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30/10/2017

De cores e tintas

Ana Nunes



Ana Nunes
Acho que as cores precedem o mundo. Certamente o meu. E é maravilhoso mexer com elas, tirar pigmento da terra e socar até virar pó fino. E depois escaldar, esperar decantar e coar. Fazer a aquarela, o guache ou a acrílica. Ou compra-las prontas que é bem melhor. E depois, tentar traduzir a imagem em cor, nas manchas ou nas linhas.

A aquarela em toques delicados de pincel no papel molhado se desfaz em sonho e corre a se misturar às outras pinceladas, criando limites tênues, quase inexistentes, entre as cores desmanchadas. O azul se junta ao vermelho e já tenho o roxo. E já posso fazer uma ameixa. Se nesse mesmo vermelho colocar um pingo de amarelo tenho a laranja, a mexerica e o mamão. O preto com o branco me dá o dia chuvoso. E o amarelo com o azul o verde das folhas na minha janela.
A tinta acrílica, mais densa e teimosa, é misturada na minha palheta de bandeja de isopor. O pincel se envolve nas cores fortes e as mistura na busca da outra cor. E cria uma gama de tons novos numa quantidade finita por enquanto. Porque tenho pressa de usar.

No tear, os fios coloridos saídos separados dos novelos se esticam e entrelaçam. E perdem sua identidade no fazer da outra. Porque já não são azuis ou brancos ou verdes porque tão entrelaçados formaram uma nova cor no tapete tecido. E o resultado maravilha os nossos olhos cansados.

E quando fica de noite essas mesmas cores se estranham e nos espantam. E sob lâmpadas diferentes também se transformam. E se o sol fosse de outra cor nem sabemos imaginar como seriam. É tudo uma surpresa.

Como surpresa é a criança que nasce e traz na cor a mãe e o pai. E o avô e a avó. Quem sabe um bisavô distante que ela nem vai conhecer.
E ela aparece pálida amarelada se for uma japinha de olhos puxados.
E da cor de chocolate, de olhinhos redondos e bochechas redondas se os pais forem negros.
E da cor do café com leite, nas suas variadas misturas, se os pais já vieram misturados garantindo esses tons lindos nas peles macias de seus filhotes.
Branquelas e sorridentes nas bochechas coradas, trazidas de um lugar mais longe e mais frio.
Marronzinhas avermelhadas de cocar e fitas nos tornozelos se vieram de uma tribo.
E lindamente azeitonadas se vieram na barriga de uma indiana.
E muitas outras cores que vieram sendo feitas ao longo do tempo nas misturas de amor.

E me disse uma pesquisa feita, que essas cores todas vieram de um só lugar com a idade da criação do mundo. Se branca, amarela, negra ou caramelo, se do continente africano ou europeu, vieram de um mesmo DNA. E foram se adaptando, ficando mais fortes e mudando os tons à medida em que saíam das florestas e se dirigiam às savanas. Disse também que classificar pessoas por cor seria o mesmo que classificar por altura. E aí o Antonio e eu ficaríamos no grupo dos baixinhos separados de vocês outros.

E não importa mais se "Black is beautiful", se "Orange is the new black", se "All the colours of the rainbow turn to blue", porque todas as cores são especiais. E vão continuar se juntando e renovando. E fazendo mais cores lindas para enfeitar o planeta. E nossas vidas. E nossos amores.


