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29/11/2018

O menino

Jackie Coogan no filme "O Garoto"  de Charles Chaplin (imagem Chaplin Productions)

Heraldo Palmeira
Saí da garagem do prédio do escritório e tomei o asfalto. Para variar, o trânsito estava ruim, como todos os dias. Paciência! Era melhor não ter pressa, para poder chegar em paz em casa. Segui naquele cortejo que encurrala a vida. Não havia o que fazer além de ligar o rádio do carro.
Fiquei pensando que nunca me separei do menino que vive em mim desde a infância. Tenho com ele uma convivência pacífica. Evito que sua inocência sofra com as dores da vida adulta, para que não perca a pureza de que precisamos lançar mão em alguns momentos. E sempre fico a sós com ele se preciso de ajuda, porque fala coisas que não sei dizer, enxerga saídas que não encontro.
Talvez seja difícil acreditar, mas é esse menino interior que me ajuda a manter a serenidade e a firmeza em situações incomuns. Talvez por que ele seja um sonhador, um sujeitinho de bem com a vida que deu de enxergar sempre um passo adiante. E cada vez mais confio nele, inclusive meus segredos – até aqueles que eu gostaria de esquecer.
Havia uma multidão diante da matriz da minha cidadezinha. Era festa da padroeira, missa campal de encerramento, gente vinda de várias cidades, das redondezas e mais alhures - tem quem calcule vinte mil pessoas todos os anos, naquele dia.
De repente, um menino raquítico, assustado rompeu a área reservada, subiu em desespero a escadaria central do átrio, chorando aos gritos e foi direto na direção do bispo que presidia a celebração. Mas driblou o sacerdote e seus auxiliares, e seguiu para dentro da matriz vazia.
Agi por impulso e fui atrás. Ele procurava a mãe. Descalço, sujo, cansado, apavorado. Estendi os braços e ele veio sem titubear.
Comecei a falar baixinho no ouvido dele, palavras de acalmar. Foi se deixando aceitar naquela nova situação, só queria amparo. Eu, homenzarrão, querendo chorar minha paternidade revivida naquela criaturinha. E ele me apertava com carinho, confiante, seguro. Passo seguinte, deitou a cabecinha no meu ombro, entregue, calmo.
Saímos da matriz assim, direto no altar solene daquela festa. Percebi que todos os olhares nos acompanharam, enquanto fomos para a lateral conversando ao pé do ouvido. De imediato, principalmente as mulheres me cercaram prontas para ajudar – o sentido de maternidade é algo fantástico!
Todos tentávamos arrancar do menino alguma informação que pudesse nos ajudar a encontrar seus familiares. E ele permanecia agarrado ao meu pescoço recusando qualquer outro braço que se apresentou.
Um dos coroinhas me avisou que na base da escadaria central, diante do altar, havia uma moça se dizendo tia do menino. Lá fomos nós conversando, mas ele recusou os braços que ela estendeu. Disse baixinho no meu ouvido que não queria ir e pareceu sentir medo.
Fui tomado pelo dilema de entregar uma criança desconhecida a outra desconhecida. E voltamos para o ponto anterior, cercados pelas mulheres aflitas. Corria a missa e logo eu teria funções na liturgia, na hora de conduzir com a equipe o andor com a imagem da padroeira para dentro da matriz.
Começamos a cogitar chamar as autoridades, até que alguém deu uma pista, o menino era de uma família de moradores de um sítio perto da cidade. E a moça voltou, desta vez trazendo uns chinelos na mão. Eu perguntei ao menino se eram dele, confirmou balançando a cabeça. Desci-o para o chão, os calçados serviram perfeitamente, como revivendo o conto de Cinderela no masculino e em pleno sertão do Nordeste.
Ele já estava mais calmo, aceitou ir com a moça. Ela nos explicou quem era a mãe e todos nos lembramos de tê-la visto por ali, momentos antes de a celebração começar. Quando tudo parecia bem, chegou a hora de nos despedir. O menino ergueu os bracinhos, queria meu colo, recusava ir embora. Como não me curvei para pegá-lo, agarrou-se à minha perna, irredutível.
Tomei-o novamente nos braços, saímos do assédio das pessoas e conversamos um pouco. Falei palavras brandas – acho que ele nunca ouviu isso de nenhum homem da família, muito menos de alguém do meu tamanho, de uma voz grave. Parou de soluçar e prometeu que iria com a tia, mas combinamos nos reencontrar dali a um ano, novamente na festa da padroeira. Ele apenas concordava com movimentos de cabeça, incapaz de entender o hiato do tempo.
Voltei à realidade engarrafada pela fuligem dos automóveis quando o locutor anunciou três tempos dos Secos & Molhados, retirados daquele disco lendário com as cabeças servidas de bandeja na capa.
Leve, como leve pluma
Muito leve, leve pousa
Na simples e suave coisa
Suave coisa nenhuma
Que em mim amadurece
