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26/02/2019

Essas pequenas coisas!




























Ana Nunes



De manhã bem cedo no clube. Céu azul, piscina vazia de gente e convidativa no calor já tanto no dia que nem bem começa. E numa cena bucólica um monte de maritacas se banqueteando no topo da goiabeira fértil e generosa. Quase não as vejo no verde das folhas. Só os biquinhos amarelos na polpa vermelha e macia das frutas. E a barulheira nesse pequeno almoço da manhã. São mesmo como as mulheres nessa algazarra sem limites. Bem diz o ditado, falam como maritacas, esses seres interessantes nós mulheres. Mas como conseguem comer e conversar ao mesmo tempo? Voar e matraquear tipo aviso, venho de longe e estou chegando? Alegres e verdinhas na folia!
Me preparo para entrar na água, touca, óculos, pés de pato e palmares. E eis que aparece uma senhorinha baixa e gordinha. Super arrumada, nos trinques. Vestida de verde em cima e verde estampado em baixo. E se põe a pegar goiabas. E conversa comigo que nem conhece! Mas também nem se liga se estou escutando ou não. E vai colhendo suas frutas nos galhos mais baixos onde maritacas não se aventuraram. E onde seu tamanho alcança.
Eu me divirto com a cena maritaca no topo e maritaca no chão, nas sombras de galhos e folhagens. Viva o ditado!

Muito divertida essa manhã de maritacas. Que logo depois , na volta para casa, se contrapõe ao mendigo descansando no passeio, sem dentes e há muito sem teto. Sei disso pelos pés andarilhos quase irreconhecíveis, todo ele numa cor só de sujeira meio marrom meio cinza e muito triste. Uma cor tristemente só deles, como flicts é só do Ziraldo na lua. Estarei eu na “tentativa de poetar a triste realidade”?
Essas pequenas coisas!

Às vezes chegando do aeroporto minha irmã carioca já me leva direto para as compras de supermercado. Coisa chata e aborrecida e cansativa! E ainda tenho de ficar feliz por poder fazê-las. Tem gente que não. Inesperadamente entre pacotes, legumes, vegetais e flores delicadas e longilíneas, assim tipo orquídeas, aparece uma mãozinha caridosa com uma garrafinha verde, gelada e aberta para mim! Eu, a velhinha da casa, um pouco a imagem da mãe ausente, fazendo por mim o que certamente faria por ela! Que beleza, que alento, que frescor! Tudo sob olhares críticos da irmã mais nova, caretinha!
Pequenas coisas de novo entre tristes e alegres. Pequenas cenas.

Chego em casa cansada de calor, sol ardente, notícias fakes de chuva prometida e ainda a noite que não dá avisos. Na procura ansiosa dos comentários no blog encontro meu inseparável amigo íntimo, de confidências e conflitos e divertimentos, iPad surrado, trincado, de bordas seguras na fita adesiva, regiamente instalado num novíssimo suporte bem lindinho, branco e anti derrapante! Dirão alguns, “que bobeira!” (Meu neto fala assim, que bobeira vovó!). Presente very quiet. Vejo carinho e romantismo antigo de um cara sério e discreto nesse presente que eu nem sabia que precisava, ou de que gostaria tanto!
De novo pequenas coisas, pequenas causas, pequenas alegrias grandes!

Agora uma cena íntima que quando lembrada, me divirto sozinha. Porque de pé quebrado, antes da cirurgia, meu filho dormiu comigo no hospital. E no meio da noite, na hora inevitável do banheiro, me levou carinhoso. E me disse para não ficar de pudores. Se fosse necessário ele faria terapia depois! Não me avexei! Generoso esse pequeno grande homem e com muito senso de humor. Sou grata um tanto que nem sei dizer quanto! Aos dois que passaram grandes aflições. Meu outro pequeno grande homem contou mais tarde pensar que eu nunca mais iria andar.

A foto antiga da Mãe anos quarenta, cabelos meio curtos e soltos emoldurando o rosto, elegante no costume escuro de saia justa, de braços dados com o irmão e a cunhada, mandada via zap pela priminha querida que viu esse tempo. É jóia do coração.
Ou alguém que inadvertidamente põe Stand by me para tocar. E eu vejo minha mãe no seu teclado tocando para mim! E fico grata ao desconhecido que tocou meu coração! A prima querida também manda versões novas pelo zap.

O sorriso da criança no carrinho de bebê, a gentileza do motorista que me deixa sair da garagem, homem certamente, mulher quase nunca faz isso. Pena mesmo! Pelo sim, pelo não, sempre desço o vidro e aproveitando o cabelo branco dou um sorriso de velhinha toda simpática. E tem o atendente do posto onde abasteço que sempre pergunta pelo pé quebrado.

A chuva fria da nuvem cinza que me traz uma paz quase nunca sentida. Para mim é como se ela parasse o mundo para poder cair. Já chorei andando na chuva. Não por causa dela mas me aproveitando dela para misturar lágrimas e afrouxar mazelas!
Nada parecido! Experimente!

O gato Ziggy, cinza e peludo, focinho com focinho comigo, me cheirando e com seus olhos laranja, parecendo jóias, querendo me reconhecer. O Skank já disse mais ou menos assim, “...é como ver um bichano pelo chão e não sorrir.”
O macaquinho que pula da árvore para o fio de luz, do fio para a outra árvore onde está seu amigo de aventuras urbanas. Me olha rápido e finge que não me vê. Bichinho esperto e atarantado. De tão ágil, no pulo mal calculado, despenca lá de cima. E depois corre como se conhecesse o terreno hostil no rumo do protegido.