28/10/2017

Humor

Nigel Bruce (Watson) e Basil Rathbone (Sherlock) - Wikipedia



Francisco Bendl
O que vem a ser “senso de humor”?
Rir ou fazer rir?
Ou ambos?!
O humor inglês é famoso para nós, os latinos, porque sem graça, sem a devida dose de tempero nas anedotas.
No entanto, pertence aos britânicos aquela que foi eleita a melhor piada do mundo dois, três anos atrás!
Holmes e Watson, a dupla imortalizada dos contos de Arthur Conan Doyle, resolveram acampar.
Watson, com a sua costumeira lógica interpelou o seu parceiro:
- Holmes, como vamos acampar se não temos nada para esta atividade?
- Não te preocupes, Watson, iremos ao Harrods e compraremos o que necessitamos, respondeu Holmes.
Dito e feito.
Na loja compraram barraca, fogão campeiro, panelas, lanternas, pilhas, sacos de dormir, produtos anti-insetos, alimentos, um rádio a pilha, livros, carvão... e na sexta-feira à noite rumaram para os campos do condado de Devon.
Prepararam o jantar, alimentaram-se bem, arrumaram a barraca que dava para os dois porque ampla e bem fechada, arejada também pois com janelas laterais e tecido que impedia a entrada de insetos, e foram deitar.
Lá pelas tantas, Holmes pergunta para o seu colega:
- Watson, estás dormindo?
- Não.
- O que estás vendo, questiona o detetive?
- Olha, estou muito alegre em ver a grandiosidade do firmamento, responde Watson.
- E que mais, quer saber Holmes?
- Pois vejo as estrelas, bilhões delas, infindáveis, maravilhosas, brilhantes como diamantes...
- Sim, sim, mas o que te deixou impressionado? pergunta ansioso Holmes?
- Bom, é que cheguei à conclusão que a minha pequenez é perfeita para se poder avaliar o Universo, seus mistérios, o seu equilíbrio, que impede estrelas, planetas e satélites se chocarem, e que deve ter havido a mão de um ser superior porque do nada não se origina nada... mas por que me perguntas tanto, Holmes, e qual é o teu pensamento sobre o que eu estou vendo?!
- Elementar meu caro Watson, ROUBARAM A NOSSA BARRACA!!!
Não sei se o humor está na conclusão do detetive ou na forma como o seu auxiliar via a Natureza sem se dar conta que a barraca não mais os protegia, mas a piada é verdadeiramente fantástica.
E sem palavrão, apelos à pornografia, chavões, mas tão somente a imaginação.
O humor seria ingênuo?
Ou sorrir é manifestação de músculos que, dependendo de quem, seja ou mais fácil ou mais difícil?
Convenhamos que uma gargalhada é muito bom, alivia, desopila o fígado, e nos deixa mais animados, a meu ver, claro.
E me vem à mente a lembrança do meu tempo de milico, servindo o Exército, onde as situações hilárias eram correntes, divertidas, e que nos tiravam gargalhadas sem fim.
Um soldado, que não queria servir, o Armando – na minha época éramos convocados, e somente era dispensado aquele que tivesse problemas físicos, pois o mental era muito difícil avaliar no alistamento –, diariamente nos aborrecia de que iria dar um jeito de pular fora do serviço militar.
Um belo dia começou a catar papel pelo chão do quartel. A cada pedaço, lia e jogava fora, exclamando:
- Não é isso.
E assim foi dias a fio.
A cada papel encontrado, ele o recolhia, lia e jogava fora dizendo:
- Não é isso.
O comandante da unidade vendo aquele recruta com um comportamento que não era habitual, pediu que ele fizesse um teste psicológico.
O psicólogo concluiu que ele estava desequilibrado, e expediu uma notificação ao comandante pedindo que o soldado fosse dispensado do Exército.
O Armando pegou a nota e leu:
- É isso!
Boas risadas a todos e diárias, escancaradas, mesmo que exageradas!


