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31/08/2017

No rastro de Agosto



Ana Nunes
Belo Horizonte explode em cores.
E eu me repetindo para falar, com as mesmas palavras, de uma nova primavera. Mas não posso me calar.
Porque ipês muitos se mostram em suas mil cores de amarelo a rosa. Alguma quaresmeira tardia deixa um pouco de roxo na fantasia do tempo. Também restos do outono inverno se mostram nessa quase primavera. Estes restos de inverno colocado nas folhas secas pegam carona no vento das tardes de agosto. E, marrons, verdes e vermelhas douradas, passeiam pelos telhados, pelas calçadas e pelas ruas. Estalam quando ando nelas e quase me desculpo.
Fazem montinhos ao pé das árvores implorando pelo novo tempo já cansadas de existir. Enfeitaram a natureza desses meses e agora querem voltar à terra e alimentar outras cores.
Até o Manacá no jardim do prédio escandaliza o olhar e fantasia a alma rôta com suas pequenas flores rosas brancas roxas.
As avenidas desfilam enfiadas de copas multicores. Alguma ruazinha calçada de pedras surpreende com cena irreal. No meio do barulho de carros com buzina e gente apressada que corre para trabalhar para viver para trabalhar mora uma árvore tranquila e colorida. Que para tudo em volta, até você, para mostrar que beleza existe. E compete com a paz para fazer felicidade.

Minha alma de cansada em branco e preto, carente de crenças e de fé, enlouquece nessas árvores coloridas e larga de mim. Já nem sou eu. Atravesso as ruas sem olhar e passo o carro em sinais vermelhos. Ou fico parada quando abrem em verde.

A passarada sabe mais que eu. Está em alerta e as maritacas sem respeito algum fazem de domingo todos os dias da semana. Sempre verdes e barulhentas não importa a estação do ano. Não amadurecerão jamais. E os pássaros miudinhos, marrons ou pretos e amarelos, antes silenciosos ao entardecer, se recolhem nas árvores entre o trançado das folhas e as conversas de passarinhos. Mini gorjeios de bicho cansado de voar.
No amanhecer que já nasce ensolarado Bem-te-vi dizendo de si em alto e bom som. Na árvore em frente à minha janela tem um pai ensinando o filho. E ficam para a gente aquelas tentativas indecisas de um cantado bemtevi magrinho e hesitante.
Promessas de primavera!

As noites frias se despedem pouco a pouco e deixam uma brisa quase morna tomar o seu lugar. Como um conforto sereno que se pudesse abraçar e beijar e agradecer. Um arrepio carinhoso. E durante o dia o calor se faz bem quente com avisos de verão.
Os sorveteiros caladinhos fazem planos de novos sabores. E gavetas generosas acolhem os agasalhos pesados. Mantas macias são postas de lado porque um novo tempo se anuncia. Frutas coloridas, pêssegos e sensações de uvas doces e mangas perfumadas. Brotos brancos cobrem troncos de jabuticabeiras cheias de esperanças. Nós e elas.

E por isso, coloco tintas em cima de pintura já existida. Pinto janela de Vermeer com cores de Modigliani. E prendo nela um gato preto em pedaços de pastilha de vidro, e coleira de strass. Ele vigia atento e me conta da chegada.






