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31/10/2018

Rotina

Norman Rockwell - Freedom from Want

Francisco Bendl
O ser humano é um eterno insatisfeito. Reclama sempre, mesmo que seja algo sem a menor importância.
Não sei se é um apelo para que receba atenção ou porque é da natureza nossa ser assim, um chato.
Dizem os especialistas em casamentos – que já se separaram várias vezes, curiosamente! -, que a rotina de um casal pode causar a separação.
A relação se estabiliza, fica morna, sem maiores excitações, emoções, o casal pouco se envolve sexualmente, e passam a se aceitar como companhia um do outro.
Este é um aspecto visto pelos entendidos neste assunto, que querem uma relação agitada, de muito movimento, sexo, viagens, cinemas, restaurantes, passeios, festas ... desde que esse casal tenha dinheiro, claro.
Mas, o poder aquisitivo pode contribuir para o casal conhecer outras pessoas, igualmente atraentes, ricas, e... cada um para um lado como consequência.
Logo, pouco ou quase nada li sobre o cotidiano na relação do pobre, do sujeito como eu, que casou sem nada e continua na mesma, ou seja, bota rotina nisso de carência!!
Em face desse cotidiano desprovido do vil metal, o casal se aquieta, fica em casa, pois não tem condições de se divertir, de ir a um dos templos de consumo, os tais shoppings (também, ir a um deles para olhar as vitrines e não poder comprar nada, trata-se de uma tortura chinesa).
Resta a ambos encontrar dentro de suas casas as atrações que não podem buscar em outros locais, transformando o lar como se fosse um parque de diversões ou quase.
Então, a cama vive quebrada; em noites onde o casal precisa se lembrar como nasceram os filhos – que baita eufemismo, chê! -, ela quebra, e caem ao chão. Risadas múltiplas, mas, o “namoro” terminou, e vão dormir no colchão sem a cama, e sem resmungos.
Os sofás estão corroídos pelo tempo, rasgados, alguns aparecendo o interior.
Para os netos, eles são o pula-pula ou cama elástica, e com a mesma animação como se fossem de verdade!
A velha televisão ainda a válvulas(!) é usada como painel de uma espaçonave que os guris inventaram. O seletor de canais serve como mudança de rota das galáxias, que a imaginação fértil viaja na velocidade da luz.
A batedeira ligada é o som da nave saindo da atmosfera terrestre, por óbvio.
A louça, principalmente os copos, invariavelmente originários de extratos de tomate, pepinos em conserva, palmitos, têm um uso necessário e imprescindível:
Quando alguém inadvertidamente quebra um deles, nos almoços de domingo com a família reunida, automaticamente dois ou três são quebrados no mesmo momento, pois deve haver solidariedade com o desastrado, e ele não ser chamado à atenção, claro.
As cobertas – temos muitas em razão do rigoroso inverno gaúcho – são usadas para barracas ou dentro de casa ou até mesmo no pátio e, as cadeiras, o alicerce que as mantém esticadas e espaçosas para seus “moradores”.
A geladeira, cujo tempo de uso a deixou rebelde, pois funciona dia sim, dia não, após limpa do que tem dentro é um apartamento single, onde serão guardados segredos inconfessáveis das netas, óbvio.
Um pequeno fogão de três bocas, que a Marli utiliza para cozinhar para nós, que tem cerca de sessenta anos(!), ainda da marca Wallig, fabricado no RS, é confiscado para as famosas e indefectíveis “comidinhas” e chás, e cabe ao avô ser aquele que experimentará as especialidades!
Portanto, essa “rotina” de se viver tanto tempo juntos, também ocasiona o mesmo com a louça, os móveis, eletrônicos, configurando ao lar dos avós uma espécie de museu com enormes atrações, e jamais encontradas naqueles templos de consumo citados acima para a criançada.