26/10/2017

A Floresta Sagrada

Moacir Pimentel

Moacir Pimentel
Depois da luz e da cor o visitante mediunizado pelas belezas da Sagrada Família se espanta com o tamanho do templo, com aquelas abóbadas altíssimas e com uma impressionante variedade de colunas que foram concebidas, de caso pensado, para parecer com árvores crescendo inclinadas dentro da Basílica.
Como já vimos na conversa anterior, na Sagrada Família a luz natural penetra e mistura-se com as luzes elétricas de última geração, dando a impressão de que os raios do sol furam o dossel de uma floresta. Tudo contribui para uma sensação de que, embora se esteja dentro da igreja, pode-se facilmente imaginar estar do lado fora, em uma selva branca rodeada por algumas das mais intensamente coloridas janelas de vitrais que já se viu.
Gaudí nesse projeto usou e abusou da luz natural em uma das exibições mais impressionantes que eu já vi. Muito mais do que a cor proporcionada pelos materiais de construção utilizados tais como os diferentes tipos de pedra e azulejos nas abóbadas, pelos muitos detalhes simbólicos coloridos nas colunas e capiteis e claraboias e vidros, é a luz do sol que dota o interior da Sagrada Família de vida harmoniosa e acentua a plasticidade da nave e, acima de tudo, conduz à introspecção.
Também as colunas ramificadas, além de ter uma função estrutural, convidam à oração e à celebração da fé.
A pergunta que não quer se calar é: “ISSO é realmente Gaudí?”
Essa igreja conservou a cara do grande arquiteto catalão que ajustava seus edifícios à medida que eles avançavam, modificando detalhes em resposta às pedras incomuns que lhe traziam das pedreiras?
Eu acho que é uma excelente interpretação de Gaudí. A sua visão genial é visível em todos os elementos e segmentos da Sagrada Família. Prestaram atenção a cada detalhe dos croquis, esboços, maquetes sobreviventes do seu trabalho e exatamente como fazia o mestre integraram perfeitamente esculturas, vitrais, cerâmica e outros artesanatos na arquitetura grandiosa.
É claro que desde 1882 o trabalho que vem sendo realizado na Sagrada Família prossegue. E realmente não mais estamos diante da imaginação de um só singular e genial arquiteto religioso, mas do esforço de várias gerações determinadas de profissionais dedicados.
O certo é que Gaudí estava muito à frente de seu tempo e que aqueles que criticam a Sagrada Família fazem isso em grande parte porque se recusam a ver além do inusitado de suas formas ricamente decoradas e aparentemente arbitrárias. Se rasparmos a superfície, entretanto, esse assombroso edifício confirma ser uma proeza, uma incrível exibição de força, habilidade e engenhosidade, de matemática altamente sofisticada e de engenharia estrutural avançada.
Moacir Pimentel

Para criar seus arcos e tetos que são, ao mesmo tempo, elegantes e estruturalmente muito fortes, em vez de fazer desenhos tradicionais Gaudí criou um suporte de alvenaria para um complexo conjunto de correntes suspensas e penduradas pra poder estudar a matemática dessas curvas chamadas de catenárias, da palavra latina para catena ou corrente.
As curvas catenárias do arquiteto eram as formas que as correntes tomavam quando ele as suspendia pelas duas extremidades e, em seguida, deixava-as cair naturalmente sob a força da gravidade. Olhando para um espelho no chão, ele desenhava os arcos e colunas de seus projetos à imagem e semelhança do reflexo das correntes no espelho
O método altamente inovador e baseado na teoria da reversão da catenária foi chamado por ele de “o modelo pendurado”. Gaudí simplesmente entendeu que a forma da catenária de cabeça para baixo era perfeita para um arco de alvenaria de pedra de cabeça para cima. Simples assim.
Imagens Wikimedia / Moacir Pimenel

Esse sistema de correntes resultou nas linhas para suas colunas, arcos, paredes e abóbadas e assim ele obteve a forma absolutamente precisa e exata da estrutura da Sagrada Família, sem ter realizado nenhuma operação de cálculo e sem possibilidade de erro.
O interior concebido por ele para a Sagrada Família é um delírio formado por inéditas colunas arbóreas inclinadas e abóbadas baseadas em hiperboloides e paraboloides buscando sempre a forma da catenária. Um método descomplicado, intuitivo e elementar que permitiu a Gaudí obter formas equilibradas muito semelhantes às que existem na natureza.
Hoje os seus projetos são concluídos à luz do design espacial e de técnicas paramétricas de modelagem computacional. Em uma época na qual as pedras do templo são cortadas por máquinas computadorizadas não deixa de ser humilhante que o arquiteto fosse capaz de elaborar modelos matemáticos tridimensionais complexos em sua mente, usando apenas a intuição. Um milagre arquitetônico.
Gaudí era de opinão que o gótico era imperfeito, porque as suas formas retas, o seu sistema de pilares e arcobotantes não refletiam as leis da natureza que, segundo ele, é propensa às formas geométricas regradas, como são o paraboloide hiperbólico, o hiberboloide, o helicoide e o conoide.
Moacir Pimentel