Não sei se o menino vai lembrar do nosso compromisso, mas estarei lá conforme combinado. E meu braço, envelhecido mais um ano, ainda parecerá firme para ele.
Andei mais um pouco quase sem sair do lugar, ilhado naquele mar de carros na região de hospitais e cemitérios, estranha e premonitória conexão da metrópole nos dois lados da grande avenida. Como se ao destino bastasse apenas atravessar a rua para estar finado. E as rosas já estavam ali mesmo, entupindo barracas, fingindo enfeitar o cortejo urbano.
Dois semáforos adiante, um rapazola magérrimo perambulava entre os carros. Tinha um sorriso e uma esperança incompatíveis com aquela realidade. Arrisquei abrir o vidro e assumi os riscos, e em pouco tempo ele desistiu de tentar outros carros. Ficamos conversando, meu corpo dividido entre o ar refrigerado vindo pelo lado direito e o calor poeirento entrando da rua pelo lado esquerdo.
Seguimos ele e eu, esforço mínimo sobre o asfalto. Passo a passo (para ele) e metro a metro (para mim) – o conforto do câmbio automático, apenas pisar e soltar levemente o pedal do freio. Um leve chuvisco, mas ele quis seguir, os respingos molhando seu corpo e o meu braço. Fiquei pensando se deveria convidá-lo a entrar para seguirmos a prosa, mas confesso que aquela foi uma das primeiras vezes que fiquei sem resposta para uma dúvida. Até o meu menino da infância se absteve de opinar.
O rapazola me disse que tinha sido expulso de casa quando resolveu assumir sua homossexualidade. O masculino do pai ameaçou de morte, o feminino da mãe esvaiu-se em pranto. Ela morreu pouco depois, ele acha que de desgosto pela separação forçada. Era filho único. Perdeu a escola cara. Caiu nas ruas. Sem destino, sem sentido. Sem medo porque não havia mais o que perder. Espaço vazio para qualquer temor.
O chuvisco parou. Eu tentei chorar apenas com o olho direito, para não ser visto em lágrimas. Pendi um pouco a cabeça para o lado direito, como se a lei da gravidade pudesse ajudar ali. Ele tentou com o esquerdo, pois caminhava lado a lado, com a mão posta sobre a porta do carro como quem sonha lançar âncora. Resolvemos liberar os olhos centrais, o meu esquerdo, o direito dele. Fazia mais sentido. Chorar pleno às vezes faz bem.
Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto
Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto
Fala
Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto
Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto
Fala
Ouvimos a música em silêncio. “Eu adoro esses caras, eram de outro planeta” – ele disse ao fim, com autoridade. Apenas balancei a cabeça, concordando.
Eu ia dobrar à direita no próximo semáforo, na esquina final do cemitério, ficar livre daquele cortejo quase fúnebre. Dei a ele um dinheiro maior para ajudar, sem atribuir valor. Não tinha preço aqueles minutos em que dividimos o mesmo mundo. Nos despedimos ali, com um aperto de mão firme, prometendo outra conversa qualquer dia naquele engarrafamento eterno.
Fiquei olhando-o ir embora, cada vez menor no retrovisor. Acionei o vidro elétrico e fechei meu mundo novamente. Olhei aquele painel enorme, couro e madeira gritando que nada tem valor absoluto. Tudo tão claro, um desânimo, uma carga de interrogações.
É claro que eu não poderia ignorar minha história, mas gostaria de saber porque fui eu quem achou o caminho para estar dentro do carro e agora me sentir absolutamente incapaz de fazer algo melhor.
A avenida que tomei estava calma ladeira abaixo, poucos carros, sem ninguém nas calçadas escuras. Um mendigo juntava porcarias pelo chão, um cachorro lúdico abanava o rabo para ele. O encontro quase suicida de quem não tem para onde ir e faz da rua um destino, e acha os seus que não são de ninguém. E seguem porque o jeito é seguir. E seguimos pois não há outro jeito de escapar.
A voz do locutor avisou que os três tempos estavam chegando ao fim e anunciou a última música.
Pensem nas crianças mudas, telepáticas
Pensem nas meninas cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas como rosas cálidas
Mas, oh! Não se esqueçam da rosa, da rosa
Sem cor, sem perfume, sem rosa
Sem nada
Pensei no menino em meu colo seguro. Pensei no rapazola pouco mais que um menino que já não cabia nos meus braços inseguros. Pensei no mendigo e seu cachorro fuçando porcarias que talvez eu mesmo tenha jogado pela janela. Pensei em mim incapaz de fazer algo melhor do que dirigir, ouvir e calar. Sem coragem para desligar o ar-condicionado e abrir os vidros em busca de ar. Sem nada para dizer. Sem ninguém para me escutar. Sem rosa. Sem nada!
Comecei a contar os minutos para chegar em casa e ficar a sós com o meu menino da infância. Tínhamos muito o que conversar.

