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30/07/2018

A mulher que virou cubos

Pablo Picasso - Femme et un vase de fleurs (1909)


Moacir Pimentel
Enquanto Braque fazia as cubices dele privilegiando paisagens e natureza mortas, durante o ano de 1909, Picasso formulou uma série de representações da sua companheira Fernande. Com seus olhos escuros e amendoados, o lábio superior polpudo, o queixo pontudo e a farta cabeleira trançada, Fernande foi uma presença crucial na arte de Picasso.
À moça é creditada uma profunda indolência e interesses focados em chapéus, perfumes e vestidos. Pelo menos é isso que Gertrude Stein nos diz no livro Alice B. Toklas, no qual a escritora assume a personalidade e a voz da sua companheira - a Alice do título - para contar a própria história. Gertrude descreve Fernande como “sempre bonita, mas pesada”. Será? Na verdade a garota escrevia bem demais, tinha espírito e é nos seus escritos que se encontra o registro mais preciso da vida de Picasso durante esses anos de formação cubista.
As telas que o espanhol cometeu no ano de 1909 formam um conjunto que se destaca na história do retrato, abrangendo praticamente todos os meios. Uma devoção tão intensa assim a uma única modelo foi algo inédito no trabalho de Picasso. Mesmo que, da coleção, apenas umas seis telas representem claramente a moça e possam ser chamadas de “retratos”, o conjunto da obra impressiona.
Tenho certeza que à primeira vista você vai pensar que a Fernande que mora nessas telas é prima legítima do Alien, aqueeeele oitavo passageiro (rsrs) Isso se deve, em parte, à necessidade de posse que Picasso tinha de tudo onde seus olhos batiam. Ele estava experimentando um estilo novo e, em parte, ao fato da mão ter pesado demais nas figuras que veremos a seguir, primitivas e inumanas, ainda o resultado que a arte tribal africana tivera no artista.
Mas o que confere às presentes imagens sua força é o que Picasso faz com elas: a liberdade imprudente com que o pintor as incorpora na sua visão pessoal e as liberta para que sirvam às suas próprias necessidades estilísticas e psíquicas. Não se sabe se fazia isso de maneira consciente – afinal o toureiro tem fama de machista! – mas sem dúvida esse cara tinha necessidade de dominar suas senhoras e não somente com a força avassaladora de sua potência artística. Outras mulheres tiveram suas formas esfaqueadas pelos maridos pintores de forma bem mais suave e morna. Um exemplo de cubismo caridoso? Madame Jean Metzinger.
Jean Metzinger - Portrait de Madame Metzinger (1911)

Pois é. Só que o prezado Jean Metzinger não era um Picasso que, de quando em vez, fazia de suas companheiras viragos ameaçadoras ou criaturas de frente e de perfil a um só tempo, lua cheias e quartos minguantes. Era como se o espanhol almejasse retratar não apenas as peles, a aparência invariavelmente bela, mas a totalidade das suas criaturas, capturando a menina, a mulher, a velha, a mãe, a fêmea, ontem, hoje e amanhã, por dentro e por fora, de frente, de perfil, de bruços e “de ladinho”, “inteira e aos pedaços”, como diz a Donana. Além disso também precisava expressar, nas tintas, o que sentia por elas, tudo junto, misturado, ambivalente, plurifacetado porque Picasso era Picasso e, de sê-lo, o cubismo foi a sua linguagem ideal. Simples assim.
Mas ao observar tecnicamente as primeiras telas verdadeiramente cubistas do espanhol a gente entende, de saída, que Georges Braque largara na frente na “cubismonização” geral de paisagens e naturezas mortas. Em seguida se percebe que o cubismo emergente de Picasso, nesse estágio, estava concentrado de maneira incomum na fisionomia e no clima emocional da sua amante, talvez um dos maiores amores da vida dele. E mais: que nascia repleto de superfícies crispadas e de sentimentos complexos e com uma tristeza como pano de fundo.
No ano fecundo de 1909, Picasso produziu cerca de sessenta imagens cubistas femininas em vários formatos - cabeça, busto, meio corpo, corpo inteiro e reclinado - que possuem claramente atributos de Fernande. Ela sempre esteve lá, uma presença física no estúdio e então ele a pintou ou desenhou ou aquarelou bordando, lendo, cozinhando, escrevendo, costurando, dormindo, em devaneio ou reclinada nua no sofá.
A fragmentação das imagens torna a identidade da moça difícil de reconhecer. Mas a postura ereta, a pose, o cabelo preso em um coque e/ou em uma longa trança, os ossos faciais, a estrutura dos músculos dos ombros, tudo isso identifica essa figura onipresente como Fernande. Embora as características da amada o inspirassem, essas imagens não são retratos no sentido tradicional e o nome da garota raramente é mencionado nos títulos das obras.
O que todas as pinturas de Fernande têm em comum são as credenciais histórico-artísticas impecáveis, o fato de serem composições complexas mas altamente resolvidas, executadas em uma época em que tanto Picasso quanto Braque estavam elaborando uma nova linguagem formal radical baseada em pontos de vista mutáveis e planos facetados.
Mesmo que as imagens que o espanhol fez da companheira representem um momento seminal na evolução da arte moderna, a importância delas é menos individual do que como parte de um todo estupendo que foca um único tema e investiga uma única ideia. Picasso não tratou de nenhum outro assunto com tal escrutínio durante esses anos pré-guerra, e esses bustos e corpos inteiros nos quais Fernande aparece como modelo e/ou como tema constituem a primeira das inúmeras futuras “séries” do artista.
A arte que Picasso cometeu depois das Senhoritas d'Avignon, a sua grande explosão fetichista povoada por prostitutas nuas e desfiguradas com faces ameaçadoras e mascaradas, sugere que o toureiro saltara para a tal da quarta dimensão antes de olhar para os lados e que estava tentando encontrar seus caminhos em um universo desconhecido.
Esses trabalhos estranhos também nos fazem pensar nos de Gerorges Braque, no quanto o francês era tão bom quanto o catalão porque, a essa altura da busca de Picasso, enquanto nas suas telas a ilusão do espaço tridimensional estava começando a ceder espaço à franqueza bidimensional, Braque já quebrara as paisagens e as naturezas mortas em facetas afiadas e retangulares, marrons e bronzeadas, já as reorganizara sobrepostas em um plano raso ao invés de recuar para longe e, de quebra, Dona Abstração já piscava o olho, de longe, para o francês.
As cubices desses dois só podem ser compreendidas se confrontadas, mas eles foram coerentes ao longo do tempo, com as tentativas e erros e com os insights de cada um a partir de duas fontes que, a princípio, formam um par improvável. A primeira foi a arte de Paul Cézanne, com suas perspectivas fraturadas e o estilo analítico de observação.
Georges Braque - Grands arbres à L'Estaque (1908)