Antigamente quando eu ouvia um destes palavrões - paraboloide hiperbólico, hiberboloide, helicoide e conoide - ficava cismado e encolhido na minha insignificância e envergonhado de confessar que não fazia a menor ideia do que fossem.
Hoje já consigo fazer uma elementar tradução: são apenas formas abstraídas por Gaudí da natureza - em juncos, árvores, ossos, conchas etc - depois traduzidas para o desenho das colunas, abóbadas e elementos geométricos que se entrecruzam na estrutura da Sagrada Família, sem o uso de contrafortes góticos.
A forma helicoidal, por exemplo, é universal. Ela mora em todas as formas de matéria, da estrutura microcósmica atômica à estrutura molecular do DNA e à forma espiral macrocósmica das galáxias. Após o estudo cuidadoso da estrutura de esqueletos de animais, plantas ou conchas, Gaudí encontrou novas formas que adotou como guias, depois de cálculos matemáticos provarem que eram adequadas para seu propósito. Como as suas escadarias na forma da espiral logarítmica presente nos fósseis de conchas jurássicas.
Moacir Pimentel

Ele aplicou nas colunas a forma dos troncos do eucalipto ou do castanheiro, afirmando que as colunas teriam sido muito provavelmente, na sua origem, inspiradas pela forma das árvores que crescem do mesmo jeito. Gaudí idealizou todas as colunas da Sagrada Família usando este modelo helicoide que ele associava ao movimento.
Já as formas dos ossos humanos - tíbias e fíbulas e fêmures - são hiperboloides e foram usadas por ele nas fachadas da Sagrada Família. Paraboloide hiperbólica é a forma dos nervos entre os dedos, que o arquiteto aplicou em suas criptas e que associava à luz . E last but not least conoide é forma mais frequente das folhas das árvores que o arquiteto usou e abusou por todos os lados.
Gaudí, para quem a Caverna do Salitre em Collbató foi uma das fontes de inspiração, dizia que não existe melhor estrutura do que um tronco de árvore ou um esqueleto humano, formas ao mesmo tempo funcionais e estéticas, que empregou adaptando a linguagem da natureza às formas estruturais da arquitetura, aproveitando as suas qualidades estruturais, acústicas e de difusão da luz.
Com o passar do tempo, à medida que o trabalho de Gaudi se desenvolveu, a influência das formas naturais tornou-se mais perceptível em suas construções maiores. Ele não mais as aplicava só decorativamente, como fazia em seus prédios primordiais, mas em estruturas criadas para resistir ao vento e ao clima e ao tempo como as torres da Sagrada Família, cujas curvas seguem fórmulas matemáticas semelhantes.
Olhe para a abóbada que coroa o interior da nave da basílica. Ela não se assemelha a uma floresta densa de árvores com luz solar brilhando através dos troncos e galhos?
Moacir Pimentel

Gaudí esperava que pudéssemos vê-la assim. Tudo o que ele projetou foi abstraído do seu entorno, segundo suas próprias palavras, vinha “do Grande Livro da Natureza”. Seus livros didáticos eram as montanhas e grutas que ele adorava explorar.
As colunas-árvores da Sagrada Familia têm sistemas de ramificação, os seus galhos se espalham cada vez mais finos imitando o crescimento tridimensional das árvores, que acompanham a necessidade biológica de ocupar espaços livres sem sombras.
Foi isso que Gaudí fez: criou uma estrutura ramificada que faz ótimo uso da superfície disponível ao dividir suas colunas ramificando-as como as árvores e dividindo-as em vários ramos em determinadas alturas. Cada ramo de uma coluna-árvore e a própria coluna só suportam uma seção particular da superestrutura, direcionados para o centro de gravidade da seção da abóbada que tem que suportar.
Pelo conjunto de elementos aplicados nas colunas - inclinação, forma helicoidal, ramificação em várias colunas menores etc, etc - o arquiteto conseguiu uma simples forma de suportar o peso das abóbadas sem necessidade dos contrafortes exteriores dos tempos góticos.
Na realidade, por mais que tentassem seus continuadores não conseguiram juntar os fragmentos restantes dos modelos arquitetônicos de Gaudí da Sagrada Família usando a geometria, até que a ficha caiu e – fiat lux! – compreenderam que a sua imaginação matemática excepcional estava enraizada em fenômenos naturais e que ele fora beber na fonte das formações rochosas das montanhas.
Moacir Pimentel