Trechos de:
Amor (João Apolinário-João Ricardo)
Fala (João Ricardo-Luli)
Rosa de Hiroshima (Gerson Conrad-Vinícius de Moraes)


26/11/2018

A poesia

desenho de Norman Rockwell

Francisco Bendl
Eu sempre gostei de ir para a escola.
Mesmo tendo ingressado no Primário aos cinco anos – eu completaria seis somente em setembro -. nutri pelos estudos um certo gosto.
Fiz os três primeiros anos do Primário no Colégio Santo Antônio, dos Lassalistas;
O 4º ano e 5º no Colégio São Pedro, dos Maristas.
De Porto Alegre, rumamos para Brasília, onde fiz o Ginasial no Colégio Dom Bosco, dos padres salesianos, onde as minhas notas invariavelmente eram 10!
O colégio era excelente, com campos de futebol, piscina, uma biblioteca maravilhosa, e isso em plena década de sessenta!
Os padres-professores eram rígidos, e tínhamos Latim, Francês e Inglês!
Mas, uma das minhas maiores frustrações que tive no colégio, e no São Pedro, foi quando participei de um concurso de poesias.
O Irmão Elói, Regente de Classe, do 4º ano Primário, me chamou e disse que eu decorasse a famosa poesia de Casimiro de Abreu, Meus Oito Anos, pois eu iria representar a classe no concurso estipulado pelo colégio.
Eu tinha facilidade para decorar e, mais ainda, fazer os gestos que enfatizavam a narração poética.
A voz não era tão grossa como agora, mas firme, bem postada.
No dia do concurso estava frio. Vesti o meu melhor e mais bonito pulôver, calça de lã, sapatos engraxados, meias brancas, cabelos penteados, e fui confiante para o concurso.
Os participantes eram em dez, no total.
Fui o sexto na apresentação. E obtive muitos aplausos, inclusive com muitos dizendo que eu era o vencedor, o famoso “já ganhou, já ganhou”!
O resultado não demorou, após o último competidor apresentar o que lhe havia sido determinado.
Em contagem decrescente, o Irmão Diretor anunciava a colocação de cada um:
- Em décimo lugar.... em nono...
Ao anunciar o terceiro lugar, o meu nome foi pronunciado.
Algumas vaias modestas surgiram. Eu fiquei meio que decepcionado, mas o júri havia assim decidido, logo...
O meu prêmio fora um livro, intitulado Percy Winn, sobre as aventuras de um estudante em plena escola.
O troféu do vencedor era muito bonito, que o colega o carregou orgulhoso até o fim da aula, às 12:20h.
Ao terminar o concurso e o recreio, voltamos para as salas de aulas.
O Irmão Elói não entrou conosco, mas não se podia dizer um pio!
Cinco minutos depois, entra na sala, senta-se à mesa que ficava em um estribo, e diz:
- Chico, o resultado do concurso estava errado. Um dos jurados não teve a sua nota somada com os outros. A soma verdadeira aponta que foste o vencedor!
Bah!
Vou levar o troféu para casa; vou desfilar com ele nas ruas até chegar para o almoço; que orgulho...
Meus pensamentos gloriosos foram interrompidos.
O regente, meio sem graça, explicou que fui o vencedor moral, no entanto, o troféu uma vez dado ao suposto vencedor, que não era o culpado pelo erro, seguiria com ele!
Até hoje não sou lá muito adepto de poesia, em consequência.
Elas significam tristeza, frustração, decepção.
Querem dizer para mim que as perdas são inevitáveis, e que devemos aceitar da melhor maneira possível a derrota.
Fiquei meio amuado por alguns dias.
Fazer o quê?!
Vim a receber troféus na minha vida muito tempo depois, já casado e pai de filhos, quando venci por dois anos seguidos a disputa pelo melhor vendedor do ano.
Não foi tão fácil como recitar uma poesia, lógico, no entanto, os números jamais deixariam de dizer a verdade:
Eu era o vencedor, incontestavelmente, mas era outra situação.
Não mais poética, mas real, verdadeira, sem rimas e analogias.
Mas, a poesia que me entristecera, que me impedira de ter o meu primeiro prêmio e troféu, também prorrogou que eu concluísse o Científico – no caso o Ensino Médio, pois não mais havia mais esta denominação -, aos SESSENTA ANOS!!!
Meus Oito Anos não me dariam mesmo o troféu tão desejado.
A saudade da aurora da minha vida iria se confundir com o acaso da minha existência.
A minha infância querida fora substituída pela velhice, uma fase que, entre mim e ela, surgem vários problemas a cada dia!
Os belos dias que despontaram a minha existência, hoje são sombrios, nublados, cinzentos.
Fez-se justiça com a minha derrota, pois eu não saberia, aos 69 anos, dar o devido valor aos meus oito anos, pois um período como os outros, sem vitórias, sem troféus, sem reconhecimentos.
A menos que, viver desta forma, a compensação ou a vitória seja a resistência, a vontade férrea de vencer, a determinação de manter o casamento, a felicidade obtida com o nascimento dos filhos e a graça divina poder sustentá-los, educá-los e formá-los!
Os louros desta glória invisível, os netos, amados!
Mas bem que eu gostaria de ter ganho aquela Taça!!!


24/11/2018

A bandeira da Taprobana


fotografia Moacir Pimentel

 Moacir Pimentel

A bandeira de Sri Lanka reflete, como não poderia deixar de ser, a sua maioria cingalesa e budista. “Sinhala” significa "sangue de leão" e, como você pode ver, o leão é a imagem central na bandeira nacional. Também estão retratadas no pavilhão as folhas da árvore sagrada sob qual o Senhor Buda encontrou a iluminação. As diferentes cores da bandeira representam cada um dos três principais grupos étnicos de Sri Lanka: o cingalês/budista, o tamil/hindu e o muçulmano.

Também o elefante é o símbolo venerado da prosperidade tanto pela sua longa associação com as riqueza e realeza como pela sua associação com Ganesh, o deus-elefante hindu. A folha de betel é mascada por todos os lados e tudo parece ser enfeitado por guirlandas e bandeirinhas para afastar os maus espíritos e, em vez de velas, a galera prefere as belas lâmpadas de óleo.Todos oram e meditam diariamente.

A essa altura do post abro um parêntese para explicar que fui parar em Sri Lanka mais ou menos por acaso. Em 1980 depois de meses atravessando a Índia do norte ao sul e fazendo turismo a sério - templos e museus e cidades santas e tal – eu estava na cidade de Bangalor quando conheci um animado grupo de italianos de Milão, com quem fiz amizade. Juntos percorremos os estados do sul: Andhra Pradesh, Telangana, Karnataka, Kerala e Tamil Nadu.
Dali eu planejava me aventurar pela costa oeste indiana acima até Goa e, sem seguida, subir na direção de Nova Deli, com escalas pelo belo estado do Rajastão e a cidade de Agra. Só que, em vez, os meus novos amigos estavam indo para Sri Lanka. Pronto! Aderi ao projeto deles e adiei os meus planos e fiquei freguês da bela ilha onde tiramos férias da Índia e dormimos e comemos - sem chilli! - como reis durante dois meses por menos de quatro dólares/dia passeando pelas costas oeste e sul e leste do recém descoberto paraíso, com destaque para as praias de Kalkudah ao leste e de Mirissa ao sul.
Voltei ao país em 1982 para conhecer o norte e as suas terras altas centrais dessa vez perambulando de trens e ônibus e, finalmente em 2009, acompanhado por minha mulher, quando viajar por lá voltou a ser um verbo conjugado com segurança, depois do tsunami de 2004 e de quase três décadas de guerra. Porém, nessa derradeira oportunidade, fugimos do norte e das grandes cidades para rever com calma o tranquilo e remoto e mais atrasado sul e o agradabilíssimo centro do país.

No começo dos anos oitenta já se percebia as diferenças profundas entre as diversas etnias. Para começo de conversa Sri Lanka têm três línguas: o cingalês falado pela maioria budista, o tamil falado pelos hinduistas e muitos mulçumanos, bem como o inglês introduzido durante o domínio britânico e que continua a ser a língua do comércio e dos níveis mais elevados da administração, nos setores público e privado.

A língua já era então uma questão azeda naquelas paragens, devido a uma polêmica campanha do governo para que se falasse apenas sinhala, que agudizou a rivalidade étnica, a revolta e a resistência dos tamils a um nível sem precedentes pavimentando o caminho rumo à erupção da guerra civil em 1983.