Outra enorme vantagem da rotina ou do cotidiano do casal, diz respeito ao conhecimento que ambos têm um do outro.
Existe, inclusive, a comunicação até mesmo telepática, pois várias vezes quando saio e passo no supermercado na volta, a Marli se surpreende e exclama:
- Chico, como adivinhaste que eu tinha de comprar tais mercadorias?!
Sem eu ter tempo para responder, ela segue:
- Já sei, aprontaste, né, então queres me agradar!
Dia desses, meus netos estavam sentados ao meu lado junto com seus pais, meus filhos - as mães são minhas noras.
Começamos a conversar as formas como os casais se chamam carinhosamente:
Neguinha, amor, quica, gatinha, minha senhora, amoreco, minha rainha, minha deusa, amor da minha vida, meu tesouro, chimbica...
Foi quando o assunto derivou para a maneira como se chamavam quando não muito carinhosos...
Então, um por um dos filhos e noras, começaram a desfilar um rosário de alcunhas:
Fala demônio; não para de me chamar, sua doida?; vê se erra o meu nome, tá?; bah, mas não dá para te aguentar de novo; diz aí, inferno; sua mandona, se eu soubesse que eras assim, eu jamais casaria contigo; sua praga; que tu queres, serrote?; levanta desse sofá, inútil; mas tu não serves mesmo para nada!; como tu és burro!; bem que eu te avisei, teimoso!; não vou fazer nada que me pediste, vai comer no boteco; pra lavar a tua roupa imunda e fedorenta então eu sirvo, cachorro...;
As gargalhadas se ouviam no outro lado da rua!
Foi, então, que me fulminaram com a pergunta sobre como que a mãe e avó me chamava??!!
Eu estava entre a cruz e a espada. Caíra na armadilha que haviam me preparado.
Os netos me olhavam com olhos de curiosidade imensa, e respiração quieta. Filhas e noras eram só expectativas, e nada boas para o meu lado.
Pensei com os meus botões e me lembrei da célebre frase, que diz o seguinte:
“O diabo sabe não porque é diabo, mas porque é velho”.
Dito isso, eu me levantei do sofá e perguntei:
- Querem mesmo saber como a mãe a avó e sogra me chama, após quase meio século juntos?!
- Sim – foi a resposta uníssona.
- Pois sou chamado pela Marli de “deus”!
- O quê?! A mãe jamais te chamou assim, pai, enquanto as noras se entreolhavam e os netos riam.
- Pois vou provar – eu disse.
Chamei a Marli, que não estava nesse momento da pergunta a mim formulada, e pedi que ela repetisse o que dizia ao deitar, pois queriam saber.
- Marli, o que tu dizes ao deitar e levantar diariamente?!
- Ora, tu sabes: eu digo com Deus eu me deito e com Deus eu levanto, com Deus eu me deito e com Deus eu me levanto!
- Viram só, é assim que o pai e o avô é chamado em casa!!!
A Marli, que ouvira sorrateiramente a minha explicação divina, vocifera:
- Pois durante o dia quem me atazana a vida é o próprio demônio - e me atira o chinelo, que me acerta o peito em cheio!
Os netos me chamaram durante os dois dias que ficaram conosco, de vô capeta, e caiam na gargalhada!
A rotina de um casal unido por muito tempo pode ser monótona, no entanto, foi exatamente esse cotidiano que trouxe à minha família a unidade indestrutível, a fortaleza emocional para filhos e netos.
Indiscutivelmente, se muito pouco eu e a Marli nos divertimos no passado, os netos e filhos com suas esposas estão nos compensando os dias calmos, tranquilos, até mesmo meio chatos demais.
Hoje, a rotina nos determina que devemos nos preparar para os fins de semanas quando nos visitam, onde a casa é revirada do avesso através de gargalhadas, alegrias, gritos das crianças, e a felicidade estampada nos rostos de todos nós, até do capeta!