Gaudi era um homem de idéias simples e de senso comum e na sua arquitetura se fundem a estrutura e a decoração. Ele claramente aceitou a natureza como seu guia. Todos os aspectos de seu trabalho demonstram isso: que não copia a natureza mas compreende a sua geometria e seus princípios e estuda a sua infinidade de formas.
Ele estudou as leis da estática e da dinâmica, as estruturas naturais da composição fibrosa - como juncos, bastões e ossos - interessado principalmente nas forças internas da natureza, que se expressam na superfície. Isso pode ser contemplado nas suas colunas inclinadas e nas paredes entortadas que suportam tantos tetos estranhos.
Se a natureza sempre trabalha procurando soluções funcionais sob a inexorável lei da gravidade, ele foi muito sábio ao estudar as estruturas naturais que durante milhões de anos tiveram uma operação perfeita. Conhecendo a essência dessas estruturas, Gaudi simplesmente levou-as para o mundo da construção.
Por outro lado, as colunas do interior do templo têm variada simbologia – que os medalhões brilhantes decodificam - e representam os apóstolos, os evangelistas, cidades e até continentes, os bispados da Catalunha, os padroeiros de cada diocese e por aí vai.
Gaudí desenhou uma planta em cruz latina muito comum nas igrejas monásticas dos beneditinos medievais e naquelas românicas do Caminho de Santiago. O templo tem - por enquanto! - um altar encimado por um relevo da Sagrada Família sobre uma cripta rodeada por doze capelas, sendo que sete delas dispostas em forma de rotunda e cinco em linha reta.
O arquiteto está sepultado na capela de Nossa Senhora do Carmo sem muito alarde, talvez em respeito a sua personalidade arredia. O túmulo de Josep Maria Bocabella, o construtor, se encontra na capela do Santo Cristo.
Desse altar brotam cinco naves de noventa metros de comprimento, e um cruzeiro de três naves de sessenta metros cada. A igreja tem quarenta e seis metros de altura nas abóbadas da nave central e trinta nas laterais. Já a abóbada da torre central a ser erguida chegará aos sessenta metros. Tudo isso em uma zona edificada de quatro mil e quinhentos metros quadrados com capacidade para receber quatorze mil fieis e mais de dois mil cantores no coro.
Mora no templo ainda uma abside – uma abóbada semicilíndrica sobre a qual será erguida a torre da Virgem Maria - que contém uma profusa decoração escultórica onde se destacam as estátuas dedicadas aos santos fundadores de ordens religiosas como São Bento, São Francisco de Assis e Santa Clara, os monogramas de Jesus, Maria e José, em meio a narcisos, lírios e outros elementos como ervas, trigo, gárgulas, cobras, lagartos, salamandras, dragões e sapos espalhados pelos pilares e laterais das capelas.
Pode ser difícil para aqueles com uma decidida preferência por linhas retas e pela estética minimalista apreciar esta façanha absolutamente brilhante de construção imaginativa, mas a Sagrada Família inspirou o trabalho de alguns dos melhores engenheiros e arquitetos do mundo ao longo do século passado como, por exemplo, Oscar Niemeyer.