A segunda, um pouco mais estranha, foi a figuração estilizada da arte africana que ofereceu primeiro a Picasso e depois a Braque os meios para sair dos confins da representação e sacudir as fundações da pintura ocidental.
Olhando para as artes deles, lado a lado, nos fica claro como o sol do meio dia que Braque ganhava todas quando o jogo era brincar de Tio Cézanne, aplicando as lições do Mestre sobre perspectiva e nivelamento. Por outro lado, o estudo de Picasso sobre a arte africana fora mais profundo e seria vital para que eles inventassem uma nova linguagem pictórica.
Na arte de Braque os retratos aconteciam de quando em vez enquanto a arte do retrato ocupava um lugar especial, talvez central, no trabalho de Picasso. É por isso que o espanhol começou sua aventura cubista com essas pinturas de Fernande em um dos capítulos mais angustiantes na história da arte.
Os retratos dessa mulher destacam-se não como um passo à frente mas como um sprint em ziguezague, um surto que mostra Picasso quebrando e extraindo o código das Senhoritas e lutando para elaborar um vocabulário formal, flexível e ampliável, que o libertaria definitivamente para retratar a realidade de novas maneiras.
Para o pintor, naquele momento, os objetos eram uma multiplicidade de formas planas coloridas com as quais ele queria fazer uma arte pura, cerebral e conceptual através da reconstrução das formas naturais segundo a lógica e a geometria, rejeitando a simples cópia ou representação da aparência visual e sensorial dos objetos e, bem assim, os registros sequenciais de que falava o “professor” Poincaré. Traduzindo: Picasso, como sempre, queria tudo e ao mesmo tempo (rsrs)
Ele precisava por alguma ordem nas diferentes perspectivas de um mesmo objeto, sistematizar a simultaneidade nas tintas, enfim, normatizar a representação quadridimensional que inventara. O sucesso teve um custo que foi além da arte, e explica em parte a qualidade lenta e apática da modelo e o temperamento melancólico dos trabalhos.
De qualquer forma, esses estudos de cabeça e figura de Fernande dão à pintura de retratos uma estranha dimensão paisagística, muitas vezes reforçada por fundos montanhosos e uma paleta de verdes, cinzas e marrons que nos remetem ao ar livre, aos planaltos remotos ao sul de Barcelona onde nasceram.
Pablo Picasso - Figure dans un fauteuil (1909)

Enquanto casado com essa jovem mulher, na grande maioria de suas composições Picasso simplesmente absorveu o corpo e a face da companheira tão completamente no seu vocabulário visual que todas as mulheres que pintava se tornavam, por assim dizer, Fernandes genéricas. Mas as imagens cubistas de Fernande, na realidade, nos dão testemunho não dela, da mulher, mas da luta de Picasso às voltas com uma ambição formal difícil: traduzir sua visão instável em uma sólida peça de escultura que, como se não bastasse, deveria ainda ser expressiva.
Essas obras são uma revelação do processo de desconstrução/ reconstrução de Picasso, uma narrativa de como foi inventada a linguagem cubista. No Museu Picasso de Paris, alguns estudos e esboços preliminares que o artista fez antes de pintar essas telas nos mostram novas equivalências, como a forma de um obelisco sendo trabalhada para servir de nariz e a de um livro aberto sendo planejada para virar uma boca. Por favor dê uma olhada no rosto abaixo:
Pablo Picasso - Femme assise (1909)