Como os mochileiros de outrora se hospedavam em quartos alugados em casas de famílias e se alimentavam no seio delas eu tinha contato tanto com cingaleses quanto com tamils e, é claro, conhecia o pensamento de ambos os lados e posso dizer que a pretendida “identidade nacional” cingalesa, então defendida pela maioria cingalesa-budista era abominada pelos grupos étnicos minoritários tamils.

No entanto e apesar da politização dessas identidades étnicas, havia e há um núcleo de crenças, costumes, práticas e valores culturais que eram e continuam sendo amplamente compartilhados pelo povo de Sri Lanka como um todo, particularmente nos domínios do social, nas questões de gênero e na vida familiar.

Devido à fluidez histórica dos padrões migratórios e dos casamentos, os atributos físicos dos principais grupos étnicos pelo menos para mim não são nada evidentes. Não é possível distinguir singaleses e tamils, pelas feições ou pela cor. Eles são um só povo na aparência, cujas crianças são lindas e amigáveis e sorridentes principalmente quando presenteadas com pirulitos.

fotografias Moacir Pimentel

Um traço em comum, não importando a etnia, de norte ao sul e do leste ao oeste, é o gestual, a linguagem corporal que os nativos usam para expressar discordância e concordância, ou seja, para dizer sim ou não. Quando a resposta é afirmativa eles mexem a cabeça de um lado para o outro, exatamente como fazemos nós ao dizer não. Se, em vez, eles negam alguma coisa movem a cabeça de cima para baixo e vice versa, do jeito que fazemos para enfatizar o nosso sim. Complicado!

E deveras problemático quando a galera não falava inglês -  o que era frequente, principalmente no interior. Já me aconteceu de ficar praí umas doze horas tentando me comunicar em vão com os “mecânicos” nativos de um vilarejo esquecido no meio da selva - de peito nú e enrolados em sarongues da cintura para baixo – enquanto alegremente desmontavam a minha moto.

Virou festa e terminei sendo homenageado por um banquete sobre uma esteira de palha do qual participou aquilo que me pareceu ser toda a população local. O fato é que esse estranho gesto com a cabeça é contagiante pois eu terminei movendo minha da mesma maneira no final das minhas “peregrinações” pela ilha (rsrs)

Sri Lanka tem cerca de sessenta mil quilômetros quadrados, dos quais eu fiz mais de oito mil em 1980 em cima de uma Honda 125 que aluguei por dois meses do “cunhado” do meu hospedeiro em troca de uma nota de cem doláres e uma cópia xerox do meu passaporte. É que eu tinha cara de bom rapaz, o Pelé ainda era “o cara” e minha nacionalidade fazia sucesso. (rsrs)

A ilha é dividida, digamos que ecologicamente, em uma zona seca que se estende do norte para o sudeste e uma zona úmida que, das regiões sul e oeste, avança pelo centro do país. Tais contrastes no tanto de chuva combinado com as diferenças topográficas determinaram profundas diferenças regionais na economia e na cultura.