28/10/2018

Os cubistas se separam

Georges Braque dans son atelier, rue Caulaincourt à Paris, en 1911 - fotografia de Mariette Lachaud 







 Moacir Pimentel
Depois de ter em apenas dois anos e juntamente com Picasso quebrado o domínio da perspectiva renascentista, Georges Braque se alistou antes mesmo que a Primeira Guerra Mundial começasse. “Levei Braque à estação de trem e nunca mais o vi”, disse Picasso, metaforicamente, na velhice.
Na verdade eles seguiram caminhos separados e, como acontece com muitos casais divorciados, raramente falavam um com o outro e quando se encontravam a antiga intimidade não era retomada. Porquê? Nunca saberemos porque os dois amigos jamais explicaram. Os biógrafos ventilam variadas hipóteses mas é tudo achismo e ninguém sabe realmente as razões do distanciamento dos pintores.
Braque recebeu duas condecorações por bravura em combate, mas em 1915 foi seriamente ferido na cabeça e teve uma experiência de quase morte: perdeu a consciência por dois dias, ficou temporariamente cego, foi operado e escapou por pouco de perder a visão e só conseguiu voltar a pintar em 1917, receoso de ter sido superado por aqueles que, como Picasso, continuaram a criar durante a guerra. Ele nunca recuperou seu grande vigor físico nem o gregarismo da juventude. e meio que se exilou, voluntariamente, na bela Normandia, no norte da França.
Apesar dele ter sido, na minha opinião, extremamente criativo e original como pintor, o genial trabalho de Braque jamais foi devidamente reconhecido e continua sendo subvalorizado porque ele não tinha uma personalidade vistosa e midiática, nem pintava de uma maneira provocativa ou sensacional.
O que não significa que ele não tenha perseguido até o fim as suas próprias visão do mundo e concepções de criação, em uma obra que desafia a classificação por qualquer dos “ismos” conhecidos. Suas complexidade visual, honestidade intelectual e nobreza espiritual não eram as qualidades preferidas em uma época na qual os olhos eram arrebatados pela demonstração contínua do gênio autorenovador de Picasso.
De fato, de 1909 até 1919, não apenas o público interessado, mas especialmente os críticos, deram pouca atenção ao trabalho de Braque, a quem eles consideravam um imitador e satélite de Picasso. Com todas as evidências à nossa disposição hoje, podemos ver o quão errado foi e continua sendo esse julgamento.
Durante os anos em que trabalharam juntos, nem Braque nem Picasso pensavam em si mesmos como líder ou discípulo e a grande conquista da dupla foi, sem dúvida, ter sido capaz de misturar e manter sob controle suas personalidades competitivas enquanto se concentraram de todo o coração em criar a quatro mãos uma nova linguagem pictórica.
O espanhol contava nas rodas dos cafés de Paris que, quando Braque estivera entre a vida e morte tentara vê-lo no hospital. Em vão! Uma enfermeira lhe explicara que não seria possível pois Madame Braque proibira todas as visitas. Picasso então retrucara para espanto da mulher: “Como assim? Eu sou Madame Braque!” (rsrs)
Usando uma expressão do próprio Picasso, foi do “casamento” desses dois temperamentos, um francês e o outro espanhol, que resultou a sucessão de invenções imprevisíveis que mantiveram o desenvolvimento da pintura cubista em movimento. No entanto, cada um dos dois artistas tinha dons distintos que inevitavelmente encontraram expressão. Enquanto pintaram próximos um do outro os rapazes tiraram vantagem criativa da interação e das divergências dela mas suas respectivas pinturas sempre tiveram um caráter individual que um olho atento detecta. Ambos deram a seus quadros descritivos um caráter inconfundivelmente pessoal.
Embora Picasso tenha cometido o grande insight do Cubismo – as figuras espaço/tempo ao mesmo tempo de frente e de perfil - foi Braque quem “cubolizou” as paisagens, introduziu as “certezas” – as palavras e os números que funcionavam como pistas para o tema pintado – texturizou as telas e cometeu a primeira colagem. Vistas em confronto com as pinturas cubistas do espanhol, às vezes as suas telas parecem mais bem acabadas, serenas, líricas e requintadas. Em compensação, Picasso surge mais produtivo, agressivo, temerário e corajoso e surpreendente.
Não é exagero dizer que o “divórcio” entre eles ocorreu em 1913, época em que cada um passou a fazer o seu próprio Cubismo Sintético. Em seguida os dois deixaram a comunidade de Montmartre, enriquecidos pelas experiências e descobertas que haviam compartilhado, mas cientes de que diferenças inatas e a crescente maestria exigiam, naquele momento, que cada um perseguisse sozinho o próprio desenvolvimento artístico.
Durante sua longa convalescença dos ferimentos da guerra Braque repensou-se e à sua arte. Sua maior e mais ambiciosa tela dessa época fecunda de auto-renovação e descoberta tem um significado especial. Primeiro porque marca o final da década de ouro, durante a qual o artista absorveu as lições de Cézanne e desenvolveu a linguagem cubista, e, em segundo lugar, porque ela foi e é a última pintura na qual ele usou um idioma cubista puro.
O pintor terminou a tela de nome La Musicienne depois de nove meses de trabalho, no início do verão de 1918. Esse primeiro trabalho no pós-guerra combina as formas geométricas planas e interligadas e sobrepostas do período analítico com a cor e a maior legibilidade dos anos sintéticos. Ao pintar uma moldura de enquadramento retangular em torno dessa figura feminina, Braque enfatizou tão claramente seu achatamento que é como se estivéssemos olhando para a imagem de uma rainha de carta de baralho.
Georges Braque - La Musicienne (1918)