O lábio superior dessa moça é um livro aberto! Tais formas quase abstratas pelas suas colocação, torção e inclinação foram usadas na figura como feições e de forma a produzir um poderoso efeito. A direção do olhar, a inclinação da cabeça/montanha versus a inclinação do nariz/obelisco versus a inclinação do lábio/livro produzem curiosamente uma pensativa e melancólica mulher. A tela foi batizada de Mulher Sentada e pertence a um subgrupo de mais cinco composições, nas quais as feições carnudas de Fernande foram transformadas em formas duras e angulares interligadas com um enorme pescoço bifurcado.
Não há dúvida de que os esboços desses detalhes faciais isolados revelam os esforços de Picasso para encontrar formas fluidas mas sólidas o suficiente para inspirar retratos esculturais. O fato é que o toureiro fez de Fernande a sua imagem culminante e levou essa imagem a novos extremos, enquanto lutava para reter elementos de semelhança ao pintar a moça de forma cada vez mais cubista.
Mas, com certeza, dessas tintas vanguardistas brota um olhar torturado que sugere as ansiedade, tristeza e melancolia de Fernande, como cabalmente demonstrado também pelo quadro Mulher em uma Poltrona, abaixo, no qual ao enfatizar a posição descendente da cabeça da amante, Picasso dotou a figura com uma aura de melancolia, uma qualidade expressiva raramente encontrada em obras cubistas.
Pablo Picasso - Femme nue dans un fauteuil (1909)

A Mulher em uma Poltrona, em particular, é um clássico exemplo da melancolia na arte do retrato, diretamente proporcional ao ângulo mais ou menos reduzido da cabeça das modelos. Picasso criou aí uma torção e um peso que emprestam ao pescoço da moça uma monumentalidade quase arquitetônica, ressaltando além da impressão de tristeza uma visível tensão.
Porém a pergunta é: essa melancolia de Fernande sugerida de novo e de novo nessas telas seria uma experimentação pictórica ou seria real e, se positivo, qual teria sido a sua causa? Com a palavra Fernande:
“A vida é miserável. Pablo é rabugento e nele não posso encontrar qualquer apoio moral ou físico”, escreveu a garota para Gertrude Stein durante o verão de 1909.
Tudo bem que durante nessas férias que passou na Espanha, Fernande teve uma infecção renal e passou muito tempo sentindo dores fortes, incapaz muitas vezes de sair da cama. Mas nas suas cartas ela confessa estar deprimida e sentindo-se negligenciada pelo amante. No entanto esses retratos são tão obsessivos e a obra de Picasso tão autobiográfica que eu confesso cogitar se por acaso essa tristeza era só dela.
Fernande foi a única mulher com quem Picasso esteve profundamente envolvido na pobreza, que o conheceu e amou antes do cara se tornar “O Senhor Picasso” da História, quando ele ainda era capaz de um tipo de intimidade que sua ambição e talento logo tornariam impossíveis. O casal pode ter percebido nas sombras e silêncios cada vez mais profundos entre eles, nas suas antigas afinidades cada vez mais desvanecidas, que a mudança estava a caminho, que o fim viria em breve devido ao poder da linguagem dos retratos que estavam sendo cometidos. Pobre Fernande!
Como se não bastasse a distração do companheiro, o processo artístico recém inaugurado por seu amado transformara a imagem de tinta em algo que não mais resultava da observação do objeto que, no caso, era o seu lindo corpo! - e grande arma! - mas da imaginação borbulhante do sujeito. Na verdade Picasso já não mais precisava trabalhar com modelos, ao vivo e a cores. Em vez disso, a figura feminina tornara-se para ele um meio de experimentar com a forma. Ele também silenciou as cores: as sombras usadas para a figura e aquelas que descreviam o seu entorno e/ou a paisagem circundante saiam da mesma paleta e o resultado é uma cromaticidade harmoniosa nessa carnificina cubista do corpo de Fernande.
Mas então, no meio do baile, Picasso mudou de rumo de novo. E as suas figuras, posicionadas centralmente, passaram a nos serem mostradas olhando fixamente tanto para a frente, quanto para a direita ou para a esquerda. Simultaneamente. Ou seja, nós as enxergamos múltiplas. Veja como apesar de percebermos, à primeira vista, essa mulher abaixo de frente, é a sua versão de perfil que está em primeiro plano, à direita da tela, muito mais nítida e finalizada.
Pablo Picasso - Femme aux poires (1909)

