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07/01/2023

Trazendo de volta um velho amigo

Fotografia WBJ


Wilson Baptista Junior  

Quando eu era garoto, morávamos na casa de nossos pais e avós, já escrevi por aqui alguma coisa sobre ela.

Era uma casa grande, dois andares em cima de uma garagem que tinha uma escada interna para a casa e que, por causa da inclinação do terreno, ficava parcialmente enterrada.

Ao lado da garagem, nesse “meio subsolo”, Papai, apaixonado pela fotografia, fez a sua câmara escura, para nós um laboratório mágico cheio de produtos químicos misteriosos, vidrarias esquisitas e lâmpadas vermelhas, onde as imagens apareciam misteriosamente sobre o papel branco mergulhado em bandejas esmaltadas.

Com o tempo fomos aprendendo os segredos da revelação de filmes e ampliações e muitas vezes eu ficava, até bem tarde, assistindo Papai produzir suas fotografias maravilhosas.

A câmara escura, que chamávamos simplesmente “a câmara”, era um espaço grande, de aproximadamente quatro por quatro metros, isolada do restante da garagem por uma cortina de plástico pesado preto, que quando fechada era à prova de luz. Nossa primeira geladeira (do lado de meus pais, porque do lado de meus avós já existia uma mais antiga, que até hoje reside, funcionando, na casa para a qual depois nos mudamos abaixo do mosteiro das Beneditinas) foi entregue num grande caixote de madeira compensada (naquele tempo não se ouvia falar de isopor nem de mandar encomendas em caixotes de papelão). Instalada lá em cima a geladeira, Papai pegou o caixote, deitou-o de lado no meio da câmara, instalou dentro algumas prateleiras, cobriu o lado que ficou para cima com um plástico resistente grampeado nas bordas, instalou uma tomada de força e transformou-o numa bancada de trabalho. Por toda a nossa vida essa bancada ficou se chamando simplesmente “o caixotão”.

Ganhamos (os filhos) um brinquedo maravilhoso da época, chamava-se “Poliopticon” e era fabricado pela D.F Vasconcellos, uma empresa brasileira que fabricava produtos óticos de grande qualidade. Era um conjunto de tubos, adaptadores e lentes que permitiam montar lunetas, binóculos, lupas, microscópios, e que ajudou a todos nós entendermos melhor como funcionavam essas coisas. Um brinquedo que infelizmente hoje não se fabrica mais e que atinge altos preços no mercado de coisas usadas pela utilidade e qualidade.

Ganhei de presente, em algum aniversário, um pequeno microscópio, que me lembro tinha três objetivas, a mais potente das quais aumentava até trezentas vezes.  Foi como descobrir um mundo novo para mim. Coloquei-o em cima do caixotão, com uma lâmpada posicionada para iluminar seu espelho, e comecei a ver coisas como, por exemplo, o crescimento mágico dos cristais de certos produtos químicos dissolvidos em água, como a hidroquinona, que parecia um filme de animação se desenrolando à frente dos meus olhos. Um dia um amigo de Papai, que se tornou também um grande amigo de todos nós, levou lá em casa um microscópio “de verdade”, apanhou gotas d’agua das poças do nosso quintal, nos mostrou a vida fervilhante que existia naquele mundo tão pequeno. Vendo meu interesse, e sabendo quer eu tinha o microscopiozinho, me deu de presente um livro em espanhol sobre microscopia. Aí comecei a entender como se fazia para preparar espécimes para serem observados, como se coloriam para destacar as características daqueles seres quase transparentes, e assim por diante.

Montei um pequeno laboratório em cima do caixotão, com as ferramentas da oficina que Papai tinha instalado ao longo de uma das paredes da garagem (essa sozinha dá toda uma outra história) fiz aparelhos como uma estativa de lupa para dissecção, um micrótomo rudimentar utilizando as lâminas afiadíssimas dos aparelhos de gilete que se usavam na época, compramos na loja de um amigo de Papai (Orlando Greco) as plaquinhas de vidro e as plaquinhas, finas como fio de cabelo, entre as quais se colocavam os espécimes para observar. Alguns dos produtos químicos utilizados já existiam no laboratório de Papai, como o azul de Metileno, com o qual eu coloria fatias finíssimas de batatas para observar os grãos de amido.

Quando terminei o ginásio e comecei o científico (assim se chamavam na época os graus do ensino médio) Papai encomendou para mim um microscópio de verdade. Olhamos com muito cuidado o catálogo de uma famosa loja de São Paulo que vendia pelo correio, a Fotóptica, que depois se transformou numa loja que vendia apenas óculos. E encontramos um microscópio Meopta, com todos os requisitos, fabricado na Tchecoslováquia (hoje República Tcheca), mas com preço ao alcance (apertado) das possibilidades financeiras.