A faxineira, amiga de tempos, me surpreende com uma caixa de ovos da galinha de ouro do seu terreiro. Ou serão os ovos de ouro da galinha? Isto não tem preço! Nem tem jeito de lhe dizer como me sinto.
A dentista querida que me dá de presente de aniversário a limpeza dolorida e necessária dos seis meses! Linda ela, linda de corpo e alma nos seus irreconhecíveis sessenta anos. Sai com as filhas e parece uma delas.

E a orquídea na grade da janela que se enfeita toda de novas flores. A violetinha tímida e delicada que dá seu ar da graça entre as folhas peludinhas. Soberba no seu acanhamento. Quando namorados, meu pai levava amarrados delas para minha mãe. Quanta delicadeza de amor!
É tanta coisa feliz na vida da gente! Pequenas, que passam desapercebidas se não se estiver atento nesse caminho do viver!

Penso também na generosidade do meu povo nas tragédias. Solidariedade e ajuda de quem talvez já tenha perdido tudo. Aliás tanto maior quanto mais despossuídos! É o bombeiro de salário atrasado, o voluntário que limpa suas roupas e seu descanso.
Me emociono e percebo que o mundo ainda é bom. Apesar de tudo.

Ah! As pequenas jóias do blog do Mano!

Há tempos, no escritório de arquitetura cheia de desenhos e sono, a engenheira elétrica, elétrica mesmo não eletricista, já devia ter levado uns choques, me surpreende com um cafezinho para espantar o sono e ir adiante. Sem alarde, sem aviso, uma dádiva! Comovida sem palavras cheguei em casa e escrevi pra ela:

A terra fofa, a semente
húmus, sol e calor.
Chuva e um pouco de cuidado.
A folhinha verde, o cabinho
de repente a árvore, a planta e o fruto
vermelho fruto, torrado, moído.
Café, aroma e afeto.
Uma xícara sem pires
uma palavra
apanha de surpresa o cansaço
amolece o corpo, enternece o coração.
E uma xícara sem pires
com café amargo
comove tanto como o por do sol,
o mar azul de um porto seguro, a chuva pingando do telhado,
a lua prenhe no céu escuro,
o cheiro da madrugada.
Obrigada.

Se já escrevi isso antes me desculpem. Desconfio mas não me lembro. É que este café sem pires marcou a maturidade da minha vida. E me ensinou muitas coisas!

Essas pequenas coisas...!


22/02/2019

O branco

ilustração - Gustave Doré


Wilson Baptista Junior
Vivo cercado de telas.
Há mais tempo do que gosto de lembrar. Desde que os primeiros terminais de vídeo de computador vieram tomar o lugar dos cartões perfurados e das folhas quadriculadas em que escrevíamos a lápis os comandos de programação.
Olho agora em volta de onde estou e vejo, da esquerda para a direita, a tela do meu laptop, as duas telas do meu computador de mesa, a tela do laptop da Ana, a tela do meu iPad. Sem contar, claro, as dos telefones, que já não reconhecem esse nome e viraram, de uns tempos para cá, pequenos computadores disfarçados.
Como se não bastassem as telas, o bloco de papel à minha direita, com a lapiseira amiga antiga sempre pronta para escrever.
E todos, as telas e o bloco, inteira, cruel e desesperadamente vazios...
Para onde foi? Me pergunto.
Para onde foi a faísca que saltava através dos dedos para as teclas obedientes que povoavam as telas de causos e de histórias?
Olho para mim como o motorista desacorçoado olha para o carro que parou de funcionar no meio da viagem, sem saber qual, dentro das tantas e misteriosas partes que o compõem, não quer mais trabalhar.
Olho para dentro, para as minhas lembranças, mas as que me vêm à mente não são boas para contar aqui, não que eu não quisesse que vocês as lessem, talvez vocês gostassem, mas porque muitas não teriam como não abrir as portas para o tipo de comentário de que fugimos no blog.
E como o motorista que quando se cansa de olhar para o carro olha em volta em busca de quem o ajude, olho à minha volta em busca das coisas que ajudavam minhas ideias: os quadros nas paredes, os discos, LPs, CDs, fitas, livros – ah, muitos livros, dezenas, centenas, milhares talvez, ocupando cada canto e cada superfície livre, tantos que o vizinho de baixo se preocupa com a resistência da laje, mas o prédio é antigo e firme e feito no tempo em que as pessoas liam, e me sinto um pouco como o velho marinheiro do Coleridge pensando: Livros, livros a toda a volta, e nem uma palavra para contar!
Terei eu, como ele, flechado meu albatroz? Mas se ele foi condenado a nunca mais parar de contar sua história, porque o terei sido eu a nunca mais ter histórias para contar?
Já que olhar em volta não adianta, olho de novo para dentro. Em vão. Em nenhum ponto da longa linha do tempo vejo ao menos a sombra da imagem do pássaro caindo.
E abro outra vez os olhos. E de repente, percebo que enquanto isso a tela à minha frente se encheu de letras, e as letras se juntaram e formaram palavras, e as palavras se juntaram e formaram frases.
Não disseram muito, é verdade. Mas será um recomeço?

