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29/11/2019

A vista da torre mais alta

fotografia Moacir Pimentel

Moacir Pimentel 
O edifício London Bridge Tower -  Torre da Ponte de Londres - é, por enquanto, o arranha-céu mais alto da União Europeia com seus trezentos e dez metros de altura e oitenta e sete andares. O prédio, de forma triangular e inteiramente revestido de vidro, foi projetado pelo arquiteto Renzo Piano e concluído em 2012. Logo os londrinos apelidaram-no de “Shard of Glass” – ou Estilhaço de Vidro - porque é com um caco de vidro que ele realmente se parece. Há seis anos essa estranha pirâmide se ergue brilhante em Southwark, a ribeira sul do Rio Tâmisa, oferecendo aos londrinos e aos visitantes estupendas e longas vistas.
Nós visitamos essa maravilha arquitetônica em um dia frio de dezembro, cujo céu não estava particulamente azul, mas mesmo com as nuvens cortando o nosso barato a visão panorâmica da cidade de Londres e das terras circundantes foi de tirar o fôlego. Lembro que ao sair do elevador, no sexagésimo nono andar, continuei andando de um lado para o outro, por um tempo, tentando processar a paisagem através dos painéis de vidro , antes de pegar minha câmera e começar a clicar (rsrs)
O mirante do edifício, conhecido como The View - A Vista! - se tornou, ao lado da Roda Gigante e dos arranha-céus Gherkin e Walkie Talkie, um dos melhores lugares para se ver Londres das alturas, em trezentos e sessenta graus.
fotografia Moacir Pimentel

Helene Hannf, com certeza, não pôde ver a sua amada Londres assim, do alto, e a essa altura da “franquia” já sabemos que as Londres antiga e a moderna estão literalmente lado a lado e que não se pode mais nem imaginar nem vivenciar uma sem a outra.
Tenho um grande e antigo encanto pela velha Ponte da Torre, que não me canso de fotografar. Simplesmente gosto de saber que ela está bem ali, desde que a sua primeira versão foi erguida pelos romanos cinquenta anos após o Cristo. Já nos tempos do prezado Shakespeare a Ponte era um próspero shopping center, habitada por mais de uma centena de predinhos, muitos com lojas no piso térreo e lares no primeiro andar e até mesmo por um palacete de quatro andares de nome “Nonesuch House” assim chamado porque não havia mesmo “nada como aquela casa” em toda a Europa, nem outra ponte parecida sobre outro rio no vasto mundo.
Londres é uma visão de rara beleza, principalmente quando no inverno, por volta das quatro da tarde, começa a anoitecer. A dica é esperar pelo crepúsculo quando a cidade se ilumina e então a gente se lembra dos versos de John Keats na abertura do seu longo poema Endymion.
“O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento”.
 
fotografia Moacir Pimentel
Não sei quantas vezes assistimos ao por do sol sobre as muitas pontes ou das margens do rio, ou das suas águas em barcos e ferries indo e vindo de Greenwich, ou da London Eye, ou do alto de outros prédios de apelidos carinhosos como o  One New Change – “Uma Nova Mudança” (rsrs) – esse bem ao lado da Catedral de São Paulo.
Não importa onde eu esteja perto do Tâmisa sempre persigo a danada da ponte com os olhos e a fotografo compulsivamente. Admito que naquelas paragens às vezes sou acometido por uma profunda antipatia por bobices modernosas e que fico um tanto impaciente quando não estou do lado de fora, ao ar livre, flertando e clicando adoidado o horizonte, as pontes, os anoiteceres de uma das cidades mais apaixonantes do mundo.

Mas enquanto o horizonte, especialmente ao longo das margens do rio, está passando por uma grande transformação, alguns pedaços da cidade continuam como os vi pela primeira vez, nos anos oitenta. Aliás as chaminés, os imensos parques, os palácios são como eram há quinhentos anos quando pertenciam a Henrique VIII e, de quebra, as ribeiras do rio ainda oferecem bares históricos para se tomar um conhaque quando bate o vento.
O fato é que, desde ícones antigos como a Torre e a Ponte e recantos obsoletos e desconhecidos que fotografo durante meus passeios a pé pelo labirinto de becos tortuosos nos quais os avanços da moderna Londres ainda não penetraram, até fenômenos mais recentes como a Adele (rsrs) pense em uma cidade intrigante, de contrastes, de esquinas diversas, de arquitetura de cair o queixo e de bairros charmosos e pacíficos como Notting Hill e Camden.
Aprecio especialmente as longas vistas a partir de Hampstead Heath, que dizem ter influenciado C.S. Lewis ao escrever As Crônicas de Nárnia com suas centenas de hectares de charnecas e bosques, locais para piqueniques e ciclovias. O bairro é tão tranquilo que nem parece fazer parte de Londres e os seus belos edifícios antigos são sempre usados como pano de fundo para filmes de Hollywood, incluindo Les Miserables.
Também não posso deixar de mencionar Highgate e não apenas por ser um fã da arte mortuária e porque o seu cemitério, do qual Karl Marx é um dos residentes, é um dos mais vastos e fascinantes do mundo, mas por suas ruas arborizadas e atraentes casas georgianas e pubs amigáveis.
O sistema de transporte público torna tudo em Londres de fácil acesso apesar dos atrasos no metrô (rsrs) Tudo bem que as gigantescas multidões na Oxford Street parecem estar indo sempre na direção oposta à nossa e que os restaurantes no Soho estão sempre lotados, mas as infinitas opções de comida deixam qualquer um tonto tendo todas as cozinhas do mundo como possibilidades para o jantar. Ninguém é capaz de ficar entediado em uma cidade que oferece uma tal gama de atividades culturais e atrações intermináveis e que é sempre magnífica quando vista d’ água.
Gosto da cidade exatamente porque é tradicional mas vanguardista, impetuosa mas romântica, materialista mas poética e, acima de tudo, perversamente irreverente. E porque é muito bom ir de barco pelo rio até Greenwich no inverno, quando ela é invadida por aquela luz cinzenta peculiar.
fotografia Moacir Pimentel