29/08/2017

É preciso encontrar saídas para o Brasil, sem ódios e sem medos

 
El Greco - São Francisco recebendo os estigmas
Antonio Rocha
Muitos falam e escrevem em ódio, demonstram raiva disso ou daquilo e assim, grande parte da população repete o vocábulo. Em meio à atual crise, direitas, esquerdas e centros referem-se a este fato que está ocorrendo no Brasil de forma grave. Pode-se argumentar que isso acontece em todos os países, mas como vivo aqui, vou me ater ao nosso país.
Teólogos explicam, esotéricos justificam: desde as mais priscas eras, antigos hindus, em suas multimilenares literaturas védicas, já falavam no Kali Yuga, uma época de ignorância espiritual. O termo em sânscrito significa “Idade do Ferro”, também indica tempo de discórdias múltiplas, egoísmos vários.
RESOLUÇÕES – É interessante que as grandes mídias falam nesse ódio generalizado, políticos deitam suas falações votáveis, mas, concretamente, objetivamente, poucos falam das possíveis soluções, até prova em contrário. Se o ódio é um problema sério, certamente deve ter suas soluções, o ódio deve apresentar seus caminhos a serem resolvidos… pois todo problema, toda questão traz em si a resolução.
Vou apresentar as minhas possíveis soluções, que, claro, não são minhas, mas as que sigo. Como sou um estudioso e pesquisador das Religiões e suas Filosofias Comparadas, vou fazer a sugestão do Ocidente e do Oriente, que considero belíssimas, não apenas para lermos como peças literárias, mas como normas de vida.
A primeira é a conhecida Prece de São Francisco de Assis, um poema anônimo que surgiu na Idade Média e depois foi atribuído ao famoso santo. É uma oração que faço e vivencio desde criança. Aprendi na antiga Rádio Mundial, que ficava na Av. Venezuela, no Rio de Janeiro, através do radialista Alziro Zarur, um espiritualista que nos anos 1950 criou a Legião da Boa Vontade. Criança eu ia lá com minha mãe no programa de auditório e ele recitava a poesia oração, que tem várias versões. Alguns afirmam que a autoria é de um anônimo do início do século XX. Penso que neste caso, o que importa mesmo é o belo conteúdo que nos faz refletir sobre a cordialidade, a educação, a fraternidade:
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó mestre, fazei que eu procure
Mais consolar que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se vive
Para a Vida Eterna.
Vejo-a como uma poesia oração universal, ecumênica, serve para qualquer caminho ético. E se a pessoa é ateu/atéia, pode identificar o Ecossistema como Senhor e a Natureza como Senhora.
LITERATURA – Note-se que toda oração escrita é fruto de Literatura e como tal podemos estudá-la, pesquisá-la, via leituras.
Aos que não gostam de religião ou filosofias similares, peço perdão pela transcrição do acima colocado, mas vejo que é uma possível saída para o ódio em que nos encontramos. Requer esforço, determinação para ultrapassarmos nossos grosseiros egoísmos, vaidades, apegos. Não é fácil, mas não custa tentar.
Buda Sentado - Museu Britânico

Resumo a solução Oriental, nas propostas do Buda:
“O ódio não é pelo ódio vencido
Somente pelo amor é sufocado
Esta é uma verdade antiga
Até hoje ainda inigualada.
O erro não cometas
Somente boas ações produzas
Que o teu coração seja puro.
Esta é a verdadeira Doutrina
Ensinada por todos os Budas
Que para sempre perdura!”
O novo caminho é por aí, defender, abraçar e pôr em prática propostas concretas, que implicam em soluções perenes e palpáveis, sem ódios nem rancores
Santa Clara - afresco na igreja de Assis

Quem sabe aí teremos tempos mais claros, como pede a bela prece de Manoel Bandeira para Santa Clara (Oração dos Aviadores):
"Santa Clara, clareai
Estes ares.
Dai-nos ventos regulares,
de feição.
Estes mares, estes ares
Clareai.

Santa Clara, dai-nos sol.
Se baixar a cerração,
Alumiai
Meus olhos na cerração.
Estes montes e horizontes
Clareai.

Santa Clara, no mau tempo
Sustentai
Nossas asas.
A salvo de árvores, casas,
E penedos, nossas asas
Governai.

Santa Clara, clareai.
Afastai
Todo risco.
Por amor de S. Francisco,
Vosso mestre, nosso pai,
Santa Clara, todo risco
Dissipai.
Santa Clara, clareai."



27/08/2017

Reminiscências

O autor, aos cinco anos de idade (acervo Francisco Bendl)