É como se o pintor tivesse se movido em torno e acima da companheira e analisado todos os seus ângulos e capturado dela não apenas uma visão, mas muitas, sucessivas, de uma pluralidade de pontos de perspectiva, de todos os lados e ângulos, cada aspecto, cada reentrância e protuberância, cada elemento em momentos diversos no tempo e a reconstruído, fundindo todos o vislumbres que tivera da moça de uma só vez em uma única imagem que, facetada, representa a essência completa do tema, se não todas as características da Fernande.
Estamos falando novamente de Senhoritas Espaço-Tempo, de uma quarta dimensão, de plurivisão, de múltiplos pontos de vista, de aspectos fragmentados e equilibrados pela geometria, de sensações táteis e motoras, da inteligência subjugando os sentidos, de todas as nossas faculdades, das personalidades interferindo no espaço pictórico e transformando a imagem, de uma passagem entre dois espaços subjetivos - o do criador e o do observador - para se inventar uma imagem total, uma nova verdade, nascida tanto  da percepção quanto da imaginação.
Até hoje, mais de cem anos depois, esses retratos chocam os nossos pobres olhos. Os planos prismáticos e agitados, a reformatação do rosto para se tornar uma grande quantidade de superfícies assimétricas, a angularidade usada para mostrar várias perspectivas simultaneamente, a figura que nos examina através dos olhos vazios, são características um pouco desconcertantes. Mas ele atingiu seu objetivo, essas imagens são esculturas.
Pablo Picasso - Tête de femme (1909)

Claramente, Picasso dividiu-se em três dimensões, em parte para obter uma ideia mais precisa da integração da figura e do espaço. Mas essa Fernande aí de cima não é tridimensional. Consigo percebê-la de frente, e duas vezes de perfil: o direito e o esquerdo se unindo como em um beijo. O que vemos nessa tela é a profundidade obtida por diversas perspectivas simultâneas, é o movimento em profundidade, ou o tempo, ou o espaço-tempo, a quadridimensionalidade conquistada pela apresentação simultânea de múltiplos aspectos de um objeto na página bidimensional.
Parece até que o cara apalpou a moça, que a examinou e/ou explorou através do toque, que sentiu seus exatos tamanho ou forma ou firmeza ou volume real. Essa pintura é um produto da experiência, da memória e da imaginação do toureiro, mesclando uma série complexa de elementos do passado e do presente, da memória e da visão, da real e do virtual, do que é tátil e do que é criado. Picasso começou aqui a reduzir tudo a facetas. Em alguns trabalhos ele trata os planos como manchas de cores suaves e sem bordas que lembram aqueles músculos expostos nos estudos anatômicos de Rembrandt. Em outros, ele envolve as facetas em linhas duras e nítidas, como se tivessem sido esculpidas em pedra.
Essa Cabeça de Mulher de tinta é caracteristicamente composta de formas geométricas desconexas, o que cria, paradoxalmente, a ilusão de se estar vendo Fernande como uma escultura tridimensional. Não é de surpreender portanto que, depois de fazer um estudo tão completo de como renderizar em uma superfície bidimensional uma mulher quadridimensional, Picasso tenha tentado ampliar a experiência, aplicando a metodologia à escultura tridimensional (rsrs)
Ao retornar a Paris em setembro de 1909, ele esculpiu uma cabeça em gesso e a fez moldar em bronze e pronto: nascia a agora famosa Cabeça de Mulher (Fernande) considerada a primeira escultura cubista.
Traduzindo drasticamente as facetas ordenadas do cubismo em três dimensões, essa escultura transforma seu tema em um redemoinho de pequenos picos e vales que nunca permitem que o olho encontre um local de descanso ou paz, nem qualquer perspectiva única e unificadora. Os planos e torções dão ao rosto um ar atormentado, quase cego, como se tristeza fosse o seu sobrenome.
Pablo Picasso - Tête de femme - Fernande (1909)

As pinturas que acabamos de ver são os primeiros retratos cubistas puros de Picasso. Embora a escritora Gertrude Stein teimasse que também as paisagens que o artista pintou nesse mesmo verão foram as primeiras cubistas, não é verdade. O fato de Gertrude amar por demais o toureiro, não a desculpa por essa injustiça para com as paisagens cubistas que Braque pintara um ano antes. Mas veremos as telas do encanto da escritora e, bem assim, o local onde o espanhol encontrou o caminho do cubismo na nossa próxima conversa.