É bem bom embarcar em um trem para um dia preguiçoso em Bath, Oxford, Cambridge, Brighton ou Windsor. É impossível não se divertir nos mercados de rua de Portobello e Camden - com direito a peixe e a batatas fritos - e nos parques reais. Londres, na verdade, tem mais espaços verdes e parques do que qualquer outra grande cidade do mundo, garantindo aos seus habitantes e visitantes retalhos do campo e uma fuga da vida da cidade sem ter que sair dela fisicamente. Como explicar a benção que é poder desfrutar de segurança e acessibilidade para explorar a cidade e vizinhanças a pé enquanto se absorve a energia que irradia da arquitetura arrojada e a nostalgia contida nos marcos clássicos, a atmosfera, o caráter e a história de suas áreas distintas?
fotografia Moacir Pimentel

Mas, pedindo vênia a Dona Arquitetura e aos aço e vidro contemporâneos, tenho um afeto especial pelos pátios escondidos e anônimos que mudaram muito pouco desde dias esquecidos, pelas paisagens surpreendentes que me aparecem de repente pela frente como cápsulas do tempo de paredes desgastadas e onde quase se escuta, ao cruzar seus limiares, o murmúrio das conversas que ali rolaram através dos séculos...
E pelas inúmeras e famosas colinas – os “hills” – que circundam a cidade como a do Traidor, por exemplo, de onde os conspiradores da famosa e frustada Conjuração da Pólvora pretendiam ver, de camarote, o Parlamento explodir. Especialmente notáveis são os horizontes que se descortina do alto da colina Muswell, ao norte da cidade, a partir do seu parque e, bem no seu coração, do Palácio de Alexandra – que os nativos chamam de “Ally Pally” - onde rolam os festivais de hard rock no verão. Apesar do barulho e das multidões ainda assim é muito bom ver Londres inteirinha estendida a nossos pés, faça chuva ou faça sol, frio ou calor.
fotografia Moacir Pimentel

Em lugares assim, mais serenos, ainda tem passarinho piando. E falando em som, Londres tem uma paisagem musical e, ao flanar pelas suas esquinas, se pode reviver a trilha sonora de toda uma vida desde, é claro, “London Calling” do Clash até a Adele cantando maravilhosamente “Home Town Glory”.
Quando atravesso a Ponte Waterloo, por exemplo, a canção do Kinks explode na minha cabeça - “Waterloo Sunset’s Fine” - logo abafada pelos Rolling Stones berrando em Picadilly Circus “I Can’t Get No Satisfaction”. E flanando da Londres romana para a shakespeariana e dela para a vitoriana de Charles Dickens, of course que se chega à dos Beatles de quem sou fã de carteirinha: yeah, yeah, yeah!
Bem, todos sabemos como é o amor. Começa com fogos de artifício, muitos aaahs e ooohs e uis, luxúria e paixão. Depois, se tivermos sorte, esse sentimento permanece para sempre embora apaziguado como acontece com o meu caso sério londrino (rsrs)
O certo é que, se caminho na direção de Primrose Hill, a minha mente assovia “The Fool on the Hill” - that’s me! - do álbum Magical Mystery Tour. Como estar em Londres e não lembrar da capa daquele LP dos Beatles que mostra os ídolos da nossa meninice/juventude naquele cruzamento zebrado do lado de fora dos estúdios da Abbey Road?
fotografia Iain MacMillan

Frank Doel, o herói do filme 84, Charing Cross Road, no final da década de sessenta escreveu para a escritora Helene Hannf:
“Tivemos um verão agradável com mais do que o número usual de turistas, incluindo hordas de jovens fazendo peregrinação a Carnaby Street. Observamos tudo de uma distância segura e, embora eu deva dizer que gosto muito dos Beatles, que bom seria se seus fãs não gritassem tanto.” (rsrs)
Mas como fazer um fã aborrecente não “Twist and Shout” e quem esquece aquele momento que mudou a vida, quando... “I Saw Her Standing There”?
Tudo bem que como o Bruce e o Paul todos nós somos “velhinhos em formação” mas, ao fim e ao cabo, as bandas inglesas da minha vida – The Beatles, The Rolling Stones, Pink Floyd, Led Zeppelin, Queen, Dire Straits e, é claro, Sir Elton John se transformaram na música de meus filhos. E em junho de 2005 , no Twickenham Stadium, durante o show do U2 que assistimos juntos, o som deles se transformou no meu.
Até mesmo o Caetano, quando o pau quebrou nos anos setenta, homenageou a capital inglesa com a sua “London, London”: “While my eyes go looking for flying saucers in the sky”....
fotografia Moacir Pimentel