Francisco Bendl
Tivemos recentemente postados alguns artigos de extrema qualidade, abordando sobre a romântica lua e os leques, dois poderosos motivos que renderam elogios merecidos aos seus autores, Ana Nunes e Palmeira.
Pois ambos me deram a ideia de trazer à baila ou para recordarmos inesquecíveis momentos e episódios, épocas e modismos, as tais lembranças do passado, que se vão longe, e que contribuíram à construção de uma infância e juventude, se não mais alegre do que esta havia mais distração, mais opções de diversão, e algumas delas tanto úteis quanto criativas.
Evidente que espero nos comentários a respeito auxílios que complementem a minha memória, e cuja intenção desta postagem é exatamente mergulharmos nos tempos de antanho, em busca das belas passagens que marcaram indelevelmente a nossa existência!
E retorno profundamente no tempo quando, no início da década de cinquenta, assisti o célebre desenho de Walt Disney, A Dama e o Vagabundo.
A cena onde ambos cachorrinhos estão sentados à mesa, à beira do rio, em um restaurante romântico e sugam o mesmo fio de massa e seus focinhos se tocam é antológica!
E surgiu o álbum com as figurinhas, que eram trocadas antes das matinês, aos domingos à tarde, mais adiante com o poderoso Os Dez Mandamentos e o impactante Ben Hur!
Mais ou menos na mesma época, início dos anos cinquenta, o extraordinário western Os Brutos também Amam, que diziam que eu era sósia do ator mirim Brandon de Wilde, que trabalhou neste filme fantástico e cuja música fez sucesso no mundo inteiro:
Memoráveis eram as épocas de se soltar pandorgas ou pipas ou papagaios, e as diversas formas que tomavam, dependendo da arte de cada construtor!
As varetas ou taquaras, o papel encerado, as cores escolhidas, o formato de cada pandorga, em caixão, retangular, trapezoidal, em forma de águia... no entanto, a técnica para que voasse alto era ao rabo, a cauda, que lhe dava estabilidade junto às guias onde era amarrada a fieira!
E o jogo de pião, os carros feitos de latas de azeite ou aquelas embalagens de compensado muito fino, onde eram vendidas as geleias ou chimias, como as denominamos no RS.
Havia o indefectível jogo de bolinhas de gude, e dois modos:
Triângulo ou gude, sendo a peça mais importante a “joga”, aquela que acertávamos as bolinhas apostadas.
E, claro, o futebol com bola de meia!
As de borracha, cada “boleio” que acertasse o oponente, machucava, deixava a perna do cara vermelha, mas pulava muito, era rebelde demais.
E luxo mesmo eram as bolas de couro, vermelhas/amareladas, reluzentes, que eram vendidas desde a nº 1 até a 5, a oficial, com seus gomos salientes e bico escondido entre eles para enchê-la de ar!
E as bicicletas... havia verdadeiros ases, que as faziam derrapar nas curvas e tinham um equilíbrio incrível!
Tá, o tal insuperável BAMBOLÊ??!!
Guri, guria, jovens, idosos ... quem não se aventurou em colocá-lo na cintura e rebolou?!
Na indumentária havia as Sete Vidas, os guids (tênis com a boca alta), e aqueles que chamávamos de colegiais, invariavelmente nas cores marinho e branco, para educação física!
Agora, a gurizada detestava eram as calças curtas, com os suspensórios impedindo que arriassem e mostrassem as partes pudendas do fedelho!
E faço um repto com os meus colegas e leitores deste blog extraordinário:
Quem se lembra do que eram as “reúnas”??!!