28/07/2018

Segunda feira

imagem CBS



Francisco Bendl
Segunda-feira, 23 de julho de 2018, o tempo está frio e nublado no RS.
Na minha cidade, 8 Graus Celsius, às 14:20h!
Ouço o conjunto nacional que arrebatou vários músicos de outros agrupamentos, The Originals, que me fizeram mergulhar no passado, e profundamente!
O rock brasileiro dos anos sessenta, cujas versões dos Beatles com Renato e Seus Blue Caps, The Fevers, Os Incríveis, me transportam para uma época verdadeiramente feliz, alegre, onde a sensação que se havia era a de ser dono do mundo, que o futuro para cada um de nós estava assegurado brilhantemente, ainda mais se levássemos em conta a alegria que nos contaminava, embalados pelas canções inesquecíveis!
Hoje, na velha guarda, me recordo da Jovem Guarda, que passava na TV aos domingos à tarde mais de cinquenta anos atrás!
Mas, as músicas, continuam a me fazer dançar, cantar, e colocar o som mais alto do que o costume após tantas décadas!
A tarde cinzenta, feia, fria, pouco me importa, pois estou aquecido pela música alegre, pelas recordações, e sacolejando em frente ao micro dedilhando as memórias que vão se dissipando com o tempo, que as resgato mediante o impulso de canções que jamais serão compostas com o embalo e letras daquele período, que se vai longe, de um passado distante, porém memorável.
Voltou a chover.
Os pingos, fortes e frios, parecem que trazem dentro de si a lembrança congelada de um tempo que somente os setentões viveram:
Romântico, agradável, melodioso, letras ingênuas, porém com essência, com recado a ser dado, muitíssimo diferente do “bunda para cima, bunda para baixo”!
As versões de Neil Sedaka, Beatles, Paul Anka, Rolling Stones, mais as badaladas de Roberto Carlos, caracterizaram as décadas de sessenta e setenta como as mais prodigiosas em músicas de embalo de todos os tempos.
E havia espaço para todos os ritmos, cantores, orquestras, diga-se de passagem:
Elvis Presley, The Platters, Ray Coniff, Tangos, Boleros, Rock, Salsa, Polkas, Valsas, a fantástica música italiana, igualmente a interessante e forte música francesa... ouvia-se de tudo, dançava-se quase tudo, comprava-se discos semanalmente!
A chuva continua cada vez mais forte, e desceu uma neblina que não enxergo o outro lado da rua.
Na razão inversamente proporcional dessa tarde sem ânimo, sem brilho, sem cor, estou animado, me movimentando na poltrona onde escrevo, e balbuciando as letras das canções que marcaram época na minha vida, assim como de muitos leitores e colegas desse blog extraordinário, Conversas do Mano.
O poder da música, do som, do ritmo, de se viajar no tempo, dos amigos que se foram, das meninas que casaram e desapareceram, das namoradinhas, das festinhas aos fins de semanas...
“O meu primeiro amor, o meu primeiro amor ... bateu forte como nunca o meu coração ...”
Tenho que cuidar da poltrona não se quebrar e me atirar ao chão, me acordando desse sonho estupendo, que não quero acordar tão logo, pois estou me sacudindo vigorosamente (a Marli pergunta se estou com coceira no corpo)!
Ainda vou organizar um baile com as músicas de sessenta e setenta, só, sem qualquer outra canção no meio e, claro, convidar uma turma daquele período que tenha a minha idade, de modo a revivermos o embalo maravilhoso daqueles momentos excepcionais.
O problema será encontrar um conjunto (nossa, hoje é banda), que saiba tocar as canções que são inesquecíveis e de tanto tempo atrás, pois mecanicamente não teria muito sentido, apesar da qualidade das caixas de som de hoje.
Enfim, a tarde fria, chuvosa, cinzenta, transformou-se em divertida, colorida, com aquele sentimento nostálgico que, ao mesmo tempo, nos traz tristeza e uma gostosa sensação de se ter vivido um tempo incomparável, de se estar presente quando o mundo recebia mudanças importantes, que alterariam a vida de todos!
Enquanto a geração de paz e amor queria uma existência mais amena a outra parte queria guerras:
Havia terminado a da Coréia; a França perdera a Indochina; os americanos foram para o Vietnã; os franceses perderam a Argélia; Biafra consegue a independência; o homem chega à lua...
Queríamos apenas espaço para uma rebeldia contra os mais velhos que apenas e tão somente não dialogavam, lutavam, se enfrentavam, morriam, e causavam dores e prejuízos.
Se empunhavam metralhadoras, fuzis, pistolas, usávamos a guitarra, a bateria, o saxofone, o baixo, e nossos combates era decididos em quem cansaria mais rápido durante uma noite de rock e baladas, hoje em dia místicas!
A nossa paz não era apenas um gesto, mas atitude, comportamento, vida em comum, sem preconceito, livre.
Restou o quê?!
A lembrança, mais nada.
No entanto, tão poderosamente importante, que após tantos anos estou me sacolejando na poltrona com as músicas que moldaram a minha juventude, que me fizeram feliz durante um bom tempo, que havia a alegria despreocupada do jovem, que procurava a diversão, dançar, cantar, e abastecer-se com ânimo para uma semana de retorno à escola e trabalho.
Salve o refrão conhecido e roto:
“A gente era feliz e não sabia”!


25/07/2018

Meditando na Caverna

Os garotos na caverna (fotografia dos SEALS da marinha tailandesa)


Antonio Rocha
Recentemente o mundo viu os esforços do governo Tailandês e mais a preciosa ajuda de voluntários, para salvar um time juvenil de futebol, mais o técnico, um ex-monge budista.
Infelizmente, um dos participantes no resgate veio a falecer, os demais, todos foram salvos.
Pessoas de todo o mundo, independente de suas crenças oraram, torceram, meditaram, fizeram preces para que tudo saísse de forma positiva... e deu certo !
Uma das fotos estampadas nas mídias foi um pequeno grupo dos meninos meditando, enquanto aguardavam o resgate.
Bonita também a solidariedade de vários países que enviaram algum tipo de recurso para a resolução do fato.
Mas, que meditação é essa? Que ajudou as crianças ficarem mais calmas?...
É a chamada Meditação de Plena Atenção, uma importante forma de prática budista que em inglês chama-se “mindfulness” e em língua páli, a língua que o Buda falava no século VI antes de Cristo, “vipássana”, ou seja, visão interior.
Aos dezoito anos fui admitido no Templo Budista de Santa Teresa, RJ, e fiz essa prática logo no primeiro dia, desde então, venho treinando a minha mente e todo o meu ser neste exercício silencioso. Outro dia estive fazendo as contas, quase meio século de vida meditando a Plena Atenção.
Sou imensamente grato à vida que me levou até aquele local, hoje, não existe mais, em função dos graves problemas sociais da cidade maravilhosa (escrevi com letra minúscula mesmo), muitos assaltos e o mosteiro está sendo reconstruído em São Lourenço, MG, com outro grupo e outra linhagem.
Atribuímos também esta mudança à famosa impermanência, uma das primeiras aulas que recebi com essa meditação.
A prática consiste em você ficar observando a respiração, o ar entrando e o ar saindo das narinas, sem interferir. Se a respiração estiver rápida, ótimo, aos poucos vai desacelerar. Se a respiração estiver calma, vai ficar mais calma ainda... sem pressa, cada um no seu tempo.
A medicina vem descobrindo efeitos benéficos nessa Meditação e em outras formas de meditação também. Mais adiante eu falo mais.

22/07/2018

Os montanhistas da colina

Georges Braque - Nature morte avec un "metronome"(1909)


Moacir Pimentel
“Fomos guiados pela mesma ideia. Nós éramos como dois montanhistas amarrados juntos pela mesma corda”, disse Braque décadas depois sobre o trabalho que ele e Picasso realizaram.
Só que Fernande Olivier, a companheira do toureiro, implicou de saída com essa troca de figurinhas entre o “namorido” e Braque que, inclusive, foi esnobado pela moça no seu livro de memórias. Ela costumava resmungar que os rapazes trabalhavam quase em “coabitação” e que viviam um relacionamento artístico no modo “conjugal”. De certa forma era verdade e, pelo término da amizade, eles passaram o resto de suas vidas em remissão (rsrs)
Mas a sinfonia masculina desde os seus primeiros acordes muito desagradou Fernande que, ciumenta e possessiva que era, antipatizava profundamente com o colega de tintas do seu amado. Aliás, compreensivelmente, uma vez que, em muitos aspectos, o “inimigo” começou a substituí-la. Picasso às vezes se referia a Braque como “ma femme” – minha mulher! (rsrs) – muito à vontade com o apelido e a brincadeira, porque, como ele, o companheiro de tintas e copos também era “espada” e amava as mulheres e ninguém disso duvidava.
Braque vivera um tórrido amor com uma mulher de beleza lendária, Paulette Phillipi, vulgo Manon e/ou Opia, a mensageira da alegria, a musa dos dependentes, a fonte de ópio e de prazeres para os artistas de Montmartre nas “fumeries” vespertinas que organizava. André Salmon, nos seus escritos, nos narra como Picasso - com alguma ajuda de Fernande - conspirou para separar o amigo dessa perigosa namorada. Tem mais. Diz Dona Lenda que foi Picasso quem escolheu a esposa de Braque (rsrs)
Marcelle Vorvanne era uma das mais requisitadas modelos da colina, uma moça bonita e simpática, mignon e alegre que adorava pregar peças nos artistas desavisados e era perita em apelidá-los. Embora Braque fosse um tipo dominador, não se importava com o fato da esposa pensar com a própria mente em parte porque a principal arma de manipulação da mulher de sua vida era a gastronomia (rsrs) Mas, estranhamente, Madame Braque continuou chamando o marido pelo sobrenome pelo resto de suas vidas.
Georges Braque - Femme tenant une Mandoline (1910)

Georges Braque era um sujeito calmo, relaxado, de bem com a vida, e talvez por isso mesmo tornou-se o companheiro indispensável de Picasso. De temperamento eles eram bem diferentes mas foi dessas diversidades que nasceu o cubismo: o espanhol era volátil e expressivo e o francês simpático, mas inescrutável. Com quase a mesma idade - Pablo e Georges nasceram com sete meses de intervalo em 1881 e 1882 respectivamente – se tornaram aliados desde que Apollinaire levou o francês ao estúdio do espanhol no Bateau-Lavoir pela primeira vez. Pudera! Esses dois eram um time e juntos não perdoaram nem mesmo a Basílica de Sacré-Coeur de Montmartre (rsrs)
Georges Braque -  Le Sacré Coeur (1910)

Ambos eram brilhantes, talentosos e antenados, apreciavam a vida ao ar livre e a boemia nas ruas, bares e cafés, a cultura e a literatura populares e o cinema. Eles adoravam histórias de cowboy, colecionavam aventuras em brochuras baratas, arte africana e cartazes de filmes. Mas a principal obsessão da dupla dinâmica eram os jornais. Picasso e Braque eram viciados na “mídia” da época, empolgados com a rápida circulação de informações e a cacofonia da publicidade. Um do mais geniais desenhos de Picasso foi desenhado em uma página que elencava os preços de ações:
Pablo Picasso - Tête d'homme avec moustache (1913)

