair um dia desses. Ah vai, se não for cortada. Que pena!
Tem palmeira pequena e Coroa de Cristo.
Tem manacá arbusto e baixinho que se cobre de flores miúdas e coloridas para agradecer a chuva. Tem uma grama grande verde que cresce afoita e selvagem depois da  água abençoada e perfuma de tons verdes o ar no corte barulhento da máquina. Estamos todas esperando ansiosas pela chuva que tarda e tarda. Nem adianta acordar e primeiro de tudo olhar o céu para saber notícia. Vejo até nuvens, doce esperança! Chuva mesmo, nenhuma uma gotinha!

Nesse impacto natural da natureza mesma percebo, de repente, que um verde meio amarelado e seco se agita agradecido, e já prepara as cores da primavera verão.
E me assusto porque é quase Natal!



04/09/2019

A viagem dos descobrimentos

Acervo pessoal. Francisco é o terceiro da esquerda para a direita.


Francisco Bendl
Viver é descobrir-se diariamente.
Cada dia traz uma lição nova, experiências diferentes, e vamos montando o nosso caleidoscópio da existência.
Mesmo as viagens de passeio ou turismo ou negócios ou por necessidade ou por serviço, a gente descobre algo inimaginável, jamais pensado, e que nos surpreende.
Ao dar baixa no Exército depois de quatro anos servindo a Pátria, na década de sessenta, decidi que viajar seria um trabalho onde eu ganharia mais, pois casado recentemente e a esposa à espera do primeiro filho, o meu soldo como Cabo da Polícia do Exército era justo, eu queria propiciar algo mais do que uma vida segura, eu queria conforto, carro, casa própria, que a minha mulher tivesse aquilo que quisesse!
Após dez anos viajando pelos estados do RS, SC, PR, SP, RJ, percorrendo mais de cem mil quilômetros por ano (!!), concluí que eu não ficaria rico ou tampouco obteria a qualidade de vida que eu imaginara para mim e família – nessas alturas tínhamos três filhos-, porém eu conseguia apenas sustentá-los condignamente.
Em contrapartida, a minha experiência como vendedor-viajante, as viagens constantes e carros sendo trocados a cada ano, me deixaram achando que eu era o tal, que eu já vira de tudo, que não precisava mais ver nada – aquelas bobagens que se abatem sobre o adulto jovem, que se julga conhecedor da vida.
Mas, enquanto a maioria dos meus amigos gostava de pescar, alegando ser uma terapia, descanso, teste de paciência, acampamentos à beira-rio ou em alguma casa na orla marítima, comendo churrasco e bebendo cerveja aos fins de semanas, eu ficava em casa, cansado das idas e vindas semanais e perto da mulher e filhos.
Na condição de gerente de uma empresa nacional poderosa, eu me defrontava com compradores que eram perdidamente apaixonados pela pesca!
Eu não poderia dizer o mesmo.
Mas, percebi que a minha função também tinha o componente “social”, de ser atencioso com um ou outro cliente além do horário de expediente em dias da semana.
Eu precisava ser mais observador quanto aos seus gostos e preferências, e tirar um certo proveito de forma positiva.
Havia um comprador que me adquiria carretas – assim mesmo, carretas de três eixos – de mercadorias a cada quinze dias, pois a indústria que eu fornecia o material era a maior da... América Latina!
Logo, eu que o atendia e não o  vendedor, sendo que eu teria de sair do meu conforto para dar-lhe uma atenção especial, tanto pela sua função quanto para manter as vendas da empresa que eu gerenciava no Sul.
O cara era “fissurado” em pescaria, repito.
A sua empresa era no interior, longe de grandes rios e mais distante ainda do mar.
Mais o comprador dava banho em minhoca, que pescar alguma espécie de peixe comível, que se pudesse fritá-lo.
Um belo dia, após uma venda espetacular, a maior que a minha indústria havia vendido na sua história (!!), resolvi atender-lhe o desejo, que seria pescar em uma praia de mar.
Não uma praia qualquer, mas em um dos santuários gaúchos de preservação ambiental e ecológica, denominado Lagoa do Peixe!
O local que eu vira nas revistas e de relatos de quem já havia pescado na lagoa era de um paraíso, a natureza ainda intacta, e longe dos curiosos.
Não havia estrada.
Só se chegava à localidade pela praia.
Se fosse pelo asfalto, teríamos de ir até Mostardas e andar de carro por dentro da Lagoa dos Patos – na verdade laguna –, com a água batendo na porta do carro e adivinhando o caminho para não afundar, de modo a se chegar ao éden após cinco horas de viagem, imaginando que o carro também poderia ser anfíbio ou, melhor, um submarino, lá pelas tantas!
Logo, a decisão do grupo de aventureiros de cinco corajosos desbravadores foi a ida pela praia, a traiçoeira costa do litoral gaúcho, conhecida como “cemitério de navios”, em razão do mar revolto e enormes tempestades, cuja maré subia até as dunas, distantes cerca de duzentos metros da beira do mar (a foto mostra nitidamente o quanto eu era senhor da natureza, um tarzã gaúcho, que se sentia poderoso, invencível)!!
Acervo pessoal