Essa senhora braqueana tem uma silenciosa e sugerida majestade que evoca aquelas madonas da Renascença que nos encaram de frente - aqui por trás de uma máscara - mas cujos torsos são representados de lado. Porém essa criatura musical em meio a espaços pontilhados de tinta, papéis de padrões diversos, retalhos de tecido e muita textura, em vez de se ocupar com um instrumento de cordas parece segurar o cabo de uma espada, como se fora uma Santa Joana d’Arc medieval.
A partir desse momento, aos trinta e seis anos de idade, o talento de Braque reafirmou-se plenamente; sua pintura tornou-se completamente pessoal e sua arte floresceu pelos próximos quarenta anos em telas monumentais, porque quanto maior era a escala em que ele trabalhava mais completa e brilhantemente ele criava.
Durante o resto de suas longas vidas, o francês e o espanhol em muitos aspectos - especialmente em termos de estratégia profissional - tiveram pouco em comum. Picasso foi um mestre da autopromoção, seja como pintor, desenhista, gravador ou reinventor da escultura. Braque, muito ao contrário, jamais perseguiu aplausos e fama. Sim, ele se afastou de Picasso mas não, ele nunca se divorciou do cubismo que, para ele, era um assunto inacabado.
Quando o dominó geopolítico caiu após o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand da Áustria, em 1914, Picasso, por ser cidadão da neutra Espanha, ficou fora da carnificina das trincheiras mas não conseguiu escapar da tristeza de ver seu país adotivo dilacerado pela guerra.
Então, o nome de Picasso já era sinônimo de arte moderna, especificamente do cubismo. O arquimodernista, portanto, chocou a todos em 1914 com o desenho naturalista e neoclássico que fez do poeta Max Jacob, um dos seus poucos amigos franceses que não foram afastados pela guerra. Mas como o pintor evitou o rascunho do exército e da guerra, continuou sendo a mente central por trás de eventuais visuais cubistas sintéticos.
Uma vez começada a Primeira Guerra Mundial, o significado anterior que as cubices tinham de destruição, de energia primária e recomeço do zero mudou completamente. A grande aventura cubista livre e desinibida acabou naqueles anos de convulsão, quando a velha ordem parecia estar morrendo e muitos artistas queriam vê-la morta. É preciso lembrar que sempre que alguém queria rotular Picasso com um ismo qualquer, ele procurava uma nova saída (rsrs) Mas acontece que durante o conflito mundial o artista estava mesmo dividido, definindo uma estratégia que lhe permitisse reter a estrutura composicional do cubismo enquanto introduzia elementos de representação naturalista. Parece que, antes de olhar para frente, Picasso olhou para trás e viu o neoclássico Ingres (rsrs)
Ele continuou a oscilar entre estilos, não esquizofrenicamente, mas em uma busca sincera de soluções para expandir seus horizontes enquanto escapava de todos os limites. Os pierrôs e arlequim da montagem abaixo são exemplos perfeitos da capacidade de Picasso de mudar de marcha e de consolidar novas abordagens continuamente. A única constante é a procura de um jeito novo para representar o mundo e as pessoas nele presentes.
Pablo Picasso - Pierrot (1918) / Pierrot et Harlequin (1920)

Cometidos no mesmo período, o tristonho pierrô à esquerda é mais realista, mas a dupla cubista à direita, supostamente fria e sintética, explode em cor e alegria e o pintor nos obriga a perguntar: qual é a imagem mais “real”? Tudo o que Picasso queria era a liberdade de todas as ideologias, de todos os dogmas, de todos os rótulos limitantes, a liberdade de ser e de descobrir o que isso implica.
Foi no verão de 1921 que Picasso cometeu sua derradeira tela em idioma cubista sintético puro sangue: Os Três Músicos, dos quais ele pintou duas versões. A maior das telas tem mais de dois metros de largura e /ou altura e mora no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Ele pode ter decidido trabalhar assim em grande escala porque sabia que o trabalho seria o monumento que marcaria a conclusão da fase cubista, que o tinha sequestrado por quase quinze anos.
Pablo Picasso - Les trois musiciens (1921)

Muitos linkam essas imagens ao trabalho de Picasso para os Ballets Russes e identificam os personagens como seus amigos bailarinos mais recentes. Os trajes das figuras certamente derivam das tradições do teatro popular italiano. Dizem que o pintor ficou encantado quando Gertrude Stein lhe contou que finalmente entendera o que os três músicos significavam:
“Uma natureza morta!” (rsrs)
Picasso pintou três músicos construídos com formas abstratas planas, coloridas e brilhantes, em uma sala rasa e semelhante a uma caixa. Do lado esquerdo está um clarinetista, no meio um violeiro e, à direita, um cantor segurando partituras. Note que o primeiro personagem de azul e branco, à esquerda, está fantasiado de Pierrô– veja como ele segura o clarinete com as mãos. O do meio, de amarelo e laranja, finge ser um Arlequim e à direita vemos um frade vestido de negro.
Na frente do Pierrô mora uma mesa, sobre ela um cachimbo enquanto que debaixo dela se esconde um cão, cujos focinho, barriga, pernas e cauda espreitam por trás das pernas dos músicos. A sombra da sua cabeça, no entanto, se projeta no ar e não na parede de fundo.
Como o palco castanho no qual os três músicos tocam, tudo nesta pintura é feito de formas planas. Atrás de cada músico, o chão castanho claro está em um lugar diferente, estendendo-se muito mais para o fundo, à esquerda do que à direita. Ou seja, o chão e as paredes lisas que enquadram as figuras deixam a sala de lado e inclinada, mas os músicos parecem firmes e mantém o equilíbrio. É difícil dizer onde um deles começa e o outro termina, porque as formas que os criam se cruzam e se sobrepõem, como se fossem recortes de papel.
Que me desculpem os sabichões mas ISSO além de uma obra prima é um poema nostálgico, uma despedida dos dias de sol em Montmartre, dos velhos companheiros, das gargalhadas, da alegria descuidada dos cabarés e dos circos, da trilha sonora da juventude, dos seus primórdios artísticos, do cubismo da gema parido no Bateau Lavoir.
Picasso está no centro da foto - como sempre de Arlequim! - e seus amigos mais caros, o poeta Guillaume Apollinaire, morto em 1918, e Georges Braque, de quem ele havia se distanciado, sentam-se cada qual de um lado.
Quem observa de longe as estradas separadas trilhadas por Picasso e Braque encontra sim várias “coincidências” nos temas de suas tintas: músicos, pintores e suas modelos, mulheres defronte dos espelhos e por aí vai que podem significar que cada um deles mantinha o olho atento ao que o outro criava. Mas quem estuda mais atentamente as obras dos velhos companheiros percebe que o link entre esses dois criadores era mais profundo que seus títulos e temas. Para ambos, por exemplo, o espaço de criação - seus estúdios! – era algo sacro e inescrutável.
Ora, o ateliê de um pintor é em parte o seu refúgio e, em parte o seu campo de batalha, o seu laboratório de alquimista. Dentro desse espaço sagrado, o artista usa seus poderes para produzir ilusões e transformar materiais físicos comuns em ouro criativo. O tema dos estúdios apareceu na arte ocidental pelas mãos de Vermeer no século XVII e foi pintado magistralmente por Courbet na metade do XIX, mas tornou-se universalmente conhecido graças à magnífica e gigantesca tela de nome As Meninas, a obra prima do pintor espanhol Diego Velázquez, na qual o pintor se auto retratou no seu atelier, no palácio do rei da Espanha, enquanto pintava as infantas.
Sucede que essa pintura foi repaginada várias vezes por Picasso e pode ser que o toureiro tenha tido outras motivações para se interessar por esse trabalho específico do compatriota. Diz Dona Lenda que sempre que Picasso estava no sul da França visitava o amigo britânico Douglas Cooper, um historiador, crítico e colecionador de arte que vivia perto de Avignon, no Château de Castille, que transformara em museu para sua imensa coleção de arte moderna.
Ora, Cooper comprara uma tela pertencente à mais famosa entre as muitas “séries” de Braque chamada “Estúdios”. O colecionador narrou a John Richardson - o principal biógrafo de Picasso – como o toureiro costumava ficar horas estudando a tela, pendurada em lugar de honra acima da lareira do escritório do Château, resmungando que não a entendia.
Nos seus “Estúdios”, durante longos anos Braque pintou a parafernália de objetos que moravam no seu ateliê normando, usando técnicas associadas tanto ao primeiro estágio analítico do cubismo quanto à sua segunda fase sintética. As telas de Braque estão entre as mais belas e originais representações já feitas de um estúdio de pintor.
Penso que tais misteriosos trabalhos do único parceiro que teve na vida desafiaram o toureiro a recomeçar o velho diálogo artístico. Sim, Picasso respondeu diretamente a Velázquez mas se dirigiu formal e indiretamente a Braque com a sua própria série de variações e releituras das Meninas.
Em sentido horário, note na montagem abaixo e em detalhe a obra prima de Velázquez e, à sua direita, a primeira das Meninas de Picasso. Se dividirmos a versão do toureiro ao meio veremos que à direita e oriundos do território velazqueano estão presentes a pequena princesa de branco e, ao fundo, o homem na soleira da porta deixando a luz entrar para iluminar a cena. Mas constataremos que todo o lado esquerdo da composição revisita o aparente caos dos Estúdios de Braque, mais abaixo.
Diego Vélasquez - Las Meninas (1657) / Pablo Picasso - Las Meninas (1957)
Georges Braque - L'Atelier VI (1951) / L'Atelier II (1949)

Porém, por mais que tentasse, Picasso não conseguia igualar a estranheza elementar alcançada por Braque na sua obra tardia.
As obras dos dois são a prova de que o Cubismo não foi absorvido pela história, não se tratou apenas de um movimento com sua própria lógica, um ponto no caminho entre o Impressionismo e a Abstração. Para os seus pais fundadores essa arte que abraçou a desordem e o caos para criar uma nova ordem pictórica permaneceu irresistível. Até quase o final de suas vidas, Braque e Picasso continuaram a construir grandes estruturas de tinta, impuras e híbridas, a partir de fragmentos da natureza misturados com características cubistas, a meio caminho entre o mundo conhecido e outras realidades alternativas que serão uma outra e derradeira conversa.


25/10/2018

ACPBR = Anotações Coletânea Primordial Budista Reflexões

As 81.258  matrizes de madeira para impressão completa do Tripitaka, entalhadas uma por uma no século XII pelos monges do Templo de Haeinsa (imagem Reddit)



Antonio Carlos Rocha
Outro dia, bem na hora do almoço, encontrei com o Bispo Cardoso e sua esposa, Lúcia, do Templo Hoshoji, Itaguaí, RJ, Budismo Primordial HBS.
O encontro foi no Clube Renascença, no bairro carioca do Andaraí, RJ. Era uma reunião com vários amigos em comum.
Na ocasião Hakuei Cardoso me entregou o livro “Coletânea de Versos do Budismo Primordial”, edição bilingue japonês português, 464 páginas.
Lembrei ao Cardoso que, dois anos antes das Comemorações do Centenário da Imigração Japonesa, eu fui iniciado no Rio como Gakutô (auxiliar sacerdotal) pelo então bispo Kyohaku Correa, de Curitiba, PR, e recebi o nome “Hakuan” que dizia-me ele, significava Serenidade.
E é assim, com serenidade e alegria que tenho me conduzido no aprendizado desta senda. Falei para ele, Cardoso, que as duas primeiras sílabas “Haku” dos nossos nomes, eram as duas últimas do nome do nosso professor Kyohaku, Odoshi, preceptor e mestre, uma seqüência que vem de Nichiren e por sua vez do Buda Sakyamuni.
Correa é formado em Língua Japonesa no Japão, onde viveu onze anos consecutivos, tem mestrado na área, tradutor gabaritado, portanto, um grande mestre, além de ser agora Bispo Superior da HBS. A característica desta ordem é que os religiosos(as) podem casar, ter filhos, constituir famílias, trabalharem normalmente etc.
O livro em questão foi escrito por Mestre Nissen (1817-1890), consagrado poeta e monge fundador da HBS (Honmon ButsuryuShu = Budismo Primordial). Antes da HBS, ele foi monge Zen e Nichiren, não lembro as linhagens.
Ao longo da vida Nissen escreveu 3.380 versos, no estilo Waka, trinta e uma sílabas. Ele ia estudando as Escrituras Budistas e reescrevia na forma poética. Deste modo temos uma panorâmica do Tripitaka e do Sutra Lótus. O volume traduzido no Brasil tem 1.772 versos.
Aos poucos, mediante a permissão e paciência de vocês, irei comentar algumas pequenas estrofes, uma de cada vez.
É um belo trabalho de Literatura. E, o que significa aquela sigla do título? São as inicias do meu nome completo. Literariamente fiz um acróstico.
Abraços Primordiais!