Só que, paradoxalmente, a Londres das cápsulas voadoras da London Eye com seus estilhaços e colmeias de vidro e aço continua sendo aquela da Helene, que foi palco para a vida e o trabalho de alguns dos maiores escritores, dramaturgos e poetas da humanidade.
Apesar de ter tentado lhes mostrar a Londres dela percebo que terminei escrevendo mais sobre a minha. Talvez porque traduzir Helene não seja tarefa fácil, mesmo vendo o filme e lendo o livrinho 84, Charing Cross Road várias vezes e acompanhando as suas andanças pela cidade, onde finalmente conseguiu chegar após ter experimentado o gostinho do sucesso e recebido “um gordo cheque da Reader’s Digest”. Devo confessar que, para mim, Helene Hannf permanece maravilhosamente misteriosa como os túneis outrora usados pelos Cavaleiros Templários medievais perto da Fleet Street ou as sombras da noite em Westminster.
Finalizo citando alguns dos quatrocentos versos do longo poema A Terra Desolada, da lavra do americano naturalizado inglês T. S. Eliot que a Helene apreciava e que talvez tenha iniciado o modernismo na palavra escrita, fazendo um sumário do pensamento daquela “geração perdida” de escritores como Ernest Hemingway e Francis Scott Fitzgerald...
“E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando.”
Será? Talvez, numa próxima franquia, se você ainda não tiver se cansado de ler...


24/11/2019

Tempos Interessantes

Monges no scriptorium (imagem boudello.be)