Com um agradecimento a Samuel Taylor Coleridge,
em sua bela “The Rime of the Ancient Mariner”:
“Water, water, every where,
Nor any drop to drink.”




18/02/2019

As baleias azuis

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel
Em Sri Lanka eu desisti de lutar contra o turismo “clichê” ao fazer um passeio de barco no mar aberto, saindo do porto de Mirissa. Baleias, golfinhos, peixes voadores, tartarugas e tubarões podem ser vistos facilmente a poucos quilômetros da costa daquela praia porque o extremo sul da ilha de Sri Lanka é surpreendentemente próximo das águas profundas da plataforma continental. Ali nadam gigantes: as baleias azuis que são as maiores criaturas da Terra.
É uma situação única pois em nenhum outro lugar do vasto mundo essas baleias se aproximam tão perto da terra. Sucede que a constante presença dos animais encorajou os nativos a investir em passeios que começam uma hora antes do nascer do sol para que os cara-pálidas possam observar as baleias.
E lá fomos nós – seis marinheiros de primeira viagem! - passando por pescadores que já vinham equilibrando enormes caixas de peixe em suas bicicletas do cais onde nos aguardava um barco de fibra de vidro de seis metros de comprimento, pouco mais do que uma canoa, mas com um motor de popa que surpreendeu a todos pela potência dos seus vinte e cinco cavalos.
fotografia Moacir Pimentel

Saímos do porto na companhia de não sei quantos outros barcos cheios de turistas, em direção a um horizonte ainda invisível repleto de luzes de dezenas de barcos de pesca se preparando para voltar para casa depois de uma noite no mar.
À medida em que o sol se elevava e a ilha ficava cada vez mais diminuta à distância, metido em um colete salva-vida, eu olhava para os barcos de pesca ao largo e para o fundo azul do mar cuja ondulação sombreava tudo o que poderia estar abaixo e acabei adormecendo sob a proa desconfortável mareado pelo balanço do barco e o som das ondas batendo no casco.
De repente, o humor mudou. A praí alguns  quilômetros de distância o horizonte tinha sido quebrado pelo que parecia ser um jato de vapor. O inglês do barqueiro era para lá de incompreensível mas não o que ele berrou:
“Baleia!”
fotografia Moacir Pimentel

É complicado encontrar um animal tão grande e tão alto quanto um avião a jato. Quinze minutos depois, a baleia apareceu na superfície a apenas cinquenta metros do barco.
P@rr@!!
Desculpem mas não deu para segurar o palavrão ainda mais ali dentro daquela canoa precária. Como reagir de outra maneira a um animal tão grande? O focinho, com seus grandes buracos, atravessou a água bem ao lado do barco - caracas! - e então percebi com um frio na espinha o extraordinário volume da criatura. Era pelo menos quatro vezes maior do que o nosso barco!
Acredite, me senti dentro de outra embarcação de nome Pequod nas páginas do livro Moby Dick da lavra de Herman Melville.
E se aquela monstruosidade se enfurecesse? !
Além do tamanho maciço - esses animais podem atingir mais de trinta metros de comprimento e pesar quase duzentas toneladas - ao respirar, as baleias azuis soltam um jato espectacular, uma única coluna d’água que sobe praí uma dezena de metros no ar.
Acredite o tempo como que parou na minha cabeça enquanto aquele animal deslizava em câmara lenta na nossa frente pela lateral do nosso barquinho. No looongo tempo que a criatura levou para nos deixar para trás – graçasadeus! -, ela riscou de um tom mais escuro o azul do mar e entre todos foi esse o byte de memória que me restou mais nítido. Fiquei impressionado com a sua cor.
fotografia Moacir Pimentel

Era azul, realmente azul - um azul petróleo profundo e manchado de cinza - compondo com o mar e o céu uma sinfonia de tons. Naquele dia fomos “abençoados”, como dizem os nativos. Antes que a maioria dos pescadores voltasse para a terra firme para tomar o seu merecidíssimo café da manhã, vimos mais duas baleias azuis, comendo o próprio desejum de minúsculos camarões - iguaria da qual uma baleia azul consome em média seis toneladas por dia.
Nos explicaram que o encontro das águas costeiras mais quentes com as águas mais frias da plataforma continental cria um ciclo de nutrientes, pois a matéria rica e apodrecida do fundo do oceano alimenta os cardumes de camarões que, em seguida, alimentam as baleias. É uma troca eficiente, um sinal da fertilidade oceânica.
Apesar de todo esse tamanho esses animais dependem de nós e de nossas ações. No século XX, as baleias azuis foram quase extintas e muitas delas foram mortas nessas mesmas águas de Mirissa. Como resultado direto, agora restam apenas quinze mil - ou menos! - baleias azuis em todo o mundo.
O povo de Sri Lanka se orgulha de que apenas no seu país pode-se ver o maior mamífero terrestre do mundo, o elefante, e seu maior mamífero marinho, a baleia azul, em um único dia.
E então depois que a terceira baleia deu o ar azul da graça dela pedimos ao barqueiro para rumar para casa.
“Terra à vista!”
fotografia Moacir Pimentel

Era mais do que chegada a hora de, em terra firme, ir conferir os elefantes que, depois das baleias, com toda certeza nos pareceriam diminutos (rsrs)
Mas isso vai ficar para outra conversa...