A data da conclusão da Sagrada Família tem sido por muito tempo nebulosa, uma questão de conjectura ao invés de fato. Em 2013 dois terços do edifício monumental estavam concluídos e o prognóstico era o de que a Sagrada Família estaria concluída em 2026, cento e quarenta e quatro anos após o início da sua construção, no centésimo aniversário da morte de Gaudí.
Não sei se Gaudí teria concordado com essa data mais ou menos estabelecida para a conclusão da Sagrada Família. Ele era um homem que há muito havia engolido sua vaidade juvenil e enterrado seu orgulho.
Num mundo em que, cada vez mais, a arquitetura tornou-se uma forma de publicidade e de design de produtos como vistosos “ícones” que são construídos em poucos meses como se isso fosse uma virtude, a saga da basílica de Gaudí nos ensina a lição da paciência.
A arquitetura que vale a pena, seja uma casa ou uma catedral, tem suas estações. A arquitetura real, verdadeira e bela ao serviço do nosso espírito e dos nossos sentidos, bem como das nossas necessidades quotidianas é o resultado final de criadores satisfeitos e não de gestão de prazos e de consumidores insatisfeitos.
A construção vagarosa da Sagrada Família permitiu que novos talentos com novas habilidades se unissem para completar a obra-prima de Gaudí, e ao tomar a estrada lenta a Sagrada Família abraçou as habilidades, inteligências e ofícios de gerações sucessivas.
Ao fim e ao cabo Antoni Gaudí em vez de um edifício terá criado uma experiência de construção. Começou um processo que continuará por muito tempo ainda e é uma espécie de educação ética e imaginativa. Não existe no vasto mundo outro prédio como esse, no qual a colocação de cada pedra, de cada escultura, de cada detalhe por artesãos modernos intuitivamente tentando perseguir os planos de Gaudí, é um ato sagrado e reverente.
Quando a pedra final for posicionada, a Basílica será o lugar de oração mais estranho e possivelmente o mais controverso jamais construído em uma escala tão épica e o Templo Expiatório da Sagrada Família continuará a assombrar a imaginação das gerações vindouras que poderão vir a conhecer o arquiteto como Santo Antoni Gaudí.
Há muito tempo que estamos familiarizados com as torres e fachadas da Sagrada Família, o modo como o edifício entra em erupção no horizonte de Barcelona, atingindo os céus. Quando estiver pronta essa floresta petrificada emocionante de luz, cor e pedra mostrará ao mundo que a sua modernidade está na maneira como Gaudí internaliza o que normalmente é deixado de fora - plantas, animais, natureza – e coloca no exterior o que geralmente está confinado dentro das paredes de uma igreja: retábulos e esculturas narrando a história da cristandade.
Viveremos para ver a Sagrada Família terminada, teremos a chance de voltar a Barcelona para ver todas as belas torres levantadas?
Com vontade absoluta, eu quero crer que sim.