Me lembro do dia em que, por uma coincidência rara, vi a chegada do tão sonhado microscópio. Estava na varanda de cima de nossa casa, dois andares e meio acima da rua, mexendo nos livros de uma estante que ficava lá, quando ouvi o barulho de um caminhão (bons tempos em que o tráfego da avenida Barbacena era leve) e olhei para baixo. Um grande caminhão de carroceria aberta vinha subindo pelo outro lado da rua, contornou o retorno que ficava pouco acima de nossa casa, e parou em frente a ela. Lá de cima eu via a carroceria como de uma vista aérea. Completamente vazia exceto por, exatamente no meio, uma caixa amarrada com correias para não se deslocar. Era a encomenda da Fotóptica. Até hoje não sei se era simplesmente a última entrega que faltava fazer ou por que outro motivo mandaram aquele enorme caminhão levar aquela pequena caixa até lá em casa. De qualquer maneira essa imagem está viva, até hoje, na minha lembrança.

Usei muito esse microscópio nos três anos do científico, replicando em casa muitas das experiências da cadeira de biologia do colégio, e descobrindo muitas outras coisas interessantes. Mas, saindo do colégio, fui cursar engenharia, e cada vez o usava menos. Quando me casei trouxe-o para casa, e, já sem o laboratório, morando em apartamento, usava-o esporadicamente para coisas como examinar com grande aumento se havia desgaste nas agulhas das cápsulas de toca discos do equipamento de som de alta fidelidade (assim se chamava naquela época) que tinha montado (um desses toca discos também foi personagem de um post no Conversas, faz bastante tempo)

Nossos dois filhos cresceram e foram cursar engenharia, fizeram aí suas carreiras, e o microscópio ficou encostado em sua caixa até que Papai me pediu que o levasse para um de meus sobrinhos, que ia cursar (e cursou) Biologia. Esse sobrinho se formou e foi trabalhar longe de Belo Horizonte, e dei o microscópio por muito bem empregado na sua carreira.

Aí vieram nossos dois netos, todos os dois maravilhosos (sou um avô babão confesso). O mais velho desde pequeno era apaixonado por todo o tipo de vida animal, e seu sonho era cursar e trabalhar com biologia. Quando chegou à idade em que podia aproveitar, demos para ele de presente um microscópio que era a versão moderna do meu de menino – hoje perdido nas sombras do tempo - junto com o livro que nosso amigo há tantos anos me tinha dado, e nosso outro filho, tio dele, lhe deu de presente uma coleção de lâminas preparadas com todo o tipo de espécimes.

O netinho foi crescendo, e seu interesse pela vida animal não foi diminuindo, agora com dezessete anos se dedica, nas horas vagas, à fotografia de pássaros (principalmente) e outros bichos, fotografias muito boas que posta em sua página do Instagram.

Enquanto isso, o sobrinho biólogo mudou de carreira (pressões de mercado) e se tornou um especialista em TI trabalhando com as novas tecnologias de block chain e suas aplicações em entidades financeiras. Então pedi ao pai dele, meu irmão, que lhe perguntasse se ainda usava o microscópio, porque se não tivesse mais utilidade para ele eu gostaria de passá-lo para o neto mais velho.

Para minha surpresa, o sobrinho respondeu que não tinha levado o aparelho quando se mudou de Belo Horizonte, e estava guardado até hoje (há tantos anos) no armário de meu falecido pai.

Fui buscá-lo e o trouxe para casa. Abrindo a caixa (a fechadura girou com dificuldade e a chave estava meio enferrujada) vi que alguns danos inevitáveis pelo longo armazenamento sem uso tinham ocorrido: As almofadas de feltro do lado de dentro da caixa tinham se ressecado e se desfaziam em pó ao serem tocadas, os delicados mecanismos de movimento da platina (que permitem mover o espécime em deslocamentos muito pequenos) estavam emperrados, o mecanismo que trocava de posição as objetivas também. Mas tudo provavelmente porque os lubrificantes tivessem secado e agarrado.

Desmontei o microscópio, limpei e lubrifiquei os mecanismos, limpei a parte externa das lentes do condensador, das oculares e objetivas, o meu netinho mais novo, apaixonado por máquinas e mecanismos, que estava agitando novamente nossa casa passando uns dias conosco, raspou e limpou cuidadosamente os locais das almofadas de feltro de dentro da caixa, lubrifiquei a fechadura e tirei a ferrugem da chave. Quando montei de novo o aparelho, o encantamento do netinho ao ver, pela primeira vez, a rugosidade e as falhas da tinta de uma impressora laser numa folha de papel aparentemente tão lisa e tão bem impressa, a composição e as escamas de um fio do seu cabelo, ou descobrir que as finas nervuras das asas de uma abelhinha que tinha morrido porque não encontrou a saída da janela tinham também cabelos microscópicos, fez valer a pena todo o trabalho.

O neto mais velho está viajando, ainda não viu o microscópio, mas ele agora está à sua espera, pronto para voltar a ser útil e ajudar a desvendar para ele os mistérios dos mundos tão pequenos. E quem sabe quererá agora passar para o irmão mais novo o microscopiozinho que também ganhou quando era menor?