14/02/2019

Duas mulheres


imagem Wikimedia commons

Heraldo Palmeira
O voo partiu no horário, com muitos lugares vazios. As duas primeiras fileiras eram separadas das demais por uma espécie de cortina, como um arremedo de espaço VIP – o aperto das pernas denunciava o engodo. Onze dos doze lugares daquele setor estavam ocupados, apenas uma poltrona vazia, do meio.
Quando o avião iniciou o procedimento de descida, a comissária consultou os dois passageiros da segunda fileira do lado direito, se eles poderiam receber ali, no meio, uma passageira que ela precisava acomodar.
Os dois homens haviam dividido a poltrona vazia com pertences. O mais jovem, à janela, colocara uma pequena bolsa de tecido colorido, ostentando etiqueta chamativa de marca famosa do prêt-à-porter. O mais maduro, ao corredor, repousara um chapéu preto, de pelo de coelho, com fita preta, feito à mão por um chapeleiro tradicional.
Ninguém nas duas fileiras do falso espaço VIP entendeu direito, até porque restavam pouco mais de vinte minutos de voo. Mas a mulher chegou exuberante e se acomodou.
Vestia calça de couro e blusa de malha grossa, pretas. Cachecol de tricô num azul horroroso, que combinava no tom com uma botinha de camurça de gosto duvidoso. Relógio Gucci prata, modelo clássico. Brincos de argolas grandes e colar, ambos em amarelo-ouro – só algum especialista conseguiria afirmar se eram realmente do ouro que tentavam aparentar. Pelo menos, combinavam com a tintura do cabelo bem cuidado. Unhas postiças enormes, em vermelho-desespero. Rosto denunciando intervenções estéticas, algumas imprudentes. Et pour cause, um perfume fortíssimo, adocicado, de travar qualquer narina ao redor.
O livro A amiga genial foi uma espécie de escudo, ela não parou de ler naqueles momentos antes de o avião tocar o solo.
As duas poltronas do meio da segunda fileira carregavam agora as únicas mulheres daquela suposta área VIP – as outras dez estavam ocupadas por homens. Eram duas mulheres que saltavam aos olhos por motivos opostos.
A mulher sentada na poltrona do meio da segunda fileira do lado esquerdo já chamava a atenção desde o ambiente do check-in. Alta, esguia, perfeita dentro de um vestido Chanel, preto – que terminava dois dedos acima dos joelhos, zeloso na altura da barra, cúmplice do desejo ao delinear as curvas perigosas daquele corpo.
Cabelos longos, abaixo dos ombros, levemente ondulados, pretos, com luzes aplicadas com precisão de engenharia. Óculos de sol lindos, irremovíveis. Brincos de brilhantes no tamanho adequado, discretos – apesar dos brilhantes. Bolsa Fendi combinando com tudo. E um ar de elegância e discrição funcionando como uma couraça encantadora.
A mulher exuberante entrara acompanhada de um homem bem-apanhado, ficaram um tempo conversando com os comissários de bordo no ambiente contíguo à cabine dos pilotos. Mas levantou apressada, quase atropelando quem estava ao redor. O rapaz à janela aproveitou o empuxo e saiu às pressas, para ficar em pé no corredor, naquela fila estressada que se forma esperando a porta do avião ser aberta.
O homem do chapéu preto, de pelo de coelho, com fita preta, feito à mão por um chapeleiro tradicional saiu do táxi e entrou pensativo no hotel elegante. Pouco depois, abriu as cortinas das duas grandes janelas do quarto com vista para o Tejo. A famosa luz de Lisboa, sempre deslumbrante, cantada em verso e prosa pelos amantes da boa vida e reproduzida por pintores e fotógrafos de todos os tempos encheu o ambiente.
Ele se pegou pensando na mulher exuberante, que veio sentar ao seu lado na parte final do voo. Não entendeu porque a comissária demonstrava certo nervosismo quando trouxe aquela passageira para sentar ao seu lado.
Quis achar alguma conexão dela com aquele livro festejado, cuja a autora mantém um grande mistério a respeito da própria identidade, nunca apareceu em público e correm rumores de que seu nome é um pseudônimo de uma tradutora.
Também estranhou o fato de o homem bem-apanhado, com quem ela entrara no avião, ter sumido de cena. Deu de ombros olhando para o velho rio das Grandes Navegações. Nada indicava que aquela mulher fosse algo além de uma pessoa metida em encrencas cotidianas pouco interessantes.
O hotel Dom Pedro tinha tradição em eventos sociais e culturais da cidade. Ele era um hóspede frequente, gostava daquela atmosfera e da culinária famosa.
Reservou mesa para o jantar no Il Gattopardo. Desceu ao terceiro andar e entrou no restaurante. Preferia ficar na parte interior, apreciava as cadeiras de palhinha e o serviço impecável. Escolheu uma massa, especialidade da casa italiana, e estava distraído, dedicado ao vinho português.
Percebeu um movimento e levantou a vista. Sim, era ela, a mulher que sentara na poltrona do meio da segunda fileira do lado esquerdo. E que esperara elegantemente a turba desembarcar, para, só então, levantar inesquecível!
Reviu-se pegando a valise no compartimento de bagagem do avião. E depois entregando o sobretudo dela, preto, de lã de caxemira, que estava ao lado. Nunca iria esquecer o sorriso que mereceu. Ela vestiu a peça e se encaminhou para a saída. Ele, feito fotógrafo apaixonado pelo instantâneo, caminhou logo atrás, ouvindo o silêncio absoluto que restou.
Claro que ela não olharia para trás e nem ele cometeria a imprudência de ultrapassá-la. Preferiu seguir devagar, enchendo os olhos com aquele vulto que começava a se afastar com pressa dentro do finger. Guardou na memória o que restou do perfume suave dela.
Ela chegou sozinha e sentou mais adiante. Abriu a carta de vinhos, escolheu. O tempo foi passando e não chegou ninguém mais. O homem aguçou a visão periférica, fez um movimento de cabeça no tempo certo e ganhou um olhar encantador.
O velho garçom, discretíssimo, foi providencial. Ela aceitou o convite para dividirem a mesa. Conversaram amenidades, riram, contaram pedaços de suas histórias. Jantaram, abriram a segunda garrafa de vinho. Italiano. Foi uma noite encantadora. Ela tomou o elevador, ele ficou para um café e licor.
Os hotéis protegem passos suaves no corredor e portas que abrem corações debaixo de sete chaves. Os hotéis guardam segredos que disparam a respiração. Os hotéis entregam flores pela manhã.

10/02/2019

Uma longa viagem

(todas as imagens - arquivo de Domingos Ferreira)



Domingos Ferreira

A IDA

O menino passava horas na parte de ré do convés do Navio Fluvial “Benjamim Guimarães”, descendo velozmente o Rio São Francisco, no período das cheias. Sua atenção se concentrava nas grandes pás da enorme roda na popa que mergulhavam nas águas do rio, em movimento contínuo, impulsionando o barco para frente.
A embarcação, oriunda do rio Mississipi, estava lotada de passageiros com destino ao Nordeste e Norte do país, evitando viajar nos navios da empresa de cabotagem “Costeira”, os famosos ITAs. Até aquele mês de agosto de 1942 os submarinos alemães já haviam afundado, nas nossas costas, mais de três dezenas de navios brasileiros, de carga e de passageiros, com centenas de mortes.

O pai do menino, engenheiro, funcionário público, trabalhava no Nordeste, tentando minorar os ancestrais problemas causados pelas violentas e históricas secas. Por sua competência, ele fora transferido para Santa Catarina, a fim de atacar a urgente falta de carvão importado, causada pelo torpedeamento dos navios. A pouca gasolina e o querosene, importados em latas de vinte litros, também ficaram muito escassos.
 As cidades brasileiras dependiam, quase totalmente, de carvão para iluminação, transporte e uso de qualquer outra máquina, todas estrangeiras. Os poucos automóveis sofreram uma adaptação para operarem com um fogareiro no traseiro, queimando carvão de madeira, para produzir gasogênio, que tocava o motor, com muita fumaça. Uma verdadeira trapizonga...

As outras fontes de energia eram o vento, a lenha, os descendentes de escravos e os quadrúpedes. Era fundamental que os trilhos chegassem às bocas das minas de nosso útil carvão, mesmo pobre em energia, por ter muita cinza. E assim foi feito.
A família nordestina do menino sofreu muito com os gelados ventos uivantes do primeiro inverno passado em Tubarão, no Sul. Em especial a mãe, com uma asma terrível. E o menino, frágil, quase morreu com um crupe violento. O resultado foi a decisão de a família deixar Santa Catarina, porém com o pai lá permanecendo, no “esforço de guerra”.
As três meninas ficaram em um internato de freiras no Rio, apoiadas por parentas cariocas. E a mãe e o menino voltaram para o abençoado calor do Maranhão. A viagem foi “por dentro”, de trem e de ônibus, longe do mar... O trecho Rio/Pirapora foi de trem, via Belo Horizonte. Nesse porto fluvial, a criança e a mãe embarcaram no “vapor” fluvial.
O espetáculo do salvamento de uma vaca atolada nunca mais saiu das lembranças do menino. Foram salvas três vacas durante a viagem de dez dias, percorrendo, no coração do Brasil, 1.370 km pelo rio São Francisco abaixo, entre Pirapora, em Minas Gerais, e Juazeiro, em Pernambuco.
A primeira faina ocorrera perto de Bom Jesus da Lapa, onde há uma famosa gruta de milagres. O rio subira muito. A vaca, distante da margem, tinha água até o meio da barriga e mugia tristemente, já perdendo as forças.
O navio se aproximou aproado à correnteza, arriou um bote com dois marinheiros, que bem amarraram o animal ao chicote (ponta) de um cabo (corda) de bom calibre (grossura). A outra ponta foi levada até a margem, onde fez retorno em uma árvore encorpada e veio até a bordo, onde foi amarrada em um cabeço no convés.
Tudo pronto, o navio deu à ré (andou para trás), puxando a vaca para a margem, orientada pelos homens do bote. Em pouco tempo o bicho pisou em terra firme e os marinheiros desfizeram o nó do chicote do cabo que a amarrava. A vaca, livre, saiu correndo, sem agradecer. Isso foi possível, porque os profissionais haviam dado um nó, chamado “laís de guia”, que tem a qualidade de se soltar sozinho, à distância. Boa marinharia... Boa sugestão para casos complicados...
Depois de outras duas vacas desatoladas e centenas de quilômetros de navegação, houve uma parada para “fazer lenha”, na pequena vila com o curioso nome de “Pilão Arcado”. Algum tempo depois, o “gaiola” chegou a Juazeiro, na fronteira da Bahia com Pernambuco.
A mãe e o menino atravessaram o São Francisco, em um bote à vela, chegando a Petrolina - a cidade na outra margem do rio. Lá, embarcaram em um trem para Paulista, no Sul do Piauí, onde chegaram no mesmo dia. Contudo, as coisas se complicaram ali. O último arremedo de ônibus - um caminhão com bancos e cobertura de lona - “quebrara” por falta de peças. A única solução para chegar à Teresina era um caminhão sem lona, com sacos de sal e tudo mais que se possa imaginar.
A mãe e outra mulher, com um neném, foram na boleia, ao lado do motorista e dono do carro, um italiano perdido, chamado Orfila, que falava sem parar. O menino ganhou um grande chapéu de palha e ficou na parte da frente da carroceria, sentado em um saco de sal, acompanhado por mais de uma dúzia de caboclos, homens, mulheres e crianças. Destoando, havia um senhor grisalho, engravatado em um terno de caroá impecável, com relógio de algibeira e chapéu elegante. Todos torrando ao sol e comendo poeira, sem uma gota de chuva.
Até Teresina, foram três dias desbravando centenas de km de caatinga, por um arremedo de estrada, através de riachos secos, com paradas para esticar as pernas, aliviar a bexiga, ou beber água em uma cacimba, na sombra de algumas árvores.
As duas dormidas ocorreram em pensões de lugarejos, nas redes que se levava ou alugava, após uma comida frugal na mesa da varanda. As partidas, nas madrugadas seguintes, nos primeiros cantos dos galos, foram anunciadas pelo senhor do terno de caroá, que dizia a hora, em voz alta, olhando em seu relógio de algibeira.
Após dois dias em Teresina, na casa de parentes, a mãe e o menino subiram em outro caminhão, com bancos e teto. Nele percorreram, por algumas horas, uma estrada paralela ao rio Parnaíba, em demanda da fazenda de Santa Cruz, do outro lado. Para tanto, tiveram de atravessar o rio em canoa, onde havia uma pequena vila, chamada “Pouca Vergonha”, por abrigar uma renomada “Casa de Mulheres” da região.
Avisado por telegrama recebido no Brejo - município vizinho da fazenda- um tio estava esperando a irmã, acompanhado por caboclos, “agregados”, em várias montarias. Dentre elas a “Mimosa”, égua preferida da mãe, exímia amazona. O menino, que nunca havia montado, foi na garupa do tio. O percurso, por trilhas, até a “Santa Cruz” era longo, e lá chegaram ao entardecer.
O menino descobriu outro mundo e se adaptou logo à vida na fazenda. Em pouco tempo, passou a andar sem camisa e descalço, cultivando “bicho do pé”. Como neto mais velho e com o nome do coronel, era tratado por “sinhozinho”. Também ganhou um guardião que o acompanhava fora da casa grande. Era um jovem negro, o “Gambá”.
Juntos com eles, se formara um grupo de moleques que passavam o dia explorando todos os recantos da bela e organizada fazenda, sede dos negócios do avô, que incluíam mais cinco outras, ao longo do rio.
Educado na Europa, no final do século XIX, ao vir de lá, ele libertara os escravos, cuja quase totalidade permanecia na fazenda. Seu pai, o bisavô, lutara na Guerra do Paraguai, comandando uma centena de voluntários de suas terras. Razão para ser condecorado pelo Imperador.
O menino também gostava de ver o funcionamento do “engenho”, montado pelo avô, em três níveis, no declive ao lado da “casa dos brancos”, situada no topo de um morro baixo, a certa distância do riacho. Os modernos equipamentos, importados da Inglaterra, foram desembarcados do navio inglês da Booth Line, no porto de Parnaíba.
De lá, subiram o rio em barcaças rebocadas, e foram descarregados em um trapiche junto a uma clareira, a mais próxima possível da fazenda. O trecho seguinte fora percorrido por trilhas desmatadas, em carros puxados por duas juntas de bois cada. Uma espetacular epopeia cabocla...
As atividades comerciais das fazendas do coronel eram múltiplas. Por isso, ele educara os muitos filhos em engenharia, agronomia, medicina, advocacia e professorado primário. Para gerenciamento, ele contratava cearenses, refugiados das secas, que “sabiam escrever e fazer contas”. A mão de obra bruta, masculina e feminina, incluía descendentes de escravos, negros analfabetos...”Casa Grande e Senzala”, pura...
O menino foi “adotado” pelo tio, engenheiro civil, que o recebera na chegada. Ele era o “gerente geral” do avô e passou a levar o sobrinho em suas múltiplas atividades, explicando-lhe os fatos, razões e consequências deles. Assim, em pouco tempo, a criança curiosa acumulou um bom conhecimento do que ocorria na fazenda.
Além disso, o tio acompanhava a evolução da II Guerra Mundial, em um radio primitivo, ligado na bateria da camioneta da fazenda. A estação era a BBC, de Londres, em Português, diariamente, ao anoitecer. Isso era ouvido pelos dois, com um mapa-múndi e outro da Europa na mão, o que auxiliava bastante a entenderem a evolução daquela barbárie.
Quando acontecia um evento mais importante - como o desembarque anfíbio dos “aliados” na Normandia, ou a explosão atômica em Hiroshima - o tio se entusiasmava e tocava o sino da “varanda de fora” do casarão. Esse procedimento era para chamar os moradores da fazenda até a “casa dos brancos”, a fim de tratar de assuntos importantes.
Com isso, se reunia um grupo masculino de certo porte que ouvia, atentamente, as notícias que o “doutor” dava da Grande Guerra. Poucos entendiam direito o que tinham ouvido, mas a conversa se esticava noite adentro. E na loja da fazenda, nos dias seguintes. Era importante...
O menino ficou três anos na fazenda. Nesse período, centrado no casarão, no engenho, na loja e no riacho, conheceu bem todos seus recantos e atividades. Via, atento, no galpão superior do engenho, uma caldeira queimando bagaço de cana para tocar a máquina a vapor (locomóvel) que fazia girar, no galpão do meio, a enorme moenda na produção da garapa do açúcar. Daí, fervendo em enormes tachos de cobre, surgiam os tijolos de rapadura, o açúcar mascavo e até o açúcar branco, refinado em uma turbina veloz.
Além disso, havia um “puxado” no casarão, com dois belos alambiques destilando pacientemente uma cachaça de renome na região. Armazenada ali mesmo, em barriletes de madeira de lei, era vendida na região, em garrafas importadas, com o nome “Castello”, gravado.
Em outro período do ano, era a vez da “farinhada”. A mandioca substituía a cana e, por um processo similar no engenho, se transformava em farinhas de diversas qualidades, para múltiplos usos deliciosos. Inexistia trigo no cardápio. Era desnecessário...
Além dessas atividades, a fazenda, em um solo abençoado, mantinha vigorosa atividade agrícola, incluindo milho, feijão, arroz, verduras, frutas, além de criação de gado, porcos, equinos, aves...Também, se dedicava à exploração extrativa abrangendo açaí, castanhas diversas, buriti... E, em especial, desenvolveu a exploração de cera de carnaúba, de grande valor para exportação, agregado em forma de pratos...
O menino também mergulhou nesse universo, do qual tem memórias vivas e insubstituíveis. Tal como quando, vestido em um “gibão” de couro e “chapéu” de vaqueiro, montou, sozinho, em um jerico, com sela especial, acompanhando o tio e os homens na “subida para a chapada”.
Esse deslocamento durava uma semana. Ele ocorria uma vez por ano, quando era levado o gado de corte, engordado no ponto certo, a fim de embarcar no trem para o abate em Fortaleza. A comida dos vaqueiros era “paçoca de carne de pilão com rapadura”, levada em um “surrão” (bolsa) pendurado na sela. Dormia-se em redes armadas nas árvores...
A Guerra amaldiçoada acabou na Europa com a conquista de Berlim e morte de Hitler, em 30 de abril de 1945. Seu fim, no extremo Oriente, ocorreu com a rendição do Japão, em 1º de setembro de 1945, sob o impacto de duas explosões nucleares.
Ambos os eventos foram celebrados em festas no pátio em frente da “varanda de fora”, com os moradores atendendo aos chamados pelo bater do sino. Vararam as noites com música, dança, pinga e até foguetório...