https://www.youtube.com/watch?v=5lYdrhYYWpg



24/10/2017

O Grande Mestre Hakuin

Hakuin Ekaku (imagem Museum Rietberg)

Antonio Rocha
Estou recontando uma história do baú de ensinamentos Zen Budistas.
Era muito famoso e muito sábio. Sua fama na antiguidade espalhou-se por várias terras. Tinha muitos discípulos, leigos (as) e monásticos (as), morava em uma pequena cabana, assim próximo à floresta na cidadezinha, seria o que chamamos hoje de eremita. Tinha um pequeno terreno e cuidava da horta pela manhã, limpava um pequeno pomar e cuidava do local.
Perto de sua cabana havia uma família que tinha um pequeno armazém. O casal devoto tinha uma jovem filha única, muito bela e atraente.
Certa feita ela apareceu grávida e os pais que sonhavam com um casamento budista, uma festa celebrada pelo Mestre Hakuin, ficaram desapontados, mas é a vida...
- Filha tudo bem, eis a natureza humana, mas só nos responda quem é o pai?
A menina gaguejou e por fim disse:
- Fo... foi o Mestre Hakuin.
- Ah! meu querido senhor Buddha e eu queria que ele fosse o celebrante - exclamou a mãe da menina tristonha.
Os pais foram até a cabana do Mestre, a medida que caminhavam a raiva ia aumentando e quando chegaram lá, descarregaram muito ódio verbal sobre o religioso, o xingaram de tudo quanto era palavrão da época. E por fim trataram de espalhar por toda a vizinhança que Hakuin não era mais mestre de coisa nenhuma. Na verdade se aproveitara da boa fé da garota.
O que caracterizava o mestre era o seu profundo silêncio em muitas questões da vida, entretanto, o povo entendeu aquele velho ditado: “quem cala consente”.
Os pais ficaram calados durante toda a gestação da filha. Entretanto todos os discípulos afastaram-se do mestre, pois ele era celibatário.
Finalmente nasceu um lindo bebê e logo após a primeira amamentação os pais disseram para a filha:
- Pegue suas coisas, seu filho e vá morar com o seu marido.
Os três saíram de casa, os quatro, mais o recém nascido, saíram de casa tristonhos e chorando e muitas pessoas no caminho assistiram a desoladora cena.
Chegando na choupana do mestre o avô pegou o menino no colo e entregou ao mestre:
- Tome, você é o pai, cuide de seu filho, trate bem sua mulher.
O monge pegou o neném e o abraçou com afeto.
Então a jovem mãe-menina não aguentou, caiu de joelhos na frente de todos chorando e disse:
- Perdão mestre, perdão meu pais, eu menti, ele não é o pai da criança...
O clima que se seguiu parecia um tsunami de lágrimas.
- Então quem é? – perguntou o pai desesperado.
- É o Fulano lá do mercado de peixes. Eu fiz esse filho por vingança, porque na verdade eu queria outro rapaz, mas como ele não me quis, eu me entreguei ao primeiro que apareceu...
- Mestre – perguntou a avó – e por que o senhor não falou nada?
- É que vocês chegaram aqui com tanta certeza, tanta convicção que não tinha como esclarecer.
- Mas seus discípulos foram todos embora...
- É que eu vi, era um carma antigo meu, de vidas anteriores, quando eu destruí a reputação de muita gente, então vi que estava pagando, aceitei calado.
- E agora Mestre? O que nós fazemos?- perguntou o pai da família.
- Vamos todos sorrir, meu carma, nessa área está zerado, não sei se mais adiante virá outro. – disse o mestre.
-Em compensação, indevidamente, nós difamamos um inocente – disse a jovem mãe.
- Agora, com bons modos, procurem o verdadeiro pai, falem com ele, na verdade, ele também pensa que fui eu. Mas falem de forma educada – disse o monge.
Os quatro saíram e o Mestre Hakuin voltou para sua horta.
Dizem que depois deste episódio, a fama benéfica do Grande Mestre Hakuin aumentou demais e o número de discípulos também com a volta dos antigos e os novos que chegavam, impressionados com o fato.
Moral da História: Nem sempre, quem cala consente.


22/10/2017

Contingências

Polegares para baixo - Jean-León Gérôme (Wikimedia commons)