As planícies do norte e do centro são pontilhadas pelas ruínas de reinos antigos construídos em torno de uma miríade de lagos artificiais. O norte da ilha é o lar do povo tamil que consideram Jaffna sua cidade principal, seu centro cultural e político.

As terras baixas e secas da costa oriental são territórios de pesca dominados pelo cultivo de arroz e particularmente diversas tanto étnica como culturalmente, com muçulmanos, tamils e sinhalas compondo a paisagem populacional. Na parte sudoeste moram as minas de pedras preciosas e as montanhas famosas pelas plantações de chá são donas da região central do país.

fotografias Moacir Pimentel

Nas planícies costeiras do sul se encontram os coqueirais, as plantações de borracha e canela, uma forte indústria de pesca e talvez as melhores praias da ilha. Mas a costa leste também possui praias deslumbrantes onde, na minha juventude, a balada e a azaração já rolavam soltas na night entre copos de cerveja e arak e ao som do Bob Marley.

A maioria das ruínas arqueológicas representam a herança da cultura da realeza, os reinos e templos antigos, muitos dos quais ainda estão em uso hoje. A paisagem arquitetônica é muito diversificada nas áreas urbanas mas continua a ser dedicada a propósitos religiosos, desde as imponentes cúpulas das mesquitas, passando pelas graciosas torres das igrejas cristãs e pelas figuras ornamentadas e coloridas que cobrem os templos hindus até os templos brancos em formato de sino dos santuários budistas.

fotografias Moacir Pimenel

Em 2009 o país me pareceu estar se afastando de sua base agrícola tradicional e dando duro para tornar-se uma economia de mercado liderada pelo setor privado com a produção voltada para o mercado internacional. Até lá será um longo caminho porque as principais indústrias de Sri Lanka ainda estão diretamente envolvidas com a produção agrícola, principalmente a do chá cultivado lindamente nos socalcos das montanhas centrais. De resto a borracha e seus derivados, os têxteis e vestuário, o tabaco e produtos de madeira representam grande parte de toda a fabricação local.

A indústria pesada ainda está confinada à fabricação de aço, de pneus, ao refino de petróleo, à mineração e à indústria de cimento controlada pelo governo. A ilha não é, com certeza, uma tigresa asiática mas. nos vinte e seis anos entre uma visita e outra, muito se desenvolveu.

São lendários os produtos artesanais tradicionais da ilha como as máscaras, os objetos de metal e cerâmica, as cestas, em grande parte produzidos por castas hereditárias. Mas a construção civil em 2009 ia bem, obrigado, e o turismo estava indo de vento em popa.

Quando eu cheguei a Sri Lanka pela primeira vez, depois de seis meses percorrendo a Índia, estava um pouco dessensibilizado para a imundície cobrindo as ruas mas Sri Lanka certamente me lembrou o quanto o mundo pode ser bonito.

Mesmo extremamente pobre seu povo parecia ter um padrão de vida muito melhor do que o indiano. De alguma forma, a ilha era limpa e o ar fresco! E aí comecei a notar que tanto homens quanto mulheres estavam sempre de vassouras em punho varrendo as calçadas defronte tanto das suas casas quanto de seus negócios. Não havia lixo espalhando nas ruas e praias, ninguém se aliviando a céu aberto e deixei de ter medo que a água estivesse contaminada com sabe-se lá o quê. No quesito meio ambiente Sri Lanka realmente ganha da Índia disparado.

Outra enorme diferença entre os dois países separados por apenas trinta quilômetros de mar é que eram raríssimos os mendigos em Lanka e mesmo os seus mais pobres camponeses e pescadores viviam com dignidade. Se é que existe dignidade na pobreza ela mora em Sri Lanka. No campo e no litoral a vida era mais amena do que nas grandes cidades talvez porque a terra é fértil e o mar farto. Pelas praias a pesca garantia o pão de cada dia. No interior o povo sobrevivia laboriosamente plantando e colhendo e estocando os produtos que consumiam e vendendo o excedente nos mercados vizinhos.

fotografias Moacir Pimentel

Quando penso em Sri Lanka, penso em barulho. O povo é tagarela. E, na minha opinião, parece que no país todas as cenas diárias têm seu próprio som característico. Pode ser divertido, irritante ou pode mesmo abrir seu apetite.
No começo da manhã, por exemplo, fosse no norte, oeste, sul ou leste da ilha, enquanto eu ainda estava na cama, costumava escutar a música anunciando a presença do vendedor de pão. Lembro que um dos carrinhos-padaria anunciava seus quitutes com uma versão tropical da Sonata ao Luar de Beethoven.
Outro som inconfundível é o dos tuk tuks, o pequeno táxi de três rodas. Eles têm um som sujo como se algo estivesse errado com os motores. Um dos costumes nacionais é buzinar alegremente quando se ultrapassa outro veículo. Pense em um caos sonoro. Conduzir em Sri Lanka não é para amadores. É uma coisa rápida, doida de pedra e ninguém dá o menor valor às regras e sinais.
fotografia Moacir Pimentel


A maioria dos motoristas de tuk-tuks dirige com os pés descalços deslizando nos pedais e todos sem exceção são fãs das conversas através do espelho retrovisor. Nas grandes cidades poluídas o tráfego é denso, as distâncias são longas, faz calor... mas com um bom motorista de tuk tuk que sabe para onde ir, pode ser uma aventura divertida.
Mas os ônibus são definitivamente os donos das ruas e os reis das estrada. Lembro dos terminais de ônibus nos anos oitenta, onde em meio a dezenas de antiguidades estacionadas, se podia ouvir homens de sarongue berrando para anunciar as rotas:
“Colombo-Necombo!”
Uma vez a bordo, a balbúrdia continuava ao som da pesada música sinhala tocando no rádio e o motorista businando furiosamente. As portas e janelas permaneciam sempre abertas – graçasadeus! – pois fazia realmente muito calor e as pessoas subiam e desciam tanto pela porta traseira quanto pela dianteira sem que os superlotados “coletivos” realmente parassem.
Os motoristas dirigiam cercados por guirlandas de flores coloridas e ícones religiosos e, do jeito que guiavam, precisavam mesmo de toda a proteção divina. Às vezes em determinadas paradas os caras que tinham gritado na estação para anunciar os destinos passavam a brigar uns com os outros disputando passageiros para, em seguida, andar pelo mar humano nos corredores coletando o dinheiro dos usuários arregimentados.
Para os turistas os preços sempre padeciam de uma inflação crônica de alguns centavos que eu pagava alegremente até porque os indivíduos me mereciam grande admiração pois eu realmente não percebia como eles eram capazes de atravessar aqueles corredores apinhados nem de lembrar quem acabara de entrar e precisava pagar.
Agora... os trens de Sri Lanka tocaram uma corda qualquer do meu coração e foram, sem dúvida, a minha maneira preferida de por lá viajar.
fotografia Moacir Pimentel


O som dos vagões antigos nos trilhos me fazia viajar no tempo até eras coloniais e a paisagem é realmente linda e mutante revelando ora uma plantação de chá ora as rochas à beira do mar assim como famílias sentadas nas portas de suas casas assistindo o trem passar e roupas multicores penduradas nos varais ou estendidas sobre os gramados ou mesmo nas vias férreas para secar. O céu é azul, a vegetação é luxuriante e há muito o que se olhar e é tão fácil perder-se em pensamentos.
E o tempo todo os vendedores caminham para cima e para baixo pelos corredores vendendo samosas, garrafas de água ou abacaxi cortado em fatias. As pessoas cochilam ou falam alto nos celulares mas a maioria quer mesmo é conversar com os estrangeiros para “praticar o inglês” o que é muito bom porque o nome das estações não é anunciado no trem e então ou você se liga nas placas com os nomes de cada estação em garranchos inelegíveis ou pede aos novos conhecidos para lhe avisar quando o trem chegar ao seu destino.