A última praia que existe no litoral gaúcho, antes de São José do Norte é Quintão.
A gente sai de Porto Alegre por Viamão, depois Pinhal, e vem Quintão, cento e quarenta quilômetros aproximadamente por asfalto.
Desta praia até a Lagoa do Peixe são MAIS DE CENTO E SESSENTA QUILÔMETROS DE AREIA E MAR!!!
Saliento vários perigos:
Os pequenos arroios que são feitos pela água da chuva escorrendo da mata, que formam degraus de até um metro. Quando se percebe pode-se estar em cima, e aí é tarde, o carro vai de bico para o valo;
Quando a onda sobe, deve-se esperá-la descer, caso contrário a correnteza quase tão forte quanto subiu, pode apagar o motor do carro, então adeus veículo;
Jamais andar pela beira da praia, apesar de ser melhor que asfalto. As ondas não são iguais, e uma delas pode avançar e bater no carro com força, apagando o motor e afundando o veículo quase que imediatamente. A revista Quatro Rodas perdeu uma Parati – reportagem com fotos – dessa maneira, percorrendo esse trajeto pela beira do mar, até vir uma onda e acabar com o passeio;
JAMAIS, em circunstância alguma, DEVE-SE VIAJAR PELA PRAIA À NOITE, ainda mais quando não se conhece o trecho!!!
Os olhos se embaralham; a paisagem é sempre a mesma, areia; menos ainda se percebe os arroios; a maré pode chegar no carro sem que se dê conta; não se sabe onde entrar quando se chega no destino programado (podem acreditar quando falo, porque eu, desde pequeno, dominava o mar)!
Acervo pessoal

A bordo de uma Kombi cabine dupla, movida a óleo diesel, porém com interruptor deixando a ventoinha que refrigerava o motor permanentemente ligada, com mais de trezentos quilos de tralha, entre câmara de gelo, barraca, alimentos, bebidas, lampiões, baterias, roupas, toalhas, chapéus, máquinas de fotografia, EU DE MOTORISTA, que vinha conduzindo o veículo emprestado de uma fábrica para esta legítima aventura desde a serra gaúcha, com saída às seis da manhã, cheguei em Quintão ao meio dia!
Calculei uma média de velocidade na praia em torno de trinta quilômetros por hora.
Se houvesse algum problema chegaríamos perto das sete da noite, onde no RS à época em que fomos o sol ainda está alto, pondo-se perto das nove da noite!
Enchi o tanque de diesel, mais um recipiente de cinquenta litros para se ter combustível ao voltar, claro, e nos pusemos a caminho para a grande aventura e rumo ao desconhecido!
Cerca de vinte, trinta km depois, o fabuloso Farol da Solidão, imponente, majestoso, iluminando os caminhos do mar para navios não se aproximarem da costa (não me peçam por fotos, explico: não se podia perder tempo, pois havia o receio de se pegar noite na praia, dificultando sobremaneira chegar na Lagoa, então tínhamos de seguir em frente).
Com a viagem avançando, vimos pela primeira vez o albatroz nacional(!). Não temos esta ave, mas existe o João Grande. Com um metro e oitenta de envergadura, mais de um metro de altura, a ave é maravilhosa, típica do RS, e que precisa tomar embalo para voar.
João Grande (imagem Wikimedia Commons)