Marcaram época os uniformes colegiais, as calças azuis marinho e camisa branca para os guris, e saias plissadas na mesma cor para as gurias e blusas brancas com um laço vermelho na gola, com sapatos pretos e meias brancas.
O jogo As Amarelinhas servia para a gurizada se mostrar para as gurias, e quem já mostrava importantes habilidades como dançarino mais adiante.
Mas, no RS, havia uma competição um tanto doida quando eu era piá:
O inverno era mais rigoroso indiscutivelmente do que é hoje, então era mais corajoso e forte, aquele que ia para o colégio SÓ DE MANGAS CURTAS, sem casaco algum!
Claro que não saía de casa semipelado, ia se despindo pelo caminho, chegando ao colégio nessas condições, tiritando de frio, mas suportando o quanto desse a baixíssima temperatura!
Depois que houve um surto de gripe violenta entre a gurizada, um dedo-duro (a delação premiada começou neste episódio) nos entregou, e terminaram os célebres desafios de homem de gelo!
Que não se recorda do Trio Maravilhoso Regina?!
Sabonete, talco e colônia?
A pomada Minâncora?
O Óleo de fígado de bacalhau(!), que tínhamos de tomar, Emulsão de Scott?!
Bom era o Biotônico Fontoura, sem dúvida, quando não nos metiam goela abaixo o torturante ÓLEO DE RÍCINO!
Os sonhos dourados eram imitar os caubóis, com os gibis à disposição oferecendo vários desses heróis:
Bill Dinamite, Billy the Kid, Kid Colt, Gene Autry, Roy Rogers, com o seu estupendo cavalo branco, Zorro e Tonto e, claro, Tarzan, Capitão Marvel, Flash Gordon, o Príncipe Valente, além dos insuperáveis Capitão e seus sobrinhos Hans e Fritz!
Os barbeiros conseguiam cortar os cabelos dos pestes porque passavam filmes do Gordo e o Magro, únicos, incomparáveis, e Charles Chaplin, o gênio, simplesmente, misturado volta e meia com Buster Keaton, divertidíssimo.
Havia a série Brigada 8, o Vigilante Rodoviá¡rio, nacional, de grande sucesso, junto à sua Simca Chambord e seu cachorro policial, Lobo!
E Rin Tin Tin? Lassie?
E o classic 77 Sunset Street?! Route 66?
Enfim, são tantas as lembranças que em um artigo somente seria impossível descrevê-las, onde me fixei na década de cinquenta, e me vindo à boca o gosto da Grapette, do Crush, e a latinha que a minha mãe carregava consigo permanentemente de pastilhas Valda.
Aliás, há um gosto amargo de nostalgia que sinto volta e meia, que alivio me lembrando de uma época onde o mundo experimentava um progresso e desenvolvimento alucinantes, com as geladeiras, máquinas de lavar roupas, as TVs, e os célebres radinhos à pilha, japoneses, que levávamos para os campos de futebol vendo o jogo e ouvindo as suas transmissões ao mesmo tempo.
Atualmente, o romantismo do passado foi sendo substituído pelos celulares, Internet, TVs de tela plana a Led e 4K, smart, 3D, de várias polegadas, carros luxuosos e velozes, roupas de grife, filmes intimistas, com o cavalheirismo cada vez mais distante e em desuso, filhos desobedientes e pais descuidados, negligentes, que facilmente se separam, abandonando a prole ao Deus dará!
Corroboram tais fenômenos negativos, o comportamento dos poderes constituídos, Legislativo, Judiciário e Executivo, que servem como exemplo de como não se deve ser e de como não se deve fazer, mas essa é outra história, onde neste oásis cultural está vedado abordar este assunto trágico e destruidor do povo e do país!



25/08/2017

Modi le Maudit

Amedeo Modigliani (imagem i.telegraph.co.uk)
Moacir Pimentel 
Centro de interesse artístico, Paris atraía muitos pintores estrangeiros no começo do século XX como, por exemplo, os emigrados judeus Amedeo Modigliani, Chaim Soutine e Marc Chagall. Embora tenham ficado amigos e se inspirado nas recentes inovações artísticas, foram todos originais e suas pinturas são incomparáveis desafiando rótulos e imitadores.
Soutine e Chagall eram oriundos do Império Russo e Modigliani da Itália e, por motivos maiores do que aqueles meramente culturais, continuaram a ser forasteiros no cenário artístico parisiense. Eles compartilhavam o isolamento da alteridade, sem nunca realmente pertencer a um só grupo ou a aderir a um programa único.
Hoje conversaremos sobre o primeiro dos emigrados: Amedeo Clemente Modigliani. Ninguém realmente conheceu esse orgulhoso judeu italiano que permaneceu uma estranheza artística única dentro do seu tempo, nem entendeu porque ele escolheu deliberadamente o caminho da autodestruição.
Com raízes familiares ligando-o a Baruch de Espinoza, ele era conhecido por seus amigos como o “Modi”, um apelido tenebroso por causa da sua estranha homofonia na língua francesa com "maudit", que significa amaldiçoado.
O maldito Modi, um dos homens mais bem apessoados de Paris, morria de vergonha da amarga pobreza na qual sobrevivia, geralmente bêbado, drogado ou ambos, recitando Baudelaire e Verlaine de cor e salteado, dançando com os postes de luz, fazendo piruetas pelas ladeiras de Montmartre abaixo, tirando as roupas nas festas, dormindo em caixotes, pintando retratos extremamente sensíveis ou com caras de paisagem e nus icônicos de mulheres com pescoços de cisne e corpos alongados, enquanto tossia até a morte.
Modigliani, um filho de pais sefarditas de velha e erudita estirpe e cultivado em Livorno, mudou-se como expatriado para Paris louco para fazer parte da cena artística da cidade que era, então, o dínamo mundial da vanguarda. E como dizia Jean Cocteau:
“Não esperemos pela vanguarda!”
Somente em Paris se poderia encontrar então aquela mistura exquisita do muito novo - o cubismo e a escultura de Constantin Brancusi! - do antigo e santificado - o Louvre! – e do exótico colonial - as coleções de arte africana e cambojana sugadas das colônias francesas no Musée de L'Homme.
No trabalho de Modigliani, todas essas influências surgem acima da cultura italiana, herdada do gracioso desenho de Botticelli e daquele sienense, dos nus de Giorgione e especialmente dos de Ticiano. Vê-se também nas coisas de Modigliani a força da pegada de Giorgio di Chirico que propagava aos quatro ventos que já não se podia falar de pintura italiana moderna, que ela se resumia a di Chirico e Modigliani, “mas nós somos franceses”
O resultado de todas essas referências e influências na obra de Modigliani foi um amálgama um tanto lânguido, tremendamente atraente, do velho e do novo, que hoje quase não parece radical, mas que o foi em seu tempo. Apesar da indiferença quase completa mostrada por colecionadores franceses às suas primeiras telas, Modigliani é hoje arte moderna para pessoas que, na verdade, não gostam muito do modernismo.
O pintor conhecia a fragilidade da vida e é por isso que a sua arte ressoa uma tristeza profunda que, no entanto, jamais cai no macabro. Havia sempre presente nela uma elegância, uma sensação de silêncio, de distanciamento e refinamento.
Modigliani perseguiu sua própria visão artística durante os sete anos que dedicou à pintura, depois de ter experimentado a escultura por outros quatro. A sua primeira tela data de 1913 e os anos que lhe restavam foram interrompidos pela guerra e pela péssima saúde. Mesmo assim, ele conseguiu pintar mais de duzentos e cinquenta óleos.
Devo confessar que não sou um devoto de Amedeo Modigliani – dele já vi coisas estupendas, verdadeiras obras primas, ao lado de outras muito maçantes – e que sobre o trabalho dele tenho opiniões contraditórias, mas a popularidade do artista é inquestionável e duradoura e quase obsessiva não se rivalizando com a de van Gogh, é claro, mas construída com o mesmo tipo de material.
O público de arte é chegado aos retumbantes fracassos que, após a morte, conseguem finalmente trilhar o caminho do sucesso. No caso de Modigliani consigo pensar em várias razões para justificar tanta idolatria. As lendas do modernismo primitivo, atuando em um público sentimental com um fraco para o martírio auto induzido, produzem esse amor nebuloso e eterno por Modi.
O certo é que, quando chegou de Livorno, mesmo bêbado e drogado, Modigliani agitou ateliês, salões, bares e camas na Paris de 1906 até sua morte em 1920. André Salmon escreveu que quando ele aparecia em qualquer lugar metade dos presentes sorria e suspirava:
“Modi chegou!”
Enquanto a outra metade desmaiava. Ele deve ter sido carismático: um judeu sefardita italiano exótico, um sedutor culto e amoroso que era amigo de infância de Dante.
É interessante vê-lo pintado pela amiga e brilhante pintora cubista Marie Vorobieff no meio da galera, como a personalidade dominante e o macho-alfa da tribo, de peito nu e copo na mão, no mural entitulado de "Homenagem aos Amigos de Montparnasse”.
Em torno de Modigliani se reconhece a sua companheira Jeanne Hébuterne, Diego Rivera, Leopold Zborowski, Chaim Soutine, Moise Kisling, Ilya Ehrenburg, Max Jacob e a própria pintora, mais conhecida como Marevna. 
(imagem www.wikiart.org)

