-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

31/01/2017

O Legado do Grego


El Greco - O Enterro do Conde de Orgaz
Moacir Pimentel

O nosso segundo dia em Toledo amanheceu tão bonito, mas tão azul, que quando saímos do hotel após um café da manha com direito às vistas longas do Tejo, resolvemos que em vez de voltarmos direto para o Museu da Santa Cruz e mergulhar de novo, na exposição sobre o Grego, seria melhor respirar um pouco mais daquele ar verde de primavera, bater pernas e nos despedir da velha Toledo, com seus anjos e demônios e fantasmas de tantas idas épocas e das suas três culturas representadas pela Imponente Catedral de Toledo, pela Mesquita do Cristo da Luz e pela Sinagoga de Santa Maria a Branca.

Quisemos visitar rapidamente a Igreja de São Tomé para dar uma nova olhada na pintura mais famosa do artista - O Enterro do Conde de Orgaz. O quadro homenageia um benfeitor da Igreja, em cujo funeral, corria a lenda, os santos Estevão e Agostinho compareceram e foram vistos colocando o corpo no túmulo. A imagem retrata esse episódio, assim como a alma do fidalgo sendo recebida no Paraíso. O filho do Greco, Jorge Manuel, foi pintado pelo pai na tela, como um menino, à esquerda, ajoelhado no primeiro plano do quadro, olhando para fora e indicando para o espectador o milagre que o Greco fizera surgir em cores.  

A pequena figura serve assim como um intermediário entre o mundo real - o do espectador - e o mundo ficcional - o da pintura - que, por sua vez, também é dividido em duas esferas: uma celestial na parte de cima, e outra terrena na parte de baixo, onde os muitos homens que estão presentes no funeral, vestidos contemporaneamente, eram membros proeminentes da sociedade toledana do século XVI.  

O Enterro do Conde de Orgaz foi fundamental para a nossa compreensão do Grego, pois encapsula o objeto de sua arte, que é sugerir a experiência de algo visionário que não é uma extensão do nosso mundo físico, mas de nossas faculdades imaginativas.

E de lá seguimos para as muralhas de Toledo. O patrimônio histórico e artístico da cidade é tão extenso e variado nas suas três culturas, que existe uma região da cidade denominada Toledo Olvidada, composta por uma série de lugares de interesse que normalmente passam desapercebidos pela maioria das pessoas. O Hospital de Tavera é um desses "esquecidos". Situado fora das muralhas da cidade, bem próximo à moura Porta de Bisagra, o principal acesso ao centro histórico, Tavera também é chamado de Hospital de Afuera.

O altar lateral da igreja merece ser visto, pois foi projetado pelo Grego e realizado por seu filho, Jorge Manoel, que se tornara também pintor, ajudando o pai e repetindo-lhe as composições por muitos anos, depois que herdou-lhe o estúdio. Entre os tesouros de arte de Tavera está uma tela representando a Sagrada Família, na qual o Grego pintou uma maravilhosa Nossa Senhora do Leite, amamentando um menino Jesus, usando como modelos a mãe do seu filho e o voraz bebê, nascido em 1578.

El Greco - A Sagrada Família com Santa Ana
De lá nos dirigimos para o bairro judeu, em cujas cercanias está a casa do Grego, hoje museu, onde o pintor viveu com Dona Jerónima de Las Cuevas, a cristã nova com quem nunca se casou, mas com quem teve o filho que legitimou. Aparentemente o Grego não desposou a bela amante, por quem foi profundamente apaixonado, porque teria uma esposa grega. A companheira, no entanto, pudemos comprovar, fora mencionada pelo pintor em vários documentos, inclusive em seu testamento.

No Museu El Greco pudemos apreciar uma das três paisagens que ele pintou, A Vista e o Mapa de Toledo, e uma série de retratos. Mesmo em retratos o pintor demonstrara a sua tendência de dramatizar mais do que a descrever. Os seus retratos, se são menos numerosos do que as suas obras de caráter religioso, não deixaram de ter a mesma qualidade e o colocaram numa posição proeminente enquanto retratista, ao lado de Ticiano e de Rembrandt.

Para mim, dentre todos os retratos feitos pelas mãos do Grego, pela grande beleza e perfeição um poderia ter sido pintado por mãos venezianas, por aquelas do gênio Leonardo da Vinci. Na Dama com o Casaco de Arminho, o Grego pintou como nunca fizera antes ou fez depois. A senhora retratada era especial e, portanto, mereceu do pintor um tratamento único. Acredito que esta tela tenