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28/09/2018

Sem sinal

Rádio telescópios da rede ALMA, no deserto de Atacama, Chile (imagem European Southern Observatory)



Heraldo Palmeira


Estava pensando no projeto de mais um livro e fui reler alguns textos que escrevi há algum tempo. Era sobre a pressa cotidiana, a angústia que deixa de ser só de Paulinho da Viola para ser nossa.
Olá, como vai?
Eu vou indo e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo correndo
Quanto tempo... pois é...
Quanto tempo...
Me perdoe a pressa
Oh! Não tem de quê
Eu também só ando a cem
Precisamos nos ver por aí
Pra semana, prometo
Talvez nos vejamos
Quem sabe?
Quanto tempo... pois é... quanto tempo...
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Pra semana
O sinal ...
Eu espero você
Vai abrir...
Por favor, não esqueça
Adeus...

Os amigos se espalharam por cidades diferentes e distantes, cumprindo os êxodos necessários para garantir a sobrevivência. Celulares, tabletes, computadores e internet suprem, na medida do possível, a falta da convivência cotidiana. Abrem nossos sinais fechados.
De repente, aquelas mensagens de notificação de caixa postal cheia aparecem uma, duas, diversas vezes para um mesmo amigo. Ou o jogo das cores do acompanhamento dos posts das redes sociais quebra o ritual da rotina.
É a fagulha que aperta o coração, que acende um sinal de alerta. E não há sossego até que tudo fique esclarecido: simples correria cotidiana, viagem de trabalho, férias, convalescença, “não vi” ou, a menos desejada das constatações, saída definitiva de cena – não sossega, apenas conforma.
Nossa última conversa foi por telefone, achei que ele estava fora de sintonia, rateando, pontos sem nexo na conversa. Parecia uma antena captando sinais misturados. Parecia uma salada sem harmonia nas frutas. Parecia que a fala perdera o sincronismo com o pensamento. Um amigo comum confirmou, “o alemão maldito” estava na área.
As mensagens por zap ainda eram lidas, deixando marcas azuis. As respostas, quando vinham, eram monocromáticas. De repente, os dois pauzinhos entraram em alerta cinza, não se transformavam mais em marcas azuis. Finalmente, apenas um pauzinho cinza para o que já não chegava ao destino, sinal de que não haveria sinal. Dias depois, a confirmação por meio de uma amiga comum. “Sentiu-se mal, foi ao hospital, ficou internado, saiu andando para casa. Mal chegou e veio o infarto. Fulminante! Nem deu tempo de voltar ao hospital”.
Fica aquela sensação de vazio. O que era já não é e não mais será. Ponto. Final! Final? A fé nos diz algumas coisas, em diversos credos. Dúvida! Sim, temos o direito de ficar nela, pois nada é garantido, nada é líquido e certo como dois e dois são aqueles cinco da canção. E nem isso é seguro.
Não há como manter a conexão entre contatos digitais e espirituais, resta o momento de deletar do mundo virtual aquele contato, pois o amigo virou apenas uma lembrança sem forma e sem conteúdo. E a gente procura em desespero algum áudio derradeiro para lembrar – todos foram deletados para liberar memória.
E a gente olha para a foto, relê os últimos posts, prestes a apagar um pedaço da própria história. E sai marcando tudo até dar o clique final, como se apagasse as luzes de um depósito de afetos, deixando para trás a escuridão do que não terá mais qualquer sequência, uma nuvem que armazenará doravante apenas saudade.
Vejo caminhões
E carros apressados
A passar por mim
Estou sentado
À beira de um caminho
Que não tem mais fim
Olho pra mim mesmo e procuro
E não encontro nada
Sou um pobre resto de esperança
À beira de uma estrada
Carros, caminhões, poeira, estrada
Tudo, tudo se confunde
Em minha mente
Minha sombra me acompanha
E vê que eu
Estou morrendo lentamente
Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Que eu existo, que eu existo...

Num esquecido jornal de ontem, tido como algo fora de moda, leio que um observatório espacial em algum lugar do planeta foi fechado temporariamente, numa operação cercada de sigilo e assombros. Depois, os cientistas explicaram que haviam captado sinais de rádio vindos de alguma galáxia distante. Diziam que, desta vez, eram muito fortes, como nunca havia sido.
Outras vozes terrestres começaram a suspeitar de uma possível espionagem da faixa de testes de mísseis do Exército americano. Outros mais animados com teorias da conspiração disseram que uma tecnologia de última geração instalada no observatório teria captado algo tão complexo que deve ser mantido em segredo – vida extraterrestre, OVNIs, sinais da morte gradual do sol...
Para apimentar o tempero, o fato de o observatório estar a menos de duzentos quilômetros do local onde ocorreu o caso Roswell – um dos incidentes mais famosos da ufologia mundial, aquele em que material de discos voadores acidentados e corpos de alienígenas teriam caído numa fazenda americana e levados pelos militares para local secreto.
Éramos poucos ali ao redor da família. Fomos saindo devagar. Larguei o jornal de ontem, esquecendo-o de novo, sem escolher lugar. Aquele amontoado de papéis impressos parecia um nobre que virou mendigo, um paletó roto e esfarrapado que nem o dono reconheceria, um retrato esmolambado da comunicação. Como se fosse vítima da sua própria teoria da conspiração, abduzido e condenado pelas novas mídias destinadas a alienígenas que não se deixam seduzir pelo cheiro da tinta que suja dedos, pelo tato naquele papel que já foi finlandês, pelo barulho contagiante das antigas redações, pela boemia obrigatória dos jornalistas depois do fechamento da edição.
Pensei na fábrica finlandesa de papel que mudou de ramo e transformou-se num gigante da tecnologia digital. Como se fosse penetra de festa. Como quem entrou no coração da besta e encontrou a saída. Contando ninguém acredita.
Já desisti de acreditar no possível, diante de tantos impossíveis críveis! Mas fiquei imaginando a respeito daqueles sinais vindos de fora da Via Láctea, de bilhões de anos-luz, seja lá onde isso fique. Eram tão fortes, como nunca antes, e assustaram mesmo cientistas, ou foram plantados na imprensa para nos assustar?
Olhei para cima e não ouvi nada, não enxerguei nenhuma onda, nenhuma possibilidade, nenhum sinal. Só captei a escuridão acima das estrelas e, daí por diante, quanto menos eu via, mais escuro, maior a necessidade de fé.
E se eram sons incompreensíveis, seriam parecidos com aqueles do sobrenatural que ouvimos nos filmes? E se fosse apenas uma brincadeira de Deus, nos permitindo ouvir um sussurro da Eternidade nos sugerindo tomar juízo antes do Juízo Final?
Desisti de pensar como seria ouvir as vozes de quem já se foi para não sei onde – será que fica a anos-luz daqui? Credo, cruz, Ave-Maria! Saravá, pé de pato, mangalô trêis vêis!

Trechos de:
Sinal Fechado (Paulinho da Viola)
Sentado à beira do caminho (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)

25/09/2018

O cubismo se transforma

Juan Gris - L'homme au café (1912)


Moacir Pimentel
Como não sou chegado à nomenclatura enigmática da História da Arte, que às vezes mais confunde do que explica, vou deixar para depois os entretantos e partir para os finalmentes nessa conversa sobre a segunda etapa da revolução cubista. Fica adiada então a teoria e, pedindo emprestadas duas obras de Juan Gris, vou antecipar, na prática, os mistérios do Cubismo Sintético.
Muito bem. Imagine uma tela cubista que represente um indivíduo dentro de um Café de Montmartre. Imaginou? Pois é. Juan Gris também imaginou, só que duplamente, em duas telas diversas mas com um mesmo nome e tema:  Homem em Um Café.
Veja, por favor, a primeira das duas telas, pintada em 1912, como uma clássica representante, embora light, do Cubismo Analítico. Nela vemos um indivíduo sentado solitário e pensativo em um belo Café diante de um copo de bebida. Embora ele nos olhe de frente, seu rosto entre a orelha direita e a mão esquerda, é formado por dois perfis. O homem está no centro do palco, no foco da imagem, todo facetado em inúmeros planos geométricos. Tudo nele foi esfaqueado e retalhado geometricamente a partir de diferentes perspectivas: as roupas, o chapéu, suas feições.
Esse primeiro dos dois Homens no Café sorve tranquilamente uma bebida metida à besta, talvez um dry Martini, ou talvez não, já que me parece que o coquetel foi enfeitado por uma fatia de fruta. A bebida mora em uma taça triangular, de design geométrico mais simples para não sobrecarregar a tela e é um aperitivo elegante, que impressiona os observadores tanto quanto o impecável fraque e a cartola do retratado. Note que o drinque também é um símbolo de status social e significa que esse sujeito está sentado aí não apenas para beber, mas para ver e, muito principalmente, para ser visto.
Porém apesar de explodir a partir da vestimenta aristocrática, desintegrando-se e transformando-se diante de nossos olhos, esse Homem no Café é totalmente reconhecível, muito mais do que o são as pessoas nos retratos feitos no auge do Cubismo Analítico por Picasso e /ou Braque, certo?
No entanto, apenas dois anos depois, em 1914, Juan Gris pintou o seu segundo Homem no Café em uma composição que é considerada uma das obras primas do tal cubismo seguinte, apelidado de Sintético.
Juan Gris - L'homme au café (1914)

Aposto que você está se perguntando: “Oi? Mas cadê o cara?
Vamos com calma! Dizem que uma imagem fala mais alto do que mil pretinhas e portanto olhe de novo, por favor, e permita que a imagem lhe fale e mostre o protagonista, o mesmo sujeito elegante do trabalho anterior, vestido nos trinques e usando a mesma cartola cuja sombra se projeta na parede à direita. Viu?
Voilà! Aí está ele silhuetado e sentado bem no centro do cenário pictórico, lendo o jornal Le Matin faz muitas horas se levarmos em consideração que a publicação diária começa azul nos sugerindo a luz natural do dia e termina da cor daquele amarelo típico da iluminação elétrica que só é ligada à tardinha.
Com a mão direita – azul! - ele mantém aberto o jornal, à esquerda. Talvez ele esteja usando um casaco azul petróleo a julgar por esse braço esquerdo que termina em outra mão vestida por uma luva negra, com a qual ele segura uma cerveja. Isso mesmo! Note a cerveja dourada de bigode branco, dentro de uma caneca de alça. Pronto, à sua frente já está por inteiro o segundo Homem do Café, lendo as notícias, tomando a sua loura gelada, curtindo a sensação dura e fria dos azulejos e do copo de vidro, provando a leveza amarga da bebida e sentindo os cheiros dos quitutes da cozinha.
Sim, já que se trata de um estabelecimento de respeito, um daqueles famosos e belos Cafés parisienses sempre presentes nos filmes e onde todo francês que se preza passa todos os dias para sentar e ler ou jogar conversa fora, tomar um café ou um aperitivo e beliscar alguma coisa gostosa.
Note que o Café em pauta não é um botequim acanhado, nada disso, pois o pintor deu destaque à textura macia e às nervuras do couro das poltronas. Onde e como?! Ora bolas, nesse retalho de couro que parece uma mancha marrom escura solta no tempo e no espaço, mas que era de couro de qualidade e brilhante o suficiente para refletir as feições e o chapéu do cliente (rsrs)
Gris também grifou a nobreza dos painéis de madeira que revestem as paredes e, bem assim, os belos veios da madeira de lei da mesa na qual o freguês está bebericando. Só que o artista, ao descrever esse bebedor de cerveja, também está nos narrando o que é um Café parisiense, o que é bebericar uma cerveja por lá e, muito provocativamente, como diabos se sente um sujeito solitário em um Café. Ou seja, não se trata só de pintura. ISSO é quase uma filosofia (rsrs)
Curiosamente, apesar das inúmeras semelhanças entre as duas cenas, entre a análise da forma na primeira e o resumo da ópera na segunda, existe uma diferença fundamental: a bebida, é claro! O segundo homem saboreia uma caneca de cerveja. A cerveja no lugar do dry martini, sinaliza uma viagem do mundo externo para o mundo interno, da ostentação para a introspecção, da análise para a síntese, da fina arte para a cultura popular : o homem não mais quer ser visto, é ele quem contempla o mundo através da leitura do jornal e dos seus pensamentos.
Estamos diante de uma múltipla passagem, ocorrida no curto espaço de tempo entre 1912 e 1914: do cubismo analítico para o sintético, de fora para dentro, do supérfluo para o essencial, da análise para a síntese e – é claro! – do martini para a cerveja (rsrs)
A pintura de Juan Gris e/ou o cubismo é um desafio intelectual, um quebra-cabeça, que de saída pode chocar e confundir mas que é perfeitamente traduzível. Juan Gris, melhor que ninguém, explicou o Cubismo Sintético com maestria :
“A verdade está além de qualquer realismo e a aparência das coisas não deveria ser confundida com sua essência.”
Ele na verdade pintou a essência da experiência que é sentar-se em um Café, ler um jornal e, ao mesmo tempo, beber uma cerveja. Pintou o jornal, a luz brincando de cores sobre suas folhas, o conforto da poltrona de couro, a beleza das madeiras, as texturas do ambiente. Juan Gris não nos queria como observadores do seu Homem no Café, mas nos convidar para entrar no quadro como se fôssemos o seu modelo, pensando na vida e abrindo o expediente numa tarde vadia.
A comparação entre as duas imagens evidencia a diferença estética entre as tais fases cubistas: a analítica - representada pelo Café de 1912 - e a sintética - exemplificada pelo de 1914. O objetivo do cubismo analítico, como o próprio nome nos esclarece, era fazer análises geométricas, promover a fragmentação das imagens em planos enquanto que o cubismo sintético buscou capturar a essência de uma situação, sintetizar uma experiência com extrema economia de elementos visuais. Nesse Homem no Café, de 1914, Gris reorganizou todos os cacos da imagem para nos dar uma poderosa impressão e nessa brincadeira a imagem já não era mais importante do que a sensação. Mas atenção!
As nossas impressões sensoriais são dados complicados e caóticos com os quais os nossos cérebros têm que fazer sentido. Ver imagens parece ser mais do que necessário em nossas vidas. Por isso tantos rejeitam o cubismo, essa forma de pintar onde em vez de receber as imagens de bandeja, temos que montar seus quebra-cabeças visuais, que procurar por peças, pistas e fragmentos usando os neurônios pois as relações físicas e lógicas dos objetos são muitas vezes difíceis de construir. As brincadeiras em qualquer estágio da criatividade cubista - sejam elas analíticas e/ou sintéticas - para uns são cansativas e para outros muito divertidas.Milito no segundo time.
Embora, como vimos, a primeira fase fosse bastante inovadora em si mesma, a última foi sem dúvida o período mais imaginativo da arte de vanguarda e levou o movimento cubista ao extremo. Geralmente se considera que o Cubismo Sintético tenha rolado entre os anos de 1912 e 1914, mas há exceções à regra (rsrs)
Juan Gris - Violon et Guitare (1921)

A Influência do Cubismo Sintético na arte diminuiu, é claro, depois da explosão da Primeira Guerra Mundial, quando muitos pintores em vez de usar seus pincéis estavam lutando e perdendo suas vidas nas trincheiras da Europa, embora muitos artistas, como é o caso de Juan Gris e Picasso, tenham continuado a evoluir, mesmo durante os anos negros. Por isso é justo dizer que esse ato final e sintético do cubismo teria ido muito além se tivesse ocorrido em tempos mais pacíficos.
O fato é que o novo modus operandi introduziu muitas novas alternativas conceituais à estética cubista já estabelecida. Aquela abordagem analítica precursora baseada essencialmente em entrelaçamentos de planos e linhas, na decomposição de um objeto em uma imagem fragmentada e em temas completamente fraturados, tudo com pouca variação tonal em uma gama limitada de cores escuras, anêmicas e silenciadas, simplesmente sumiu.
Durante a fase sintética os cubistas explodiram em cores e achataram as imagens e varreram todos os vestígios de ilusão e/ou alusão a um espaço tridimensional. Isso mesmo! No Cubismo Sintético todo o sentido de tridimensionalidade simplesmente desapareceu.
Jean Gris - Jalousie (1914)

Esse trabalho que pintor o batizou de La Jalousie – A Inveja - é conhecido também como A Veneziana e como Le Socialiste, o nome do jornal que, na imagem, aparece contorcido em harmonia com a forma do vidro de uma janela invisível. Gris pintou essa tela na cidade de Collioure, nos Pirineus, onde ele esteve hospedado do final de junho a outubro de 1914. O jornal era o da cidade e o seu nome completo era Le Socialiste des Pyrénées-Orientales.
A pintura nos mostra uma veneziana parcialmente fechada, através da qual a luz ilumina uma alta taça de vinho e lança sua sombra sobre a superfície de uma mesa de madeira. Veja como os planos de preto e cinza indicam áreas de lusco fusco, como as sombra e luz que atravessam a superfície do vidro que Gris representou usando giz azul claro e branco para fazer um pontilhado cuidadoso e obter um efeito translúcido azulado em volta da forma da mesa, nas bordas da veneziana e da taça que foi vagamente esboçada em giz branco para nos dar uma sensação de forma.
As lâminas afiadas e cuidadosamente projetadas da veneziana são precisamente ecoadas pelas bordas da mesa o que torna essa composição muito equilibrada. A densidade e angularidade dos espaços negativos - essas áreas negras rotineiramente utilizadas por Gris - emolduram e dão uma presença sólida e formal aos objetos que, escolhidos a dedo, são geométricos e agudamente delineados e mostrados de várias perspectivas: de cima e de lado. A composição é racional e rítmica e, juntamente com sua paleta suave, consegue dotar esse ambiente interior, com uma atmosfera calma e silenciosa.
Juan Gris, ao pintar essa legítima representante do Cubismo Sintético inventado por Picasso e Braque, estava consolidando sua excepcional pintura após sua primeira exposição individual, em 1912, e a assinatura de um contrato de exclusividade com o famoso marchand Daniel-Henry Kahnweiler.
Mas, como sempre, a última palavra foi do toureiro. No outono de 1913, Picasso inventou uma tela que combina as fraturas do cubismo analítico e a estrutura esquemática do cubismo sintético: uma mulher nua sentada em uma poltrona, anônima e neutra, que só não se perde no fundo da pintura graças à linha de contorno pesado que define e limita a figura. As junções entre os diferentes planos são tão profundamente projetadas para parecerem dobras e, de fato, nessa obra não há desejo, por parte de Picasso, de ocultar a técnica do cubismo sintético.
Mas as formas geométricas rígidas e lineares são combinadas com linhas curvas que emulam rendas, transparências, franjas e veludos em tons quentes. A poltrona confortável e macia que circunda o corpo da mulher dá à composição uma aparência familiar, distante da frieza da abstração. Vemos uma forma feminina com um colo largo e uma bela camisola na qual, à primeira vista, seios pendulares e maternos foram pendurados, como um daqueles colares tribais africanos. A segunda vista a gente se pergunta se os pregos não seriam mamilos extras e se Picasso não estaria retornando às paisagens sexuais (rsrs)
 
Pablo Picasso - Femme en chemise assise dans un fauteuil (1913)
O volume maciço e escultural dessa mulher primitiva sentada – dizem que ela era a “Eva” dele! – cuja cabeça é uma Esfinge com os traços faciais diminutos, os cabelos ondulados, as costelas salientes, o umbigo à mostra, a camisola sedosa, a poltrona confortável, o jornal diário, tudo isso, deixa essa composição carregada de símbolos que remetem à vida cotidiana, ao quarto, à mulher e à casa da gente. Creio que esse trabalho pode, para todos os efeitos, ser considerado como o momento em que o Cubismo Analítico se rendeu diante do Sintético. A pintura acima - que aliás chama-se Mulher de Camisola - é um dos trabalhos sintéticos mais icônicos de Picasso.
Quando o Cubismo Analítico chegou ao fim, ele já quebrara todas as regras seculares da pintura, fornecendo uma alternativa à perspectiva linear de ponto único. No entanto, quando o Cubismo Sintético começou a estabelecer seu próprio conjunto de regras, a cena artística da Europa foi tomada de assalto e realmente balançou. Porque, diferentemente do Cubismo Analítico que desmontara ou desconstruíra as figuras humanas e objetos, o Cubismo Sintético promovia a construção ou síntese, preenchendo a lacuna entre realidade e arte, interpolando literalmente partes do mundo real na suas telas.
Autênticos jornais, pedaços de papel, bilhetes de cinema, carteiras de cigarro substituíram as representações planas pintadas e partituras reais roubaram o espaço das notas musicais desenhadas, e esse processo de incorporação da real nas composições marcou um afastamento do intelectualismo, direcionando o movimento para um curso mais relaxado, popular e lúdico de estética.
Usando os símbolos da realidade, o cubismo de novo se reinventou em algo inteiramente inédito, texturado, que incorporava uma ampla variedade de materiais bastante familiares aos pobres mortais. Ao expandir o movimento para seu segundo e último ato, Georges Braque, Pablo Picasso e Juan Gris e outros companheiros de paleta, se deram a total liberdade criativa de retratar o mundo ao seu redor como queriam e descobriram uma abordagem incrivelmente inventiva para a criação de imagens. Não havia mais restrições de qualquer tipo, já que os únicos limites eram estabelecidos pela quantidade de criatividade que cada artista possuía, como veremos na próxima conversa sobre as famosas “colagens”.


23/09/2018

De novo Primavera



Ana Nunes

Desculpas por furar a fila. É por pouco tempo.

Mas não aguento não falar de flores. Nem da primavera. De variadas flores de mil cores e sortidos amores. Prima vera, de vera cor, de primevo amor. Ou é tudo a mesma coisa? Hoje!
Porque Belo Horizonte é toda cor de rosa de novo. Do mais virginal rosa bebê ao sensual e quente fúcsia.
Tudo em festa. As folhas das flores, os manacás arrebentando em cores. Como pode um raminho verde brotado da terra marrom abrir-se em florezinhas coloridas? Inesperada mágica, inimaginada natureza.
Fico encantada.
A pé ou de carro o chão é um tapete. Vejo moças varrendo as calçadas e penso: Para, para! Deixa esse caminho macio e colorido para eu desfilar meus pensamentos!
Mas as vassouras são rápidas. São de bruxas? E não leem cabeças tontas cheias de palavras quantas, só os pés calçados dançando seus caminhos.

Nem falei ainda dos jasmins debaixo da janela. A árvore redonda em verde que se cobre de branco e de perfume. Primeiro sinto o cheiro delicado e doce depois vejo as flores. Brancas, miudinhas como sopro de nuvem. Fico ali parada. Sem pensar. Só existindo. E já é tudo.
Tem Coroa-de-Cristo mostrando as garras para proteger seus bebês vermelhos. E os arbustos da calçada, hibiscos que de folhas verdes e brilhantes escondem seus brotinhos cor de laranja. Que vão virar flores grandes e macias.

Disso tudo fico sabendo a caminho da piscina.
Levanto cedo para nadar. Decidida. Mas a água da piscina azul não leu a natureza em festa. Nem liga para o sol. E desafia o céu azul de onde roubou a cor. Ingrata! Corajosa que sou, mentira, me preparo. Aviso ao corpo e à mente que a água é fria mas que nem vamos sentir. Mentira de novo. Não é que estou virando uma velhinha mentirosa?
Profano o corpo e entro. E soluço. E abafo um grito de horror e arrependimento. Esta água está boa. Boa para beber. On the rocks. Abala até o pensamento. Que fica parado esperando respirar. E vou mexendo braços e pernas no esforço de não sucumbir em águas claras. Até que a boca já adormecida me diz que é tempo de sair.

E o quentinho do sol me aquece neste domingo sem nuvens. Um bem-te-vi se desgarra das árvores e das maritacas e vem enfeitar o muro branco que me cerca. Decerto também quer se molhar mas tem medo do frio. Olha bem para meus olhos arrepiados e diz:
Bem te vi. “Bem te vi, andar por um jardim em flor, bem te quis e ainda quero muito mais. Maior que a imensidão da paz. E bem maior que o sol!”
Fico ainda mais feliz. E volto para casa sem dar acordo do caminho. Também para quê? Se vago nas nuvens ou na insensatez, esperando um beijo só mais uma vez.
E, assim, volto pra lá...


20/09/2018

Sexta feira

A deusa Friga fiando as nuvens (gravura de John Charles Dollman)