Não há assentos reservados exceto na primeira classe que tem ar condicionado. Só que a tal da primeira classe só está disponível em alguns trens de Colombo para a costa leste ou para as montanhas e vice versa. Dureza! A primeira, a segunda e a terceira classes - essa superlotada! - são todas baratíssimas e os trens de Sri Lanka são usados tanto para viagens longas quanto para as curtas.

Dizer mais o quê?

Eu fervorosamente acredito que expor- nos a novos cenários e experiências, a diferentes sistemas de crenças e inéditas culturas, a estranhos modos de pensar - mesmo aqueles que inerentemente desafiam as nossas próprias crenças - é uma das maravilhas de viajar. E o novo e inesperado é exatamente o que acontece a cada curva da estrada quando se viaja por Sri Lanka.
Foi fácil no terceiro milênio e aos cinquenta anos, me apaixonar de novo por aquela verde ilha : pelo seu povo, por suas vistas, seus sons e cheiros, sua comida.

Mas...

Como descrever em um só post tantas paisagens deslumbrantes brilhando à luz do sol e desaparecendo sob a névoa crescente, as montanhas fabulosas, as cachoeiras que se misturam com as nuvens, as montanhas cobertas de florestas tropicais dando lugar a milhares de hectares verdes claros de arroz pontilhados de branco por templos budistas ou por estátuas gigantescas do Senhor Buda se erguendo acima das árvores e protegendo palácios antigos abandonados à floresta?

Como explicar que as maravilhas da ilha acontecem fora das cidades e que por lá a gente pode experimentar colher chá, fazer canela, virar rato de praia desde bem cedinho quando os pescadores começam a aparecer na areia dourada até a serenidade de um por do sol escarlate?

Como escalar com apenas quatro mil pretinhas a Rocha do Leão e ver os afrescos eróticos de Sigiriya antes de chegar às antigas ruínas da fortaleza no topo da pedra e depois de presenciar uma pequena reunião de praí uns trezentos elefantes no Parque Nacional de Yala?

Como falar dos mercados vibrantes, do norte da ilha que é um mundo para além do resto do país, dos templos hindus, das lindas garotas que andam de bicicleta de sári, das praias interminááááveis, da flora, da arquitetura colonial contando as páginas e as fotos?

Essas serão outras looongas conversas pelas quais peço desculpas torcendo para que ninguém se canse.


21/11/2018

E os velhos?

ilustração - Quino


Ana Nunes
Sob o olhar alheio,
Velho  é ridículo.
Quanto mais à vontade, mais ridículo
Quanto mais fala, pior parece.
Se antigo, é indesejado
Se prá frente, evitado.
Se corre para pegar o ônibus, desajeitado.
Capenga, dolorido, coitado.
E se o perde, atrasado.
Se fala de filmes, vagabundo, aposentado,
Se fala de dores, insuportável, abandonado.
Se se veste sóbrio, tadinho, quadrado,
Se se veste jovem, não se vê, descolado.
Se gosta das crianças, um tarado,
Se gosta dos jovens, safado.
Se fica na sua, infeliz, mofado.
Se pinta o cabelo parece bruxa,
Se o deixa branco parece velho.
Se correto e educado, ultrapassado,
Se boca suja, inconveniente, desbocado.
Se dirige, irresponsável,
Se não dirige, um encostado.
Se tem dinheiro é procurado,
Se é pobre, um fracassado.
Se esquece nomes, demente, senilizado,
Se lembra tudo, um fofoqueiro danado.
Se trabalha é criticado,
Se aposentado, preguiçoso, acomodado.
Se bebe, um alcoólatra a ser tratado,
Se não bebe, poucochato desmamado.
Se come muito tem gases,
Se come pouco, enfezado.
Se magrinho, doente desenganado,
Se gorducho, comilão desequilibrado.
Se tem os dentes, mau hálito,
Se não os tem, só cremes e ensopados.
Artrose, arritmia, depressão,
Colesterol alto, AVC, infartado.
Se feliz risonho, bobo alegre,
Se carrancudo, rabugento mal humorado.
E na rua tem que ouvir em desespero,
Que velhinho bonitinho, bem tratado!

Deuses, Buda, todos os Santos,
Benzedeira, Pai de Santo, saravá
O que será de nós pobres coitados?