Uma ou duas horas depois, encontramos na beira da praia duas imensas circunferências de vidro, cobertas por uma rede grossa, como se fossem uma boia. De tão grandes, não houve como trazer uma, pelo menos, pois ocuparia muito espaço no carro, e queríamos trazer PEIXES!!!
Como eu previra, muitos arroios, que me exigiam atenção permanente.
Aviso aos navegantes:
Muito andei de caminhão pela praia, nos antigos Ford F-600, a gasolina!!!
Aprendi que não se pode andar na areia com o carro com pouco giro de motor, pois se fica atolado, ou seja, muita marcha é feita, dezenas de reduzidas, e sem medo de se chegar no máximo, para depois trocar por uma mais alta, mas sempre atento às mudanças para marchas mais baixas, de mais força e menos velocidade.
Apostei, logicamente, que eu não atolaria a Kombi nenhuma vez neste longo percurso pela praia, em face da minha experiência.
Portanto, a minha primeira análise quando entrei na praia foi verificar a altura do mar:
Se estava alto, e perto das dunas ou baixo, com uma larga faixa de areia antes da água.
Porquê?
Porque com o mar baixo, eu andaria por areia solta, que segura o veículo, obrigando o motorista a andar sempre com força, isto é, lento, mas com o carro em marcha adequada,  segunda ou terceira, considerando que a Kombi tinha apenas quatro, e sem medo algum de se colocar primeira mesmo que o motor gritasse, de modo a não parar nesta ocasião, pois não se sai mais, atola-se. Mas não me preocupava, porque, como podem ver, desde a tenra idade eu era um piloto extraordinário e motorista inigualável!!
Acervo pessoal

O mar estava baixo, sinal de que eu teria de gastar mais combustível que eu imaginara, pois teria de andar em terceira e segunda na maioria do percurso.
Mas NÃO ATOLEI UMA VEZ SEQUER!!
Continuando:
Após mais de cem quilômetros rodados, a vista cansada, os braços doendo de tantas mudanças de câmbio, perna esquerda reclamando da quantidade de embreagens praticadas, o primeiro grande impacto, que nos deixou literalmente de boca aberta.
Escrevi acima, que o litoral gaúcho é denominado de “cemitério de navios”.
Pois estava à nossa frente, a cerca de cem metros da beira do mar, um esqueleto de um navio de porte!
Apareciam duas colunas que partiam do convés, como se fossem do próprio mar, uma beleza e imagem ao mesmo tempo triste, pois imaginamos o desespero dos marinheiros quando o navio encalhou, e no meio de uma tempestade!
Mais adiante, outra carcaça de um navio menor, mais perto da praia.
Mais um pouco, e nos demos de frente com enormes buracos na beira da praia!
Largos, profundos, cerca de um metro e meio, pois a água do mar invadia rápido, um pescador de... siri!!!
A carne é uma especiaria, que se faz pastel e se come rezando!
Mas, o bicho tem tão pouca “carne”, que se precisa mais de mil siris para dar meio kg desta saborosa iguaria!
Em frente ao mar, cem metros em direção às dunas, protegida por um desses morros de areia, a casa do pescador ou caçador de siri, na verdade um casebre.
Levou-nos até ela para nos vender o que havia conseguido nos últimos dois dias.
Se, por fora, o “lar” era modesto, dentro só havia uma geladeira, mesa e cama.
NO ENTANTO, o esperto caçador/pescador enquanto tentava encontrar siri, o cara achou UMA SEREIA!!!
A mulher do moço era qualquer coisa de se jogar no mar e segui-la até Netuno!
A mim pareceu que era a última sobrevivente da sonhada Atlântida, pois a mulher era mesmo um sonho, e picante!!!
Bom, compramos o que ele tinha de siri, e tratamos de continuar a nossa viagem.
Os comentários foram os mais variados e exóticos possíveis, evidente, após a visão daquela sereia e de que elas existiam, verdadeiramente!
E, chegamos a conclusão - hoje quase impossível -, de que o amor é mais importante que dinheiro, carro, posição social, nada desse mundo metido a desenvolvido.
Bastava o cara conseguir alimento, ter uma cama, geladeira e mesa, uma choupana à beira do  mar e, eis a felicidade!
Uma mulheraça ao lado para se descobrir os segredos do sexo, sem enormes espaços para trabalhar, pagar contas, pedir empréstimos, financiamentos, a natureza em contato íntimo com o casal e, ele e ela, fazendo parte deste espetáculo de amor a todo o instante e jeito!!!
O paraíso era aqui, e não mais a Lagoa do Peixe.
O cara deveria ser o Adão da Nova Era e ela a Eva, maravilhosa.
E com uma vantagem enorme sobre o casal original:
NÃO HAVIA MACIEIRAS (antes que me perguntem como que havia esta geladeira, se não tinha luz onde o esperto e felicíssimo rapaz morava, o eletrodoméstico era a querosene)!!!
No entanto, faltando uns trinta a quarenta quilômetros para se chegar à lagoa, seis horas da tarde, aproximadamente, vivemos um momento tão incrível, tão inédito, que foi como a mesma  surpresa de Charlton Heston, no primeiro filme O Planeta dos Macacos quando, no fim, ele com a moça na garupa do cavalo fugindo pela praia, dá de frente com a estátua da Liberdade enterrada até o peito, lembram?!
Foi um impacto para a plateia.
Pois bem, no local onde se colocam os guarda-sóis, perto da praia, onde a maioria das pessoas se instala quando vai tomar um banho de mar e leva os filhos, ENCALHADO NO MESMO CAMINHO POR ONDE EU TRAFEGARIA COM A KOMBI, um monumental barco-pesqueiro.
Acervo pessoal

Sou o primeiro, da direita para a esquerda ou o último da esquerda para a direita.
Imaginamos várias situações:
A tempestade enorme que este navio enfrentou para encalhar na praia;
O terror da tripulação;
A força da correnteza que jogou o barco na praia, onde as pessoas ficam, os carros trafegam...
Um espetáculo deslumbrante e ao mesmo tempo apavorante!
E se um toró desses acontece conosco na lagoa, que desemboca no mar?
E se acontecer à noite, tornando a nossa saída mais ainda problemática??!!
Afastamos nossos pensamentos ruins, e seguimos em frente depois de algumas fotos, pois vá que esse navio não esteja mais na praia no retorno???!!!
Sabe-se lá!!!!
Bom, encurtando a história:
Chegamos às sete horas da noite;
Encontramos o local da entrada facilmente;
Havia umas casas de pescadores residentes no local;
Uma delas, vazia, nos alugaram para a noite de quinta, sexta e sábado inteiros e sairíamos no domingo cedo da manhã.
Havia na casa de um deles, MAIS DE DUZENTOS QUILOS DE CAMARÃO, armazenados para vender na cidade de Rio Grande, outros cento e sessenta quilômetros adiante, rumo ao Sul.
À noite foi então coroada com um macarrão e camarão, e comemos até onde foi possível.
Na sexta e sábado se pescou peixe-rei, sardinha, corvinas, o delicioso e belo papa-terra.
No domingo compramos cem quilos de camarão, e retornamos para casa!
A viagem foi mais fácil, pois eu conhecia o caminho e as manhas do mar da região.
O feliz caçador/pescador de siri não estava na praia, e não ousamos bater na sua casa e importuná-lo indevidamente, consideramos.
Ao relatarmos a aventura, o que tínhamos visto, as emoções pelas paisagens inéditas, aves, carcaças de navios, até mesmo o exemplo da verdadeira felicidade com a situação do rapaz vivendo com uma sereia sem maiores compromissos, ouvimos de um “invejoso”, que exagerávamos, que estávamos fazendo tempestade em copo d’água!
Foi quando o comprador, que jamais tivera tantas emoções na sua vida de cinquenta anos de idade, exclamou:
- Bah, che, tempestade em copo d’água é pouco; fizemos dilúvio em tampinha de xarope!