Tudo bem que, em revolta contra os impressionistas - que abandonaram a forma por causa da luz e da cor! - e contra os “feras” - que amplificaram a cor a uma intensidade sem precedentes! - Braque e Picasso promoveram uma carnificina da forma, quebrando-a em inúmeras facetas, e reduziram suas paletas a tons de cinza e bege para dar cor aos restos mortais de tudo.
Mas quem pensa que essa modernidade foi filha do sofrimento e nasceu angustiada jamais ouviu falar das presepadas dessa dupla, das artes e das gargalhadas que aprontaram e deram durante o período de criatividade efuziante e fecunda que compartilharam. Eles se divertiram!
A camaradagem lúdica e a competição artística e intelectual foi a base da aliança de Picasso e Braque. Os historiadores da arte acham que o cubismo foi uma coisa séria, uma romaria sisuda por uma série de experimentos conceituais. Fala sério! Que bobice! O cubismo foi um jogo divertido. O caos ordeiro das telas nas quais os dois amigos trabalharam durante esses primeiros anos foi produto de suas peraltices.
Dizem que, quando jovem, o francês era uma máquina: alto, grandalhão, um excelente pugilista e ciclista, famoso por sua força física. E que os rapazes gostavam de se passar por pugilistas profissionais, um peso leve e o outro pesado: era a estratégia deles para conseguir descontos nas corridas de táxi (rsrs)
Eles se apresentavam como “os irmãos Wright” – o apelido de Braque era Wilbur! - e iam até o aeródromo na periferia de Paris para observar os filhotes de Ícaro desafiando o céu dentro de engenhocas de madeira e tela que desafiavam a lei da gravidade graças às cordas e à cola. E então voltavam para o Bateau Lavoir para fazer suas próprias esculturas como andaimes de papel, igualmente coladas e instáveis. Essas brincadeiras eram percursos mentais! Os cubistas gostavam de cometer referências à aviação porque viam sua arte como sendo inovadora como ela.
Pablo Picasso - La coquille Saint Jacques - Notre avenir est dans l'air (19120

Em parte como resposta às telas de tons brilhantes dos futuristas italianos, Picasso usou tinta industrial na tela acima de nome Concha de Vieira - Nosso Futuro Está no Ar, na qual reproduziu a capa de um panfleto impresso pela empresa de pneus Michelin para turbinar o apoio popular ao programa de aviação militar do governo. As listras azuis, brancas e vermelhas, é claro, referem-se à bandeira francesa.
Picasso também chamava Braque de “o conferidor” e dizia que ele verificava tudo e que fundamentara todas as novidades da arte moderna nas leis da óptica e da física. Braque se orgulhava do trabalho deles que habilmente demolira a “ilusão enganadora da perspectiva renascentista”, demostrando que não havia o tal do obsoleto ponto de fuga.
Eles usaram os instrumentos da arte para seus jogos de aprendizagem e de linguagem, misturando as tintas às pretinhas e aos números que o francês – isso mesmo, foi ele! - teve a ideia de incluir em suas pinturas. Eles torceram as imagens de suas mulheres e amigos em trocadilhos, assim como desmontaram as identidades únicas e frontais de suas figuras humanas.
Dos dois era Braque quem amava a música, e portanto muitas das pinturas cubistas têm uma vibração que sugere o vibrato do violino e o dobrar e desdobrar do acordeão, que ele tocava. É um equívoco se pensar que foi o espanhol quem introduziu elementos da música nas cubices – todas aquelas notas e instrumentos musicais.
Georges Braque - Violon et cruche (1910)

O autor do crime foi Braque e o efeito abrangente foi o do romance e da boemia da vida em um café parisiense mais de cem anos atrás.
Nessa busca por um novo tipo de linguagem e de arquitetura pictórica, o tempo todo se sente a necessidade de reconstrução. Juntos Pablo e Georges se esforçaram para avançar em direção a um cubismo mais desenvolvido. Em 1909 os objetos ainda eram reconhecíveis nas pinturas desses dois, mas já apareciam fraturados em múltiplas facetas, assim como o espaço circundante com o qual eles passaram a se fundir. Depois as composições entraram não em parafuso mas em movimento à medida que os olhos observadores tiveram que se mover de um plano facetado para o seguinte, procurando diferenciar formas e acomodar fontes de luz e localizar as cada vez mais raras placas de sinalização da tridimensionalidade.
Surgiram as partes segmentadas de jarros, violinos, violões, clarinetes, partituras, maçãs, peras, uvas, garrafas e copos, cartas de baralho e das paletas dos artistas. Na tela de Braque batizada de Piano e Viola, formas cristalinas explodiram: as teclas negras e brancas do piano quase todas desincorporadas, as partituras virtualmente se desintegrando, a viola decomposta.
Georges Braque - Piano et Mandore (1909)

Fragmentar foi o jeito que Braque e Picasso encontraram de chegar o mais perto possível dos objetos que a pintura lhes permitia. Por isso, pelas qualidades tácteis implícitas, o apelo das naturezas mortas os tantalizava mas os instrumentos musicais tinham ainda mais significado, na medida em que são animados pelo toque. Da mesma forma que os ritmos e harmonias são a vida dos instrumentos musicais, o movimento espacial dinâmico é a essência das mais líricas pinturas cubistas.
E assim, nesse pingue-pongue, brincando irreverentemente, os dois grandes mestres foram inventando o novo estilo que mudou os fundamentos da arte tradicional européia: a modelagem em luz e sombra para sugerir arredondamento e volume, as linhas da perspectiva para sugerir espaço, a própria ideia de se fazer uma descrição reconhecível do mundo real. Quando as novas imagens começaram a querer fugir das paredes, aí os rapazes inventaram o cubismo hardrock, se uniram e mergulharam no cubismo analítico, como é o caso da Garota com uma Cruz.
Georges Braque - Fille avec une croix (1911)