Francisco Bendl
Sexta-feira, 03 de agosto de 2.018.
O frio continua, com 7º Celsius às 10 h.
Dizem que à tarde a temperatura esquentará, chegando aos 15º Celsius.
Mas, hoje é sexta-feira, dia de lobisomem, como se dizia na minha época, e como atualmente se celebra este dia:
Dia que antecede ao fim de semana, e é quando o pessoal se larga para a noite, depois de uma semana de trabalho e dificuldades.
A vibração da sexta-feira diz respeito à tranquilidade que se terá com os dois dias próximos, sábado e domingo, ou seja,
bancos fechados, cartórios não protestarão títulos e cheques, não se irá para o Serasa e SPC.
Segunda-feira Deus pensa, e a gente corre atrás para continuar na mesma situação de carências, de salários baixos, de dívidas atrasadas, de compromissos assumidos e não cumpridos pelos mais variados e exóticos motivos.
Mas, a sexta-feira, ela pertence ao cidadão sufocado pelos problemas, pois é onde ele relaxa, toma a sua cerveja, sai com amigos ou a namorada.
E também significa muito aos casados, haja vista levar a esposa e filhos para comerem uma pizza ou jantarem fora ou irem para uma churrascaria.
Dia de se programar a alegria, os encontros, as festinhas, de se confirmar a paquera da semana, de se buscar uma nova namorada, de se fazer as pazes com a esposa e de estar com os filhos.
Dia que os viajantes voltam para suas casas, saudosos, de se reabastecerem do amor de casa e terem mais uma semana de ausência.
Dia do balanço profissional, pessoal, familiar, até onde a vida está sendo levada com decisão ou estagnada.
Dia dos happy hour, dos colegas de serviço irem para um bar e se divertirem criticando seus chefes, afora ter aquele que, indefectivelmente, imita o gerente ou diretor, e as gargalhadas soam uníssonas e divertidas!
Mas, também, sexta-feira é dia daqueles que não têm dinheiro, que não têm namorada, que são solteiros, que estão desempregados ou, mesmo casados, não têm trabalho, e de enfrentar mais um fim de semana sem alteração do cotidiano que o amassa, que o esmaga.
Sexta-feira é um dia de muito significado tanto na história quanto nas lendas:
A crença de que o dia 13, quando cai em uma sexta-feira, é dia de azar, é a mais popular superstição entre os cristãos. Há muitas explicações para isso.
A mais forte delas, segundo o Guia dos Curiosos, seria o fato de Jesus Cristo ter sido crucificado em uma sexta-feira e, na sua última ceia, haver treze pessoas à mesa: ele e os doze apóstolos.
Porém mais antigo que isso são as duas versões que provêm de duas lendas da mitologia nórdica.
Na primeira delas, conta-se que houve um banquete e doze deuses foram convidados. Loki, espírito do mal e da discórdia, apareceu sem ser chamado e armou uma briga que terminou com a morte de Balder, o favorito dos deuses. Daí veio a crendice de que convidar treze pessoas para um jantar era desgraça na certa.
Segundo outra lenda, a deusa do amor e da beleza era Friga (que deu origem à palavra friadagr = “dia de Frida”, sexta-feira). Quando as tribos nórdicas e alemãs se converteram ao cristianismo, a lenda transformou Friga em bruxa. Como vingança, ela passou a se reunir todas as sextas com outras onze bruxas e o demônio. Os treze3 ficavam rogando pragas aos humanos.
A minha sexta-feira está calma.
Não pretendo sair de casa. Afora a cidade ser pequena, sem muitas atrações, o conforto do lar à minha disposição é um fator importante para eu não mudar a minha rotina.
A Marli concorda comigo, pois ela também é caseira, e sexta-feira é o dia que ela desacelera de suas funções, indo deitar mais cedo para ler.
No sábado, invariavelmente, um filho vem nos visitar, quando não os três e meus cinco netos, então a baderna, a alegria, a vibração.
Anoitece.
As fábricas de calçados, na minha cidade, param ao meio dia e só retornam na segunda-feira.
A rua onde resido está calma, sendo possível ouvir o “som do silêncio”.
Clima propício para um idoso, um velho, que não tem mais o ânimo de antes, da alegria que o caracterizou, da vontade férrea em se divertir e, com ele, a sua família.
Tudo tem o seu início e tudo acaba.
O fogo da vida está fraco, não aquece mais, e escrever tem sido a ocupação, no lugar de se esperar a morte chegar, simplesmente.
Viverei até a próxima sexta-feira?
Sem que eu me preocupe com esta possibilidade de continuar vivo ou não encerro esta crônica, e me refestelo na minha poltrona pronto para assistir a Netflix e seus seriados completos.
Encontro-me preparado para conhecer o outro mundo, se é que ele existe ou, então, se serei recebido pelos meus antepassados, onde a saudade é muita, afora o quanto que teríamos para conversar.


17/09/2018

Passado a limpo

Xilo impressa em papel artesanal - Ana Nunes



Ana Nunes
O papel para mim é interessante, lindo e fundamental.
É o impasse.
É a textura que me chama e o branco que me angustia.
É a crise que se instala.
É a certeza do que o imaginado nunca será o mesmo do feito.
É a escolha do papel adequado.
É a escolha da tinta mais delicada ou mais forte assombrando olhos e mentes, ou preto e branco diluídos nos cinzas de meio tom.
É a indecisão dos primeiros traços.
E, por fim, a surpresa do desenho pronto. Pronto mesmo? Aí reside o perigo, o saber parar.

É sobre este papel aparentemente simples que vamos conversar.
Esse papel que começou longe na distância no império chinês e longe no tempo com Sai Lun, um funcionário do rei Ho-Tino em 105 DC. Encarregado de procurar um meio mais maleável e fácil de manejar, ele tentou diversos materiais e técnicas até chegar à folha feita de trapos de seda. Vindo de um chinês só podia mesmo ser de seda. E certamente de alguma concubina infeliz. Trapos devidamente apodrecidos, cozidos com as fibras desagregadas em pasta e moldadas em folha.
Novidade levada para o oriente, Bagdá, Damasco, Egito e Marrocos pelos árabes e para a Sicília e a Península Ibérica pelos mouros, sempre investigando materiais locais.
As primeiras fábricas só surgiram na Itália no século XIII e no Brasil em 1809. Sempre atrasadinhos esses brasileiros colonizados!