Francisco Bendl
Sempre concedi ao fracassado mais simpatia que ao vencedor.
O homem que obteve a sua vitória conseguiu o seu galardão, logo não precisa mais de apoio, incentivo, elogios. Diferente do derrotado, que necessita que alguém o anime, que seja solidário com a sua tristeza, que seja compreensivo com a sua decepção consigo mesmo.
Também entendo que se deve fazer uma análise das vitórias e derrotas do ser humano:
De que forma o vencedor logrou êxito?
Por que o derrotado não venceu?
Teria o vitorioso disputado para obter o apogeu em vida com as mesmas condições do fracassado?
O derrotado teria tido as mesmas oportunidades para vencer que aquele que ostenta o troféu da vitória?
E o que difere um do outro, caso as condições de luta terem sido rigorosamente as mesmas para cada um dos contendores?
O ânimo? A disposição? A resistência? A persistência?
De não se deixar ser vencido pelas circunstâncias e dificuldades do momento?
Ou a base familiar é fator preponderante tanto para a vitória quanto à derrota?
Ou temos de considerar fatores aleatórios como preponderantes, tais como o destino, a sina de cada um, o carma?!
Temos de levar em conta o local de nascimento e moradia de um e do outro? A herança genética? Suas amizades ao longo do tempo? Os exemplos que tiveram como negativos e positivos, que influenciaram ou não um ser vencedor e o outro derrotado?
Contribuiria decisivamente o casamento ou não para este êxito ou derrota?
Ou sempre será melhor que a luta a ser enfrentada com vistas a ser alguém tenha companhia, que exista uma relação amorosa?
Ou, quem sabe, seriam os filhos o grande impulso à obtenção uma vida próspera e realizada?
Ou a soma dos fatores que citei acima, todos, indistintamente, contribuiriam para o sucesso ou até mesmo o fracasso?
Na condição de, pessoalmente, eu servir como comparação entre vencedor e derrotado sou útil como aquele que sempre enfrentou os problemas e dificuldades inerentes ao longo do caminho sem vacilar por um momento sequer, sem se amedrontar em situação alguma pelas adversidades, no entanto, nada sou, nada tenho, nada conquistei, sou um imortal, pois não tenho onde cair morto!
Neste caso não vale a família como diploma de competência, pela sua união, pelo amor entre seus membros, pelo respeito ao pai; definitivamente não é válido para se obter certificados de vida concluída com méritos, haja vista haver a colaboração de todos, o comprometimento familiar, a unidade do clã, a índole pessoal de cada membro deste grupo familiar, pois tanto o derrotado quanto o vencedor poderiam ter consigo este mesmo grupo exemplar.
Refiro-me à vitória pessoal, particular, individual, sem a influência de quem quer que seja.
Desta forma, como outorgar os louros da vitória ao vencedor se, mesmo tendo obtido patrimônio, diplomas de faculdades cursadas e reconhecimento pessoal e profissional, foi derrotado porque não soube constituir a sua família, sustentar, educar e formar seus filhos?
Ou como contemplar o derrotado na sua vida pessoal e profissional, mas que soube conduzir a sua família com honra e dignidade, tornando os seus filhos pessoas de bem, úteis tanto para si mesmos quanto à sociedade, profissionais liberais, gente digna, que também constituíram suas famílias e estão felizes e realizados, mesmo com o pai sendo um derrotado, um fracassado?!
De quem seria o mérito maior?
Do vitorioso pessoal e profissional, que tem o seu patrimônio e a sua vida bem organizada e próspera?
Ou daquele que nada tem, que nada é como pessoa e profissional, que a sua vida não é próspera, pelo contrário, ainda conduzida com dificuldades enormes para seguir vivendo, mas soube enaltecer a sua família, seus filhos e esposa?
Até onde a pessoa ser medíocre, incompetente, derrotada porque sem sucesso, sem títulos, propriedades, conseguiu ter a sua família em condições sólidas e inquebrantáveis, e aquele que atingiu o apogeu pessoal e profissional não soube conduzir a sua família para os mesmos patamares de êxito?
Haveria alguma cobrança no terreno metafísico para a união familiar com relação àquelas pessoas que a constituíram como gente de sucesso, que soube trazer o seu pessoal para a mesma situação de êxito ou para os homens que, derrotados, conduziram seus familiares para as mesmas condições de decepção e frustração?
Não sei quais seriam as respostas ou as fórmulas que possibilitam o sucesso pessoal, profissional e familiar ao mesmo tempo, mas tenho as minhas impressões quanto ao contrário, quanto ao sofrimento de seres humanos que jamais vão sentir o que vem a ser realização em qualquer etapa de suas vidas, então o sofrimento, a frustração, a infelicidade, a mágoa, a tristeza.
Então, o meu brinde às derrotas; o meu aplauso aos fracassados; a minha solidariedade às tentativas frustradas de sucesso.
O meu reconhecimento aos medíocres; a minha admiração aos desconhecidos; o meu apoio aos que nada têm, nada possuem, nada obtiveram.
Saúdo aqueles que não têm talento, mas que servem como medida aos que os esbanjam, aos que vencem; meus sentimentos às pessoas que vieram para este mundo e o deixarão sem qualquer despedida, sem deixarem saudade, sem que seus nomes sejam lembrados até mesmo pelos seus descendentes.
Ergo o cálice bem alto, o mais alto que posso, transbordando de... água, e brindo a mim mesmo, um ninguém, símbolo da incompetência pessoal e profissional, exemplo de um ser humano descartável, modelo de como não se deve ser, um legítimo membro da plebe ignara, e que espera não ser condenado em outras vidas porque desta não soube extrair o material para esculpir a si próprio!