Wilson Baptista Junior 
Relendo alguns posts antigos meus no blog, encontrei um de uns cinco anos atrás, que a maioria dos leitores de hoje não deve ter lido, e que achei que ainda pode ser interessante, então tomo a liberdade de republica-lo com as devidas atualizações (que, para dizer a verdade, quase ficaram maiores do que o original).
Naquela época estava passando uma semana “asilado” na casa de meu pai onde moravam também meus irmãos Paulo e Osias e a Pat, mulher do Paulo, enquanto se refazia o sinteco de nosso apartamento. No café da manhã, conversando com o Paulo - ele é fotógrafo, professor  universitário de fotografia, mestre e doutor em Artes, hoje depois da morte de papai é quem cuida e organiza o grande acervo de negativos que ele nos deixou, e a conversa com ele é sempre interessante) falávamos sobre a aceleração exponencial da produção de informação no mundo de hoje, e sobre como a geração atual é talvez a primeira que consegue ver essa aceleração acontecendo de dia para dia.
Uma porção de coisas que, quando éramos garotos, líamos nos livros de ficção científica hoje é realidade e muitas já estão até mesmo ultrapassadas, e nós nos perguntávamos sobre o que os escritores de ficção científica de hoje vão escrever agora.
Todo o mundo já percebe a revolução que a World Wide Web e os mecanismos de pesquisa, dos quais o Google é o mais conhecido, produziram na maneira de procurar informações. Mas o mais interessante agora é ver a expansão do acesso a estas informações pelos telefones celulares, hoje mais poderosos do que a maioria dos computadores de não muitos anos atrás. Aquele maravilhoso rádio (depois TV) de pulso que os antigos leitores do Dick Tracy invejavam hoje está ao alcance de quase todo o mundo com o Whatsapp e seus similares. As ligações telefônicas internacionais caríssimas foram substituídas pela conversa cara a cara onde ainda transmitimos imediatamente fotografias e vídeos de um lado para outro do mundo. As assim chamadas “redes sociais”, impensáveis duas ou três décadas atrás, hoje infernizam a nossa vida jogando para escanteio a privacidade mais elementar e dando a qualquer um o antigamente ambicionado caixote de sabão para subir e discursar para o mundo sobre qualquer assunto, com a diferença de que o orador, antes exposto fisicamente cara a cara aos seus ouvintes, hoje se esconde atrás da distância e muitas vezes de um covarde anonimato.
O grande Isaac Asimov, num de seus romances de ficção científica, The Naked Sun (1957) imaginou um planeta, Solaria, onde os colonizadores humanos vivem, por escolha, quase completamente isolados uns dos outros, com todos os trabalhos auxiliares realizados por robôs, considerando o contato pessoal como “sujo” e comunicando-se através de hologramas em três dimensões. Ao ver as pessoas hoje, com dezenas, centenas, milhares de “amigos” no Facebook e isoladas umas das outras pelas telinhas mesmerizantes dos seus smartphones, me pergunto se a criação do Asimov está assim tão distante da realidade...
Com a transmissão de dados em alta velocidade pelas redes de telefonia sem fio não precisamos mais estar perto de um computador para estarmos permanentemente conectados à Web. Podemos nos informar (bem ou mal) o tempo todo do que nos interessar, e, mais ainda, sermos influenciados e dirigidos o tempo todo por informação contextual "empurrada" para nós por sistemas que sabem, graças ao GPS de nossos telefones, por onde estamos passando (na verdade, perto dos estabelecimentos de quais anunciantes que patrocinam os nossos mecanismos de pesquisa que achamos tão naturais).
E essa tecnologia vai aumentando sua penetração; hoje, mesmo com a distribuição de renda tão desigual que tem (ou talvez até por causa dela) e apesar da nossa periclitante situação econômica, o Brasil já tem bem mais telefones celulares do que habitantes; quem poderia ter previsto isso há quinze ou vinte anos? E o caminho da conexão à internet é se popularizar assim também. Com a vinda dos novos padrões de conexão sem fio (como o tão falado mas ainda pouco visto 5G) daqui a pouco estaremos vivendo a anunciada “internet das coisas”, onde quase tudo em volta de nós estará conectado (e, infelizmente, vulnerável a ataques externos). E já se fazem pesquisas para conectar o mundo digital diretamente às nossas mentes.
Já é tão natural que nem pensamos mais nisso dirigir nossos carros ajudados pelo GPS de nossos telefones, em vez dos aparelhos caros e complicados que usávamos há poucos anos.
Há uns trinta e tantos anos atrás, me lembro de assistir a uma apresentação da IBM sobre um novo tipo de memória de bolha que estava sendo desenvolvida (não foi para a frente) que na época o apresentador dizia que poderia condensar todos os livros já publicados num cubo de um palmo de lado, e fiquei sonhando em ter todos os livros que quisesse ler, e toda a música também, num computador na mesa à minha frente. Hoje não tenho exatamente isso, mas quando viajo levo uma biblioteca no bolso no meu Kindle e tenho a Web e o YouTube no computador, no tablet, no telefone, e qualquer amigo no mundo a alguns cliques de distância...
Mas como esses avanços influenciam as gerações que vieram e virão depois das nossas?
Quantas vezes ouço dizer: "Para que ter livros hoje, para que guardar informações, se quiser saber alguma coisa está tudo na internet?”
Quando Gutemberg produziu sua prensa com tipos móveis e permitiu o acesso das multidões aos livros que antes só os ricos podiam se dar ao luxo de mandar copiar à mão nos “scriptorium”, causou uma revolução no conhecimento que mudou a história da humanidade.
Agora a Web está causando outra, só que se a primeira permitiu a todos serem leitores, a de agora permitiu a todos serem autores e publicarem seus escritos para o mundo ver. O que poderia significar um enorme avanço na difusão do conhecimento infelizmente significou também que todo o mundo que queira, sabendo ou não alguma coisa sobre os assuntos que resolva discutir, pode colocar suas ideias, refletidas ou irrefletidas, estudadas ou de improviso, rasas ou aprofundadas, à nossa frente em pé de igualdade. Como o usuário pode avaliar a qualidade e a exatidão das informações, ou a capacidade e a honestidade intelectual dos autores, desse tsunami de palavras e imagens que o assola a cada segundo?
E tem mais, se agora para procurar uma informação o usuário achar que basta procurar no Google, e se com essa conectividade aumentada essa facilidade vai se tornar quase um outro sentido dele, como a visão e a audição, o que isso vai gerar na evolução, até mesmo genética, da espécie? Caminharemos para seres humanos quase desprovidos da memória (porque não precisarão mais dela) e com um arranjo de sinapses otimizado para conexão em vez de raciocínio? Seremos ainda gente ou simplesmente cyborgs mentais ou computadores de carne e osso? E quem nos programará?
Hoje as pessoas chamam a Web simplesmente de “internet”, desconhecendo o magnífico trabalho de Tim Berners-Lee, que em 1989 criou a primeira ligação entre um cliente e um servidor de dados usando um protocolo que chamou de “Hypertext Transfer Protocol” (aquele misterioso http:\\ que vemos de vez em quando nos endereços da Web) e tornou possível que de qualquer lugar do mundo pudéssemos nos comunicar entre todos os servidores conectados através da internet, e criou a grande teia de informação que se tornou indispensável ao mundo de hoje e que achamos tão simples e natural...
Uma concepção artística da World Wide Web (imagem madeupinbritain)