A maioria dessas fibras utilizadas vêm do reino vegetal. São fibras envolvidas em lignina e distribuídas pelo corpo da planta em feixes, redes ou mesmo em cilindro contínuo. Que nada mais é que a celulose que organizada e entrelaçada nos dá a folha de papel. Toda planta pode vir a ser papel, dependendo do tipo e da qualidade de papel desejado.

Já fiz papel de talo de mamão, delicado amarelo quase bege, de pita parecendo um Toblerone claro todo pintadinho de marrom, de agapanto, maravilhoso, manchado, ele próprio um desenho a la Pollock, espada de São Jorge e outras agaves, uniformemente amarelado e delicado, de cana que dá um papel mais rústico, de gengibre de papel fino, delicado e sedoso, quase branco, de palha de milho flocado com o cabelo dourado, um assombro, mamona, cabacinha de coqueiro, canela de veado num lindo tom de marrom.
Papel de mamão / pita / fibras com papel fotográfico
Papel de agapanto / gengibre / fibras tingidas
Papel de espada de São Jorge / mamona / canela de veado

A essas fibras maravilhosas misturei sobras de papel fotográfico, coador Melitta, ou só de retalhos de papéis variados.
O mais difícil sem dúvida é o de trapo de algodão demorado para apodrecer e desmanchar as fibras. E o mais exaustivo o de alamanda de talos duros, teimosos demandando marteladas e mais marteladas sem fim até desmanchá-los.

E ainda podemos tingi-los também com pigmentos vegetais extraídos do fruto da lobeira, do vinhático, barbatimão e ruão. E outros mais. Ou fazer um branqueamento.

O processo para a coleta das plantas é cheio de segredos. Quase superstição. A época boa é na lua minguante quando o caule está mais seco, os líquidos estão na raiz e as brocas aí hibernadas. A planta fica mais porosa e permite uma absorção maior da soda cáustica usada no cozimento.
Para a tintura é o contrário, a melhor lua é a cheia, quando se precisa da planta com todos os líquidos para uma cor mais escura. Dizemos que é quando a planta “sangra” mais.

Muitos desses conhecimentos vieram da cultura popular repetidos ao longo da vida, passados de pai para filho. Não devem nunca ser subestimados. Por exemplo, na touceira da bananeira não podemos cortar o tronco mãe central porque ela morre. Devemos cortar as filhas, que ficam à direita e esquerda. Assim como as flores que devem ser colhidas em libra, gêmeos e aquário, e grãos e frutos em leão, áries e sagitário! Alguma coisa a ver com meses que têm ou não a letra erre no nome...

O processo propriamente dito é extenso mas divertido. Quase sempre acontece com amigos juntos, rindo de bobagens conversadas. Talvez por isso mesmo.
Depois da coleta na lua minguante, limpar o material, cortar em pedaços e colocar de molho por um dia inteiro. Depois de escorrida e lavada a planta é cozida com soda cáustica por algumas horas.

fotografias Ana Nunes

Por desprezar o equipamento de segurança, EPI, quase perdi a visão quando uma lasca de soda caiu no meu olho. Só não a perdi pela proteção da lente de contato que preservou a íris. O resto ficou como um bife de fígado. O pior foi dirigir do campus até a cidade, chorando sem parar e enxergando com um olho só. E depois ficar sem lentes de contato por seis meses e com um pouquinho de visão dupla. Tudo recuperado com o tempo!
Voltando ao papel, há de se acrescentar à pasta batida nos grandes liquidificadores industriais fungicida, bactericida e aglutinante e água bastante.
fotografias Ana Nunes

Espalhar esta pasta nas telas do tamanho que se quer a folha. Nesta hora se decide a gramatura do papel de acordo com a quantidade de pasta.
fotografias Ana Nunes

Tirar o excesso de água com esses paninhos absorventes de limpeza e virar delicadamente em grandes pedaços de pelon fazendo uma pilha. Prensar por uma noite para tirar toda a água. Pendurar no varal que fica uma lindeza! Depois é só prensar de novo e o papel está pronto. É só usar. Em carta, convite, envelope, copa de abajur, capa de livro. O que você quiser.

E descansar bastante até partir para o próximo.
Como dizem alguns, enquanto houver bambu vai flecha.