A excelente aparência do artista também contribuiu para a lenda já que Dona História descreve Amedeo como “um jovem de beleza quase sobrenatural”. Vaidoso, ele fazia questão de andar bem vestido e não perdoava em Picasso, por exemplo, os grossos e deformados agasalhos de lã, as calças puídas e os casacos remendados.
Perto do bonitão Modi, os pobres Moose Kisling, Chaim Soutine, Marc Chagall e Picasso e os demais habitantes do Bateau Lavoir e da Ruche - as lavanderia e colméia de pequenos ateliês caindo aos pedaços em Montmartre e depois em Montparnasse - deviam parecer anões esfarrapados.
Poucos homens já encarnaram melhor do que Modigliani o arquétipo do pintor desvalido, o mito romântico do artista brilhante e transgressor, do criador amaldiçoado pela vida dissoluta, do belo boêmio de muitos amores, do gênio incompreendido que se refugiou no vinho e no absinto e no ópio e no haxixe, cuja história é curta, mas intensa, dramática e memorável e marcada por ataques de raiva e de agressão sem sentido.
Mas, a bem da verdade, a doença e a pobreza não prejudicaram em nada o desempenho sexual do rapaz com uma série de parceiras: outro ingrediente da lenda!
Entre elas estava em lugar de honra a jovem poetisa russa Anna Akhmatova. 
(imagem pt.pinterest,com / wikipedia)
Modigliani jamais pintou Anna e – dizem! - desenhou-a assim toda nua só de imaginar. Pudera! Quando se conheceram a moça estava com o marido em Paris e em lua de mel. Talvez por isso os enamorados tenham passeado tanto no Jardim de Luxemburgo juntinhos e debaixo de um “enorme guarda-chuva preto velho recitando Verlaine”, como Anna poetou anos depois.
O que se sabe através de registros históricos, é que ela era uma beldade que literalmente virava as cabeças masculinas nas ruas de Paris e que do amante escreveu:
“Ele era diferente de qualquer outra pessoa no mundo."
Quando o casal de recém-casados russos - finda a lua de mel!- partiu de volta para a sua São Petersburgo natal seguiu-se uma torrente de cartas. Modigliani não costumava se incomodar a ponto de escrever para suas amantes - e foram muitas, antes e depois de Anna - e então podemos considerar esse intercâmbio de pretinhas deles bastante extraordinário.
No ano seguinte a apaixonada missivista voltou a Paris sozinha e alugou um apartamento perto da igreja de Saint-Sulpice onde durante vários meses a paixão foi consumada e ela escreveu o verso final do romance. E vida que segue...
Com Beatrice Hastings, uma escritora e crítica literária e teosofista inglesa que se encantou perdidamente pelo italianinho e que Modigliani em dois anos de relacionamento de tão enamorado retratou nada mais nada menos do que quatorze vezes. 
(imagem alchetron.com)
Beatrice, que talvez tenha sido o primeiro dos Nus Sentados de Modi, por sua vez, escreveu sobre o amante:
"Encontrei-o no Café Rotonde. Ele sempre tinha um livro no bolso: Os Cantos de Maldoror de Lautrémont. Um personagem complexo: um porco e uma pérola. Encantador, ergueu o boné com um gesto bonito, corou e me pediu para ir conhecer o seu trabalho. E eu fui.”
Bem, acho que a moça não teve escolha: o Modi e o uruguaio Conde Lautréamont juntos, um pintor bonito e um escritor que se esgotou em blasfêmias e metáforas esplêndidas, ambos sem limites, ambos bárbaros civilizados, de fúria elegante e vandalismo engravatado era mesmo uma combinação irresistível e letal (rsrs)
Beatrice tivera casos sérios com Ezra Pound e amizades coloridas com André Breton e Picasso. Dizem que ela fazia entalhes na cabeceira da cama para manter o registro de seus amantes.
É difícil imaginar essa mulher altiva e independente e feminista como uma infeliz vítima da fúria bêbada de Amedeo. Mas notoriamente ele a arrastava pelos cabelos enquanto ela quebrava as cadeiras mais próximas.
Devido ao temperamento orgulhoso de Beatrice, Modigliani chamava a amante de milady e jocosamente pintou-a intitulada de Madame Pompadour, em uma tela quase cubista, na qual o rosto da moça é descrito simultaneamente dos dois lados – frente e perfil – rodeado por colagens e inscrições muralistas. Uma tela interessante que difere do conjunto da obra. 
(imagem www.modigliani.org)
O retrato se rebela contra a costumeira pobreza dos fundos do artista embora mantenha a sobriedade habitual da cor de Modigliani. Além de preto e branco, apenas três tons são usados. Ironicamente, e talvez ternamente, a valente Beatrice foi retratada usando um dos chapéus ingleses “impossíveis”, dos quais Modigliani zombava.
Infelizmente, conhecer esse caso de amor e ler todo esse “chocolate com pimenta” não torna mais expressivos os demais retratos que Modigliani fez dela. Biografias intrigantes não têm o dom de aprimorar pinturas.
O último amor de Modigliani foi Jeanne Hebuterne, uma filha da mais legítima e católica burguesia parisiense.
 