As obras de arte feitas nessa folia eram quebra-cabeças intrigantes e divertidos, eram como conversas sem pressa no estúdio ou no café favorito dos artistas. Seguindo pistas que encontraram no trabalho de Paul Cézanne e cheios de bravatas juvenis, Picasso e Braque criaram enigmas pictóricos, aparentemente incompreensíveis porque são cheios de truques e contradições. Os observadores captam algumas pistas - um perfil, um seio, um cachimbo, uma garrafa, um chapéu, um jornal - e elas começam a sugerir uma realidade em três dimensões.
A impressão é a de um mundo moderno e rápido, com vislumbres de modelos, amigos e da parafernália de beber e fumar. Deliberadamente essas coisas nunca se somam totalmente, jamais formam um todo. Provocantes e indizíveis, as imagens criadas por esses dois são construções de formas e sinais reunidos com espírito. Para quem as olha o jeito é deixar de lado todas as expectativas normais e o prazer é entrar na brincadeira dos pintores, principalmente, quando eles co-inventaram, mais tarde, a primeira fase do movimento, que foi dominada pela análise da forma e apelidada de “cubismo analítico”.
Muitíssimos trabalhos dos dois amigos foram feitos ao mesmo tempo e há telas tão semelhantes que observá-las é quase um jogo de adivinhação. É que assinavam o verso das obras de propósito e às vezes nem eles mesmos sabiam quem pintara o quê (rsrs) Várias obras dos dois podem ser percebidas como de um mesmo pintor e de uma única série, e não se sabe quem pensou e/ou pintou o quê primeiro.
Que Braque pudesse fazer o que ele não podia era uma dor de cabeça e uma provocação para o toureiro. Que Braque pudesse ser o que ele não podia era um tormento regular. Mesmo depois que seguiram seus próprios caminhos e, ocasionalmente, fizeram comentários ácidos um sobre o outro, ambos permaneceram fiéis ao que haviam compartilhado durante aqueles anos. Eles nunca traíram o momento criativo que compartilharam. A declaração mais crítica que já li foi articulada por Braque e muito ambiguamente:
“Picasso costumava ser um pintor formidável. Hoje, é só um gênio.”
A impregnabilidade do silêncio deles sobre a amizade e o posterior afastamento diz muito. Há uma forte dimensão filosofal, transcendental – quase religiosa! - no cubismo e isso deve ser creditado a Braque cujo panteísmo encorajava o respeito por objetos humildes e um sentimento por cada centímetro da superfície pictórica. Com o nariz sempre mergulhado na filosofia oriental e nos romances sobre a quarta dimensão ele era zen e acreditava que “menos era mais”:
“Você tira algo e tudo fica mais bonito, mais verdadeiro. Você adiciona algo e está arruinado.”
Tudo bem que talvez tenha sido a curiosidade de Picasso que os encorajou a pegar objetos, revirá-los e explorá-los de todos os lados, esgotando-lhes qualquer possibilidade estética. Para os dois artistas, os objetos tinham que ser conhecidos, tocados e revelados. Uma pintura cubista está constantemente se revelando de novas maneiras, continuamente mudando e surpreendendo. Pintar nunca tinha sido assim antes.
Face ao significado do cubismo, ao seu sucesso inquestionável, realmente importa saber quem fez o quê e quando? Será que realmente é pertinente saber se Braque foi apenas um craque e Picasso a estrela do time? Com certeza que sim. Em um mundo de arte contemporânea fascinado pela mudança, produção e novidade, Picasso - constantemente se reinventando, testando limites, indo além de qualquer jeito e com qualquer meio - é o rei. Mas a poesia quieta de Braque não pode ser tratada como pequena e inconsequente. Nem sua sensibilidade deve ser percebida como previsível e incapaz de alterar a maneira como vemos e sentimos as coisas.
Entender e observar como Braque era capaz de notáveis flexibilidade e invenção, apreciar sua contribuição, faz a gente abstrair que o movimento artístico mais notável do século XX teria sido impensável sem ele. E – quem sabe? - a obra de Braque nos ajude a compreender um dos motivos que faziam Picasso retornar periodicamente ao classicismo: a busca de algo que só vislumbrara na presença de Braque: o equilíbrio.
Moral e metafisicamente, Braque tinha uma estatura inacessível que estava além da rivalidade. Dizem os biógrafos que ele investiu pesadamente em ser.
“Poucas pessoas podem dizer: eu estou aqui. Eles só olham para si mesmos no passado e só se veem no futuro”.
O fato é que sem Georges Braque, o menos delirante dos homens, Picasso não teria sido o mais delirante deles.