Um complemento interessante a essa conversa é descobrir que da imensa quantidade de informação hoje armazenada na Web, por estranho que pareça a maior parte dela não está facilmente acessível aos mecanismos normais de pesquisa.
Michael Bergman, em 2001, num artigo intitulado "The Deep Web: Surfacing Hidden Value", criou o nome "A Web Profunda" para designar essa grande quantidade de informação por cima da qual os mecanismos de pesquisa passam sem penetrar. Outros pesquisadores já a tinham chamado de "A Web Invisível". Ele comparou o pesquisar na Web a passar uma rede pela superfície de um mar de informações, apanhando uma grande quantidade delas mas sem nem tocar nas guardadas nas médias e grandes profundezas.
O problema deste acesso consiste em que os mecanismos indexadores, conhecidos como "web crawlers", programas que percorrem a web a partir de um ponto qualquer de entrada e vão seguindo as ligações entre um artigo e outro e estabelecendo os caminhos para que os buscadores os encontrem, dependem para funcionar de poderem seguir as ligações que encontram de um artigo para outro. Um artigo sem ligações com os que já foram pesquisados não será alcançado pelos crawlers.
Mas isso nos trouxe problemas maiores do que simplesmente não podermos aproveitar todas as informações que já foram digitalizadas.
Hoje todo o mundo ouve falar da “Dark Web”, porque, claro, a capacidade de armazenar informações que os buscadores normais não encontram foi logo apropriada pelos governos e também pelo crime, e dentro da Deep Web escondem-se inúmeras redes e subredes contendo todo o tipo de informação utilizada por criminosos, de pedófilos a grandes traficantes de drogas e de armas, às quais só consegue acesso quem tenha pelo menos a chave de um dos seus endereços (não indexados pelos buscadores normais).
Depois do artigo de Bergman diversos pesquisadores e companhias comerciais, como o próprio Google, tem se dedicado a desenvolver mecanismos que permitam penetrar e indexar as profundezas da Web. Podemos esperar que eventualmente suas profundezas sejam integradas à superfície. Mas ainda falta muito trabalho, e é uma corrida entre o avanço dos novos mecanismos, a quantidade de informação diariamente acrescentada ao imenso repositório da Web e os muitos e diversos interesses de que algumas dessas informações não sejam acessíveis a nós pobres mortais.
Como diziam os antigos chineses, vivemos em "tempos interessantes"...

21/11/2019

Perguntas íntimas

imagem www.flickr.com/photos/30343551@N00/27630934808


Heraldo Palmeira

Eu pensei na solidão dos bares que a gente frequenta em busca de se livrar da solidão que nos atormenta em qualquer lugar.
Eu pensei nos tragos que vão sumindo dos copos sem destino certo, que nos elevam em voos incertos, insetos trôpegos atraídos pela lâmpada do meio da rua – não, não é a Lua, a gente descobre na ressaca do dia seguinte.
Eu pensei que você estava tão longe! Lembrei que falou do frio que fazia nos cantos da Holanda que passavam por aqueles seus dias. Lembrei das estrelas que não deviam estar no seu céu de inverno e que também não estavam no meu. Eu lembrei que você disse que gostaria de morar ali, comigo.
Senti falta da Lua, aquela bem grande, redonda, plena, esplêndida, companheira das noites de verão que nos levava à rua para olhar aquela dança, ela nua atravessando o céu do fim da tarde até a madrugada. As nossas almas nuas. A sedução refletida nos seus olhos e nos meus, portas escancaradas para todos os arrepios destemidos, estrada sem desvios, sem trânsito retido. Autoestrada de tudo que resolvemos deixar seguir.
Eu pensei em tanta coisa que não pensava pensar, na saudade de estar perto sem poder me aproximar. Ainda bem que falamos dos nossos medos, ainda bem que deu tempo escapar deles!
Eu ouvi as mesmas músicas que sempre me viram do avesso... Ouvi só para me endireitar, me acalmar, me fazer doer o peito de arrependimento de escutar, porque, nota a nota tocada, aumentava a tristeza de saber que iriam terminar em pouco tempo, parar naquele silêncio que diz tanto de tudo. Fechei os olhos, resignado.
Escapamos do quase fim porque, quase perdidos, pusemos a música para tocar de novo e prometemos ajustar a partitura. Que bom que não desistimos na primeira vontade de desistir. Que bom que ficamos parados na certeza de não ir. Que bom que não fomos para nunca mais.
Eu lembrei do som do mar como um pescador tentado a ficar em terra firme, embora enlouquecido para seguir em frente e ser tragado pelo amor que não consegue controlar. Navegar é preciso, viver não é. Como pensamos que seria, como queremos ser?
Eu me perguntei como você estaria agora. Redundante. Certamente linda como nunca conseguiu deixar de ser, porque as belezas são belas porque são e pronto!
Eu lembrei dos nossos cheiros carregados nos corpos sedentos e marcados pelas memórias olfativas. Eu lembrei dos afetos dos cinco sentidos aguçados, dos sextos sentidos antenados, cautelosos como os felinos. Eu lembrei suavemente, como quem não esquece. Eu lembrei...
Eu me perguntei se você estaria bailarina, rodopiando levemente sobre a ponta dos pés num canto de quarto de hotel, como costumava fazer só para me matar de encanto e de desejo. Só para me chamar num canto e...
Eu me perguntei se estava lhe vendo, pequenininha, minha pequenininha, ma petite que cabia inteira no meu bote de macho protetor, nos beijos delicados de simples reconhecimento no escuro sonolento da noite alta, só para lhe dar a certeza de que eu estava ali velando seu sono. A postos para você nunca mais acordar sozinha.
Eu lembrei dos nossos corpos exaustos. Sim, eu estava ali. Eu era quem você sempre quis a vida inteira, antes mesmo de me conhecer. E eu quis estar ali a vida inteira, a ponto de aparecer quando chegou a hora certa de ser reconhecido de imediato. Sim, sua imagem era apenas o meu espelho que eu ainda não havia mirado.
Eu pensei se você voltaria luminosa para me encontrar sob a deslumbrante luz de Lisboa, verso e prosa que se escreveria para nós e para todos os amantes pois os nossos rostos teriam os traços perfeitos de quem conheceu o amor.
Eu lembrei da luz daquele abajur sobre a mesa do quarto do hotel naquele fim de tarde tão bonito, o Tejo lá no horizonte. Eram as luzes perfeitas para você deitada no chão, escultural, distraída cuidando de seus afazeres, sem saber que me despertava fazeres impublicáveis que imprimi no papel de seda de outra das nossas noites perfeitas.
Eu pensei no quanto fui feliz depois de atravessar o perigo de não chegar. Eu pensei no quanto lhe quis todo tempo e em todas as curvas vencidas até a reta ampla do amor.
Sim, nós trilhamos todas as curvas das nossas geografias perdendo mapas e limites pelo caminho. Eu nem lembrei de fronteiras, nem consegui pensar no que seria depois, apenas fui indo. Qual sentido haveria sem você?
Eu ri o riso do nosso eterno humor, provocando por provocar, só para ralhar de brincadeira, só para tirar a pagode. Eu entendi a fortuna daquilo. Eu vi naquilo uma ode à vida.
Eu ouvi os sons que nos cercavam – a aflição delicada dos bandolins mal disfarçando a intensidade do tremor; o sopro sereno das flautas como o vento nas folhas lá fora; o bálsamo da cama de violinos como uma nuvem de conforto para o sono. Era eu me despedindo, quase morto de saudade. Era a música dos bares disfarçando a solidão. Era a ausência de som que emana das estrelas. Era a luz apagando. Era o sono, era o sono. Era tudo tocando baixinho. Era tudo chegando onde sempre esteve e a gente não enxergava. Era pouso. Era repouso. Era tudo!
Pela marca que nos deixa
A ausência de som que emana das estrelas
Pela falta que nos faz
A nossa própria luz a nos orientar
É a solidão nos bares que a gente frequenta
Não me fale do seu medo
Eu conheço inteira a sua fantasia
Quando eu não estiver por perto
Canta aquela música que a gente ria
É tudo que eu cantaria
E quando eu for embora, você cantará

Trechos de:
Estrelas (Oswaldo Montenegro)


16/11/2019

As histórias de Londres

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel 
“Era triste a madrugada para a qual eles saíram; o vento soprava com força e a chuva caía a cântaros; nuvens sombrias e espessas velavam o céu; a noite toda fora chuvosa, porque grandes correntes de água sulcavam a rua. Tênue clarão anunciava a proximidade do dia, entristecendo ainda mais a cena; a pálida luz da aurora enfraquecia a luz dos lampiões, sem clarear os tetos sombrios e as ruas solitárias; não havia sinal de vida no bairro; todas as janelas estavam cuidadosamente fechadas e as ruas que eles iam atravessando, desertas e silenciosas.
De todos os personagens que Dickens tão magistralmente nos descreveu, nenhum desempenhou um papel tão importante em seu trabalho quanto a sua cidade, a Londres que tanto amava: a sua agitação, as promessas de um brilhante futuro, as ruas sujas e os extremos da pobreza e da riqueza vividos por seus habitantes. Todos os biógrafos do escritor concordam que a cidade foi essencial e central para o seu trabalho. Ele se referia a ela como a sua “lanterna mágica”.
Virginia Woolf sustentou que “nós remodelamos nossa geografia psicológica quando lemos Dickens”. Pois é. E nenhuma personagem é desenhada mais vividamente em seus romances do que a própria Londres. Das estalagens nos arredores da cidade, passando por suas colunas e jardins até o Tâmisa, todos os aspectos da capital são descritos na sua obra. Desde menino, Dickens gostava de caminhar por Londres, absorvendo suas diferentes atmosferas, degustando suas paisagens, sons e cheiros, observando sua gente e maravilhando-se com a agitação, a exuberância das ruas. Ele gostava de explorar os recantos e caminhos escondidos e encontrou inspiração em alguns dos bairros mais famosos e notórios da cidade.
A Londres vitoriana foi a maior cidade do mundo. Enquanto a Grã-Bretanha estava fazendo a Revolução Industrial, sua capital colhia tanto os benefícios quanto sofria as consequências. Em 1800, a população de Londres era de cerca de um milhão de almas. Esse número cresceu para mais de quatro milhões em 1850.
Enquanto as áreas da moda e do luxo - como as ruas Regent e Oxford - cresciam para um lado, as novas docas necessárias para a cidade, que era então o centro do comércio mundial , eram construídas no outro. Talvez o maior impacto no crescimento de Londres tenha sido a chegada da ferrovia na década de 1830, que passou a deslocar milhares de pessoas com facilidade, acelerando a expansão da cidade.
O preço desse crescimento explosivo e da dominação do comércio mundial era a falta de aquecimento e a imundície, os cheiros, a comida e a água contaminadas e a atmosfera insalubre que Dickens nos descreve em tantos romances, nos quais os ricos e os pobres transitavam juntos pelas ruas cheias de estrume e cobertas pela fumaça de carvão produzida por centenas de milhares de chaminés juntamente com a fuligem que parecia se instalar em todos os lugares. Em A Pequena Dorrit Dickens descreve a chuva em Londres:
“No campo, a chuva teria desenvolvido mil aromas frescos, e cada gota teria tido sua brilhante associação com alguma forma bonita de crescimento ou vida. Na cidade, desenvolveu apenas cheiros velhos e era uma adição doentia, morna, suja, manchada e miserável para as calhas”.
O escritor nos conta como, em muitas partes da cidade, o esgoto fluía a céu aberto, em calhas, até o Tamisa enquanto os vendedores ambulantes vendiam seus produtos e aumentavam a cacofonia dos ruídos das ruas. Estima-se que na década de 1850, havia dezenas de milhares de vendedores ganhando a vida nas ruas de Londres, vendendo frutas, vegetais, flores, peixes, tortas, pães e uma variedade de outros produtos que compravam para revender nos grandes mercados, como o Borough Market, o Covent Garden e o de peixe em Billingsgate.
As pretinhas de Dickens nos falam dos ricos e remediados, de como os batedores de carteiras, assassinos, prostitutas, bêbados, mendigos e vagabundos formavam uma multidão colorida para qual a higiene pessoal e as roupas limpas não eram uma grande prioridade. Para os asiáticos, com quem comerciavam, o cheiro dos corpos não lavados dos ingleses era vomitativo.
Vários surtos de cólera em meados do século XIX, juntamente com o episódio que entrou para a História como o “Grande Fedor” de 1858, quando o mau cheiro do Tâmisa levou o Parlamento ao recesso, exigiram que providências fossem tomadas. Até 1854, pensava-se que as doenças se espalhavam através do ar. Quando a cólera surgiu na área do Soho em 1854, o Dr. John Snow juntou-se com o reverendo Henry Whitehead para provar que o contágio se dava através da água contaminada.
“O latir dos cães, o balir dos carneiros, o grunhir dos porcos, os gritos dos mascates, as exclamações, as pragas, o fedor, as rusgas, os sinos e as conversas que se ouviam de todas as tavernas, o rumor da gente que ia e vinha, o movimento de tantos homens de aspecto repelente e barba inculta, andando de um lado para outro, acotovelando-se, esbarrando-se, tudo contribuía para ensurdecer e tontear um espectador.”
O mercado de gado de Smithfield foi finalmente transferido da cidade para os matadouros em Islington em 1855. Sir Joseph Bazalgette, engenheiro-chefe da nova Junta Metropolitana, desenvolveu um plano de saneamento básico, concluído em 1875, que finalmente garantiu aos londrinos esgotos adequados. Além disso, foram implementadas leis que impediram as empresas que abasteciam água potável de usar as partes mais contaminadas do Tâmisa e obrigavam-nas a executar algum tipo de filtração.
Eu pensava, por exemplo, depois de ler quase todos os romances de Charles Dickens que a Londres vitoriana fosse predominantemente escura e sombria e repugnante graças aos canais carregados de esgoto fedorento e pestilento que atravessavam a Ilha Jacobs onde o personagem Bill Sykes encontrou o seu fim no livro Oliver Twist.
James Abott McNeill Whistler - Brown and Silver Old Battersea Bridge (1859) /
Nocturne in Blue and Gold: Old Battersea Bridge (1872) Tate Gallery