A VOLTA

O menino precisava voltar para o Rio de Janeiro, para estudar. A mãe e o pai tinham regressado antes, a fim de reunir a família. Na verdade, as aulas, para a molecada, da tia solteirona na “varanda de fora” do casarão, eram irregulares e careciam de material didático.
De qualquer maneira, o menino tinha aprendido a ler e fazer contas ainda em Santa Catarina, em um ótimo jardim de infância. Daí, ele passou a devorar qualquer texto que caía em suas mãos, incluindo revistas e jornais, recebidos com grande atraso na fazenda. Também, havia livros em francês, inglês e português, e catálogos de produtos remetidos, anualmente, por fornecedores de Londres e de Paris.  
Decisão tomada, ele se despediu daquele mundo maravilhoso que tanto o marcara e foi levado até Teresina pelo tio querido. Lá, na segunda madrugada, saiu da casa dos parentes para o aeroporto, só com a roupa nova e sapatos lhe apertando os pés desacostumados.
Entusiasmado, ele se aproximou do avião que iria levá-lo até o Rio de Janeiro. Era um trimotor, em cuja escada o esperava, com um sorriso, uma linda aeromoça loura e perfumada. Ela lhe deu um beijo na bochecha e o fez sentar-se em uma janela da direita, bem na frente. Ele já conhecia aquele perfume desde Santa Catarina...

O estranho avião, com motores no focinho e nas asas, era alemão, nomeado Junker 52, muito usado no transporte de militares alemães durante a Guerra. Ele pertencia à “Cruzeiro do Sul”, empresa brasileira derivada da alemã “Syndicato Condor”, que operava no Brasil desde os anos 30. Sua capacidade era de dezessete passageiros e três tripulantes
O primeiro trecho da viagem foi Teresina - Bom Jesus da Lapa, na Bahia, nas margens do São Francisco, onde o menino e a mãe tinham estado no “gaiola”, anos antes, na vinda para o Maranhão. Foi um voo tranquilo de quase cinco horas. O menino passou as primeiras horas atento a tudo, porém, cansado, “apagou” na hora final.
A parada em Bom Jesus era para reabastecimento do avião, descanso da tripulação e almoço na pensão próxima ao aeroporto. O trecho até o Rio durou mais ou menos o mesmo. Porém, com a grande diferença de que o avião corcoveou como um cavalo bravo, por voar em baixa altitude, na atmosfera agitada pelo calor da tarde. Ele enjoou todo o almoço, em sacos de papel que a aeromoça lhe dava, penalizada.
O avião desceu em um Santos Dumont pré-histórico O menino ganhou uma colorida caixa de papelão da empresa, com uma miniatura do avião, uma revista sobre aviação e chicletes, biscoitos e garrafinhas de suco. A bela aeromoça o levou até o pai, esperando junto ao prédio do aeroporto.
Naquela noite, a família ficou completa, em uma casa alugada na Tijuca.
Alguns meses depois, o menino e a irmã do meio foram ao centro da cidade, no bonde “12-Tijuca”, para ver a chegada da FEB - Força Expedicionária Brasileira, vitoriosa nas lutas na Itália. A avenida Rio Branco estava toda engalanada para receber os heróis.

A dupla de irmãos se uniu à multidão na calçada, na altura do Clube Naval, perto do ponto final do bonde, no Largo da Carioca. Ali, juntinhos, eles assistiram ao desfile dos militares, em seus uniformes de campanha, marchando ao som de bandas de música, cantos vibrantes, e um grande foguetório. Alguns deles, feridos, tinham dificuldade para marchar... As pessoas se abraçavam e choravam... Havia muita emoção...
O menino viu aquilo tudo boquiaberto e não sentiu o tempo passar. De repente, o desfile acabou e as pessoas começaram a ir embora. Ele se lembrou da irmã e constatou que ela tinha sumido... Procurou, procurou e nada. Teve vontade de chorar, mas segurou... E agora?... Como voltar para casa?... Sem dinheiro para o bonde...
Ele se deu conta de estar na esquina onde fica o Clube Naval. Os porteiros varriam a calçada... O menino se lembrou que conhecera um tio, oficial de marinha, que vivia falando sobre o Clube. Daí, não teve mais dúvida e se dirigiu a um dos funcionários...
Em poucos minutos, o menino foi levado a um sócio, que morava em um dos camarotes do sétimo andar do clube. O oficial, pacientemente, ouviu a história toda e queria ligar para a casa do garoto, porém ele não sabia o número do telefone. Em seguida, foram procurar a irmã nas redondezas do clube. Sem sucesso...
O sócio queria levá-lo até sua casa na Tijuca. Mas, ele insistiu em voltar de bonde, desde que lhe fosse “emprestado” o dinheiro da passagem. Foi o que aconteceu.
Com dinheiro no bolso, bateu a fome e o menino fez uma conta.
Dava para pagar o bonde e comer um sanduíche, regado com um copo de caldo de cana, conforme o cartaz de um botequim próximo. Não hesitou e, pouco depois, estava no bonde, voltando para casa de barriga cheia. E encantado com a beleza dos interiores do Clube Naval e do tratamento gentil recebido, estava resolvido a entrar para a Marinha.
Passada meia hora, ele desceu do bonde no ponto a dois quarteirões de casa. Estava correndo pela calçada quando, ao dobrar a última esquina, esbarrou no pai, esbaforido, indo a uma delegacia para tentar encontrá-lo. O menino nunca esqueceu o abraço apertado que o pai lhe deu. E houve uma choradeira geral quando chegou em casa, principalmente da mãe e da assustada irmãzinha que o havia perdido...

P. S.
I - O almirante assistia, na companhia de um filho, o ótimo filme intitulado “Operação Valquíria”, de 2007, sobre uma tentativa de assassinato de Hitler, em julho de 1944, que quase deu certo. O protagonista, coronel Stauffenberg, havia preparado uma pasta com a carga explosiva e a levava para uma reunião do “Führer” com seus generais, em um abrigo nas montanhas centrais da Alemanha. A cena mostrava o coronel chegando a um aeroporto, de onde voaria para lá.
II - O almirante quase caiu da cadeira ao ver o avião em que o coronel embarcara. Era um trimotor igualzinho ao que ele havia voado para o Rio, fazia mais de sessenta anos. E voou de verdade no filme.
O menino foi dentro, de carona. Emocionado, com um nó na garganta, revendo todos os detalhes da aeronave. Só faltou a bela aeromoça...
III - “Avião da Segunda Guerra cai nos Alpes”
A notícia, de 8/8/2018 diz: “A aeronave, um trimotor Junkers JU52, fabricado em 1939, se chocou contra a face oeste do pico de Piz de Segnas...Não houve sobreviventes entre os dezessete passageiros e três membros da tripulação...Três unidades do JU52 foram utilizados pela Força Aérea da Suíça por mais de 40 anos e, na ocasião do encerramento das operações, uma campanha nacional arrecadou 600 mil francos suíços que financiaram a restauração dos aviões para uso civil.”
Esse avião operava rotas turísticas para a empresa JU-Air, desde 1982... Era mais um dentre o incrível total de exatas 4.845 unidades fabricadas, nas décadas de 1930/1940/1950, na guerra e na paz, na Alemanha, Espanha e França.
Saudade...