22/10/2018

Antenas

fotografia de Heraldo Palmeira


Heraldo Palmeira
É bom estar de novo em Sampa, a minha cidade do coração dentre tantas que moram nele. Respirar com força um ar que dizem irrespirável. Bobagem, o pulmão aceita de bom grado. Terá trabalho, é certo. E daí? A fuligem dos carros é descomunal. E as pessoas, nem aí, fazem suas caminhadas, correm no meio da confusão como se estivessem nas trilhas de um parque com ar de montanha.
O ambiente acolhedor do escritório, caminhar pela Paulista, aproveitar a gastronomia pantagruélica da região. O prazer de entrar num restaurante depois de longa ausência e os garçons virem fazer festa, todos nós nos tratando pelos nomes entre afagos, gracejos e abraços. Eu não sei como essas coisas acontecem. Apenas acontecem com o tempo.
Eu não sei, eu não sei
Acompanhe de perto
E você verá
Eu não sei, eu não sei

Alguns dias depois, feriadão. Tarde da noite. Beatles na vitrola, os quatro e suas mulheres em cenas comuns aparecendo na tela, apenas sendo o retrato encantador da maior revolução de costumes de que se tem notícia. Interessante, essa não foi uma notícia que envelheceu como todas as outras, parece que há um poção mágica ali.
Um carro passa rápido na rua deserta lá em baixo, desviando minha visão periférica para a cidade. Ali adiante, o café famoso fechado, o cruzamento com a Paulista quase em ritual de meditação. Cena rara!
Nenhuma alma viva na rua, apenas os mendigos sob seus molambos, jornais e papelões para se abrigar da noite levemente resfriada de primavera. O caminhão do lixo passa cumprindo seu ritual de fazer barulho e levar embora o que sobrou de nós. Uma motocicleta com escapamento aberto faz um vocal em terça voz na diatônica do nada a fazer a não ser ouvir sem querer.
Eu olho vocês todos
Eu olho para o chão
E vejo que precisa ser limpo
Eu olho o mundo
E eu noto que ele está girando
Com todo erro
Nós certamente precisamos aprender
Como eu estou sentando
Fazendo nada além de envelhecer
Vejo o amor que aí dorme
Eu olho vocês todos

Não sei se são homens ou mulheres, vejo apenas pacotes humanos para serem desfeitos quando amanhecer. E ficar por ali ou seguir para algum lugar exatamente igual, uma calçada sem qualquer perspectiva na infernal superposição de prédios.
Pensei na insegurança que ronda todo tempo aquelas criaturas e a contradição da nossa soberba que nos faz levantar o nariz para ignorar o piso onde elas deitam. E me perguntei como, tão expostos à insegurança, podem ser o retrato da nossa insegurança, a face do nosso temor paranoico de que tudo pode dar errado num piscar de olhos. Até que dê errado e a gente perceba que não é simples paranoia.
Quando eu era jovem
Muito mais jovem que hoje
Eu nunca precisei
Da ajuda de ninguém
Em nenhum sentido
E agora estes dias se foram
Eu não sou uma pessoa
Assim tão segura

Um corpo vem cambaleando lentamente. É o velho que passa o dia por ali falando com alguém que só ele vê. Não sei se cambaleia de bebida ou de velhice. Vai se acomodando, embrulhado em seus trapos, mais um pacote humano pronto para se desmanchar na hora sagrada em que o sol chegar.
Lá vem o velho mais chato
Ele vem gingando lentamente
Ele tem olhos mágicos

Ele tem alguma mágica escondida, as crianças não o temem e se divertem. Gosta da banca de jornal, fica nos arredores mirando jornais pendurados e revistas expostas. Não mexe em nada e só se aproxima quando não há ninguém por perto. Não incomoda. Quando desanda a falar, talvez discuta as notícias ou fofocas da tevê – ele sabe que estão ali – com o tal amigo invisível. Ele até gesticula. Talvez haja uma plenária do absurdo, uma galeria armorial, pois se movimenta com meneios elegantes e fala em muitas direções, como fazem os oradores de boa técnica.
O sol, o amanhecer. E os embrulhos começam a se desfazer lentos. Levanto cedo e caminho entre os dois mundos da cidade. Mantenho a fé, é indispensável sobreviver no meio da multidão. Passo entre restos de molambos e cargas ainda sobre a calçada esperando a hora de entrar nos estabelecimentos. O cheiro de café e pão fresquinhos enche as narinas, não dá para contornar o desejo de entrar na padaria. Nem são oito horas e a Paulista fervilha, calçada e asfalto. Coisa de sábado. Porque hoje é sábado. Dia da criação.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Não há nada como o tempo para passar
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Há uma profunda discordância
Há um grande espírito de porco
Há criancinhas que não comem
Há um piquenique de políticos
Há uma tensão inusitada
Há adolescências seminuas
Há um grande aumento no consumo
Há a sensação angustiante
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

E amanhã é domingo. Dia da traição, que nos engana com o descanso que acaba na segunda-feira, dia da recusação de recomeçar tudo de novo e a gente fazendo nada além de envelhecer.
A multidão se desloca potente e solitária, como um mecanismo amorfo e mutante, em cada esquina se esvaindo e se realimentando de novos elementos que vêm e vão por seus destinos escolhidos ou não. Sendo tragada ou expelida por lojas, portarias, elevadores, carros, ônibus, metrôs. E pelos cigarros comidos pelo fogo sem qualquer paixão.
E quando as pessoas
Sozinhas no mundo, concordarem
Haverá uma resposta
Deixe estar
Pois embora possam estar separados
Eles verão que ainda há uma chance
Haverá uma resposta
Deixe estar
Sussurrando palavras sábias
Deixe estar, deixe estar

Há um menino triste, com sua caixa de engraxate. Ronda, ronda, ronda como eu fiz de noite com a cidade, sem sair do lugar – pelo menos, fui embora antes da cena de sangue num bar. Ronda, ronda e pede que alguém pague um lanche. Ronda sem acreditar muito que possa haver mágica naquele passar de graxa, escova e flanela, e alguns pingos d’água para hidratar o couro. Ingratos, os sapatos vão embora brilhando e nem olham para trás. Acreditam que as moedas que deixaram valem mais.
Ei, não fique mal
Pegue uma canção triste
E torne-a melhor
Lembre-se de deixá-la entrar
Em seu coração
Então você pode
Começar a melhorar as coisas
Não tenha medo
E qualquer vez
Que você sentir dor
Vá com calma
Não carregue o mundo
Nos seus ombros
Você bem sabe que é tolice

Desço a ladeira suave da minha rua, que nunca foi minha e não é de ninguém. Tanto que está vazia. Tanto que dá um certo frio na espinha. Tanto que olho para trás. Sossego porque vejo os pacotes de molambos imóveis em suas calçadas, que seriam minhas também se eu não tivesse escapado das armadilhas. E assim apresso o passo e atravesso o trecho.
E não há nada com o que se preocupar
Viver é fácil com os olhos fechados
Sem entender tudo o que você vê
Está ficando difícil ser alguém
Mas tudo funciona bem
Isso não me importa muito

Um homem que não sei quem é e não sabe quem sou abre o portão. E o seguinte, depois que ouve aquele “claque” metálico seco do primeiro fechando. Sim, é preciso a eclusa para rimar com vida reclusa amedrontada atrás de grades, cercas elétricas e alarmes. Um “obrigado” meu, por obrigação, sem resposta, mais dois “boa-noite” indo e voltando encerram a trilogia minimalista do que dizer. Não há mais nada a fazer a não ser dar de ombros e subir.
O elevador lento combina com a noite alta, preguiçosa do domingo. Roda a vitrola incansável. O precioso Paêbirú entra pelos ouvidos e viaja pela partitura das entranhas como um bálsamo interior. Raríssimo em seu dialeto, libelo dialético como nunca se viu. É mesmo “maneira insinuante e capciosa de argumentar, de raciocinar com excesso de sutilezas”, como li nalgum lugar. É obra para se ouvir em silêncio absoluto olhando pela janela segura do milésimo andar, sem anteparo. É um voo no vazio preenchido. Viva Zé Ramalho; viva a memória de Lula Côrtes – partido e inteiro. Viva o sono sucumbindo à segunda-feira novinha em folha.
  
Trechos de:
Something (George Harrison)
While my guitar gently weeps (George Harrison)
Help (John Lennon-Paul McCartney)
Come together (John Lennon-Paul McCartney)
Dia da criação (Vinícius de Moraes)
Let it be (John Lennon-Paul McCartney)
Hey Jude (John Lennon-Paul McCartney)
Strawberry fields forever (John Lennon-Paul McCartney)