(imagem wikipedia)
Jeanne Hébuterne, pintada por Modigliani na tela acima em 1918, é conhecida por ter sido a mais retratada das musas do artista mas na verdade foi muito mais: foi sua companheira e com ele viveu uma das histórias de amor mais trágicas do mundo da arte.
Jeanne era uma linda garota de dezenove anos, de rosto ovalado, belos olhos azuis e bastos cabelos acobreados que usava amarrados em longas tranças. Nas fotos ela é bem diferente da Jeanne modigliana mas possuía uma beleza rara e estranha, uma aparência que hoje a juventude chamaria de “gótica" que ganhou muitos admiradores em Montparnasse. 
(imagem wikipedia)
Ela foi introduzida na comunidade artística por seu irmão André Hébuterne que queria se tornar pintor e conheceu alguns artistas, fez amizade com vários deles, incluindo Tsuguharu Foujita para quem ela modelou. Jeanne também possuia talento para as artes, era musicista e desenhava e optou por estudar na Académie Colarossi.
Foi na primavera de 1917 que Jeanne Hébuterne foi apresentada a Amedeo Modigliani no Café de La Rotonde onde todos a queriam e apostavam quem a levaria primeiro para a cama. Modigliani, o Don Juan do pedaço, ganhou. Primeiro ele a desenhou, em seguida a levou para um hotel miserável e a pintou, depois se conheceram melhor e...
@#$%&@!
Os dois se apaixonaram profundamente. Ela tinha dezoito anos e Amedeo trinta e dois. Apesar da forte objeção de seus pais católicos praticantes, Jeanne jogou tudo para o alto para viver com o artista do seu encanto que era pobre como Jó, judeu, dissoluto e moribundo.
Quando Modigliani e Jeanne passaram a morar juntos seus amigos mais próximos acreditaram que a jovem séria e centrada pudesse motivar Modigliani a conter seus excessos. Jeanne possuía um comportamento tranquilo e era descrita como "gentil, tímida, calma e delicada”. Talvez um pouco depressiva. Mas por isso mesmo todos torciam para que, com suas serenidade e juventude, ela fosse capaz de acalmar Amedeo.
Jeanne foi percebida pelos amigos do companheiro como uma menina pura e boa que – quem sabe? – tinha chances de salvar Modigliani. A situação me lembra de Crime e Castigo, em cujas páginas a piedosa e abnegada Sônia salva um Raskolnikov temperamental. Jeanne, no entanto, nutria por Amedeo uma adoração cega que nada pedia e muito menos exigia.
Embora o casamento não tenha resultado em mudanças fundamentais em seu comportamento – ele continuou bebendo e se drogando - os retratos que Modigliani fez de sua jovem amante, bem menos estilizados do que os seus trabalhos anteriores, sugerem uma claridade psicológica maior e uma nova serenidade no artista.
A pintura de Modigliani nesse período parece perseguir a beleza de Jeanne, em retratos clássicos de rosto e/ou meio corpo, nos quais a sua figura e o seu rosto aparecem modelados em tons quentes e harmoniosos.
Geralmente dois planos de cor dividem o corpo: os continentes inferiores têm o volume das deusas africanas que ele apreciava enquanto que os torsos de Jeanne, vestidos por cores diversas, eram os preâmbulos ideais para os longos pescoços e pálidos rostos em flor.
Os retratos são simples, à primeira vista, mas eles têm uma profundidade atraente. Tudo bem que é sempre o mesmo rosto alongado – que ela não tinha! – de lábios cheios, de bochechas rosadas, de olhos inteligentes que encaram, não o espectador, mas a distância. Porém essa Jeanne de Modigliani é emocionante.
Seus olhos que eram azuis parecem tão escuros, pensativos e sonhadores, e seu olhar está cheio de tristeza insuportável, causada pela cruel realidade da qual ela não podia escapar. O casal passava fome! É esse espírito melancólico enquanto ela considerava pensativamente o seu ambiente sombrio que cativa, é essa beleza triste e vã que seduz.
O olhar de Jeanne não é direto, não está pedindo a quem a observa para salvá-la das suas telas, pelo contrário, ela parece ser uma parte inerente desse mundo sórdido, presa nele para a eternidade. E a gente deseja estender a mão e resgatá-la desse enredo doido de pedra.
Diz Dona Lenda e o filme sobre Modigliani estrelado por Andy Garcia que o artista costumava dizer à sua Jeanne :
“Quando eu conhecer sua alma pintarei os seus olhos”.
E como os pintou bem, sobretudo na segunda tela da montagem abaixo, cujo nome é Jeanne. A gente entende que, para Modigliani o único sentido, o possível e curto futuro, a própria arte estava no rosto dessa jovem mulher. Ele pintou Jeanne vinte e oito vezes!
(imagem pinterest ⬌ wikipedia)