Até que me deparei com as telas e gravuras do rio Tamisa feitas pelo pintor americano James Whistler e descobri a visão das mesmas docas que Dickens descreve em Our Mutual Friend - O Amigo Comum e percebi em cores a revolta do rio.
O pintor chegou ao seu país adotivo no final da década de 1850, em plena Revolução Industrial, quando o rio dava testemunho da modernização e da poluição. Da janela do seu estúdio o pintor contemplava as pontes, um rio arenoso e sujo, uma via navegável, cruzando uma Londres cinza e úmida e a pintou palpável na sua verdade de tom, em cenas precisas, mas evocativas.
Mas as pontes de Londres, as barcaças cheias de carga e passageiros escorregando através das águas turvas, as silhuetas escuras contra o céu azul profundo, as fábricas que brotavam nas margens lançando sua névoa no ar possuem uma beleza estranha e essas figuras sombrias quase fantasmagóricas que se amontoam sobre as pontes, talvez para assistir um por do sol, assim com Dickens e Whistler, sabiam disso.
Caminhar, flanar, perambular pelas ruas de Londres sempre me remete a Charles Dickens. A cidade é o lugar certo para se ter uma visão mais próxima e exata da personalidade de um homem que era uma mistura complexa de benevolência e determinação, afeto e manipulação. Um homem que conseguiu se levantar das cinzas de uma infância traumática e ascender às alturas, tanto assim que, no momento da morte prematura, ele era, sem dúvida, o segundo mais famoso dos vitorianos, só perdendo para a rainha.
Cada um dos lugares que ele visitou, todas as cenas que ele testemunhou e todas as pessoas que ele encontrou em seus numerosos e exploratórios passeios de Londres iam sem escalas para sua memória, eram arquivados até que, às vezes anos mais tarde, ressurgiam para disparar sua imaginação e inspirá-lo na criação de uma série de personagens imortais e cenários literários atemporais.
Tal foi a agudeza do seu olhar para os detalhes que ainda é possível – não importando mais de um século e meio de modernização! - ir às ruas de Londres armado com um pouco de imaginação e os bytes de memórias de livros como Oliver Twist, David Copperfield e A Canção de Natal e ver as ruas exatamente como elas teriam sido percebidas pelos moradores da metrópole vitoriana.
fotografias Moacir Pimentel

O romance Bleak House - A Casa Soturna começa com a palavra predileta do autor: “Londres!”. Para Copperfield, na cidade havia “aqui e ali algumas luzes brilhando através de mais maravilhas e perversidades do que em todas as cidades da Terra”. Londres é para Charles Dickens o que é Paris foi para Balzac e Dublin para Joyce. As suas descrições de favelas e becos estreitos colonizaram a minha imaginação a tal ponto que a cidade permanece tão estridente como Bill Sykes, e suas  incoerências e inconsistências estão sempre à vista, a tapeçaria perfeita onde Dickens criou suas histórias de amor e perda, arrependimento e recompensa, saltando do comum para o raro e maravilhoso.
Londres era a musa do escritor, aquilo que realmente o inspirou a escrever sua fabulosa obra. Mas seu relacionamento com ela era bipolar, ora sombrio ora colorido, um clássico exemplo de amor e ódio.
Ainda se caminha pela Strand e a Fleet Street na companhia de David Copperfield e ao longo do Hatton Garden com Oliver Twist, mergulhando nos pátios iluminados por gás sobre os quais lemos tanto tempo faz : “Quem entra aqui deixa o ruído para atrás”.
Terá sido em Fleet Street que Dickens escondeu o seu grande segredo: Ellen Ternan, uma jovem atriz de apenas dezoito anos por quem enlouqueceu de tal forma que largou a esposa, Catherine, depois de vinte anos de casamento e dez filhos? As cenas de tribunal e os processos intermináveis, inclusive aquele por violação de direitos autorais que lemos nas suas páginas rolaram nas Cortes da Rua Fleet?
O certo é que ao desbravar os becos minúsculos no coração da velha cidade, podemos imaginar Ebenezer Scrooge fumando seu cachimbo a caminho de casa em uma véspera de Natal e se quer atravessar o limiar de algumas hospedarias e tabernas antigas da Fleet Street para virar uns copos em homenagem ao prezado Pickwick.
Hoje nessas antigas pousadas – os Inns – onde o passado parece ter encalhado, a música alta, as máquinas de tudo e os onipresentes canais de esportes nas TVs parecem destoar tanto quanto Bill Sikes em um orfanato vitoriano (rsrs)
“Os botequins, interiormente iluminados a gás, já estavam abertos. Pouco a pouco, se foram abrindo outras lojas, e algumas pessoas passavam na rua; grupos de operários iam para o seu trabalho; homens e mulheres levavam à cabeça cestos de peixe; carroças de legumes puxadas por burros; carrinhos à mão cheios de carne; mulheres leiteiras com as celhas nos braços; em suma, uma fila contínua de gente que se dirigia com a sua mercadoria para os arrabaldes a leste da capital.”
Tão forte foi o interesse de Dickens por Londres, tão frequente era a sua reivindicação das ruas da cidade e as referências a seus bares e albergues, a seus edifícios públicos e monumentos, que cada uma de suas obras possui um ar londrino, é de alguma forma permeada pela atmosfera local, de modo que, se estamos com Nickleby em Yorkshire, ou com David Copperfield em Suffolk ou com os Chuzzlewits em Wiltshire, sentimos que por tais paragens estamos só de passagem, temporariamente, e que logo o autor nos levará de volta para a tela incomparável contra a qual ele definia as aventuras de suas numerosas criaturas: o coração palpitante de Londres .
É claro que muitos dos locais mencionados nas obras de Dickens já não existem, que na chamada Londres dickseniana geralmente só se pode ver onde as coisas costumavam estar embora elas já não estejam lá, mas ainda se pode ter um vislumbre das narrativas, ali e acolá.
“Muitos lampiões estavam apagados; algumas carroças se dirigiam lentamente para Londres; de quando em quando, passava uma diligência coberta de lama, e o cocheiro, por divertimento, dava uma lambada no carroceiro, que, não tendo tomado a direita da rua, expunha a diligência a chegar meio minuto mais tarde.”
Um bom exemplo dessa viagem no tempo é  The Old Curiosity Shop - A Loja de Antiguidades.
fotografia Moacir Pimentel

Localizada na saída da Strand essa lojinha charmosa construída com a madeira de navios antigos, remonta ao século XVI e milagrosamente sobreviveu ao incêndio de 1666 e aos bombardeios nazistas. Dickens morava no bairro e, diz Dona Lenda, supostamente teria se inspirado nela para o romance A Loja de Antiguidades. Na verdade, a loja só foi batizada assim alguns anos depois da publicação do livro. Agora funciona como uma sapataria bem peculiar.
Ou o badalar do sino da torre do relógio da igreja de St Dunstan-in-the-West, aquele que despertou Scrooge para sua nova vida no final de A Canção de Natal ou, de novo, pela visão uma das ruas mais belas e antigas de Londres: a Fleet Street por onde o Sr. Sikes, arrastando Oliver consigo, abria caminho por meio da chusma compacta e dava pouca atenção ao tumulto, que era para a criança coisa nova e surpreendente...”
Mas antes de chegar ao fim este passeio ainda nos renderá uma última conversa...