Cada um desses retratos é como uma carta de amor: muito delicado, lírico e calmo. Modigliani a pintou perdida em seus pensamentos, distante da realidade, do lugar e do tempo, e extraordinariamente bela. O pintor sussurrava sua pintura como um amante murmura carinhos no ouvido da mulher amada.
Mas as preocupações escultóricas de Modigliani continuaram a ser traduzidas, por exemplo, nessa pintura de Jeanne vestida com a malha amarela, na qual retratou a companheira como uma espécie de deusa da fertilidade.
Com seu rosto estreito altamente estilizado e olhos em branco, ela tem o semblante sereno de uma deidade, e a ênfase do artista nos quadris e coxas maciços e no ventre grávido imita o foco de esculturas antigas que fetichizam a reprodução.
Já na última tela radiante Modigliani pinta sua amante grávida definida por uma saia em preto liso, o xale vermelho e mangas brancas. O círculo feito por suas mãos caracteristicamente dobradas é imitado pela forma da cadeira na qual ela se senta, e essas formas curvas são, por sua vez, desafiadas pelas verticais afiadas em cinza, preto que formam a porta e as paredes no fundo.
A figura de Jeanne foi sentada ligeiramente descentrada, com a cabeça inclinada para um lado e os braços falsamente alongados para o outro. A pintura está cheia do calor e da riqueza desses tons de amarelo e ocre e lilás e o vermelho do xale de Jeanne amarrado em volta dos seios pesados em sutil contraste com o vermelho da porta e da parede inferior atrás dela e do branco total das mangas longas da camisa.
Seus olhos azuis nos olham inexpressivos, perdidos em contemplação interior, como uma Madona tardia, trazendo serenidade e aconchego para os problemas do mundo.
Os retratos de Jeanne, cheios de uma espécie de ternura e intimidade, parecem puxar Modigliani para longe da sua bagunça biográfica e situá-lo em uma esfera onde você vê senão esperança pelo menos a seriedade e a segurança de seu trabalho.
Pinturas como essas fizeram Modigliani imensamente colecionável. Parece moderno sem ser demasiado desafiador, protegendo uma velha noção da beleza mesmo enquanto distorce-a. Mas essas obras também mostram que seu objetivo é nada menos que uma tentativa concertada e séria de reinventar o retrato clássico para a idade moderna.
Embora continuasse a pintar, a saúde de Modigliani se deteriorava rapidamente e seus apagões induzidos por álcool e drogas se tornaram mais frequentes. Rejeitada por sua família, em 29 de novembro de 1918 Jeanne dera à luz a uma menina e, já em junho de 1919, estava grávida novamente, enquanto Modigliani piorava a cada dia.
Em janeiro, depois de não ter visto Amadeo por vários dias, o pintor Ortiz de Zárate, vizinho e amigo de Modigliani, preocupou-se e invadiu o estúdio do casal onde, horrorizado, encontrou Modigliani delirando nos braços de Jeanne sobre uma cama cheia de garrafas de álcool e latas de sardinha vazias. A moça não pensara em chamar um médico.
Modigliani foi internado já inconsciente no Hospital de la Charité em 22 de janeiro de 1920, onde faleceu de meningite tuberculosa no dia 24, aos trinta e cinco anos de idade, na mais completa miséria. Jeanne, grávida de oito meses, foi levada atordoada para a casa de seus pais onde, inconsolável, passou uma noite insone e, na manhã seguinte, se matou atirando-se de costas de uma janela do quinto andar. Tinha vinte e um anos e estava grávida de oito meses.
O corpo de Jeanne, recolhido por um estranho caridoso, foi rejeitado por seu irmão André Hébuterne. Levado por uma carroça até o ateliê de Modigliani lá ficou abandonado até que Jeanne Léger, a esposa do pintor Fernand Léger, tomou as providências para que o corpo da jovem fosse sepultado no mesmo dia às escondidas e em penosa solidão.
O destino trágico do casal abalou as comunidades artísticas em Montmartre e Montparnasse. O enterro de Modigliani foi um acontecimento e, a essa altura, suas obras já haviam experimentado uma vertiginosa valorização. Como disse Chaim Soutine: “Do nada à glória”.
Somente dez anos depois o irmão mais velho de Modigliani conseguiu convencer a amargurada família Hébuterne a trasladar os restos mortais de Jeanne e de seu filho não nascido para o cemitério do Père Lachaise, onde Modigliani fora enterrado e hoje o casal descansa.
Uma única lápide homenageia os dois.
O epitáfio de Amedeo é :
"Derrubado pela Morte no momento da Glória”
No de Jeanne lemos:
"Devotada companheira até o sacrifício extremo".
A filha do casal, Jeanne Modigliani, foi criada pela família paterna e escreveu sobre o que lhe restara: a arte paterna. Mas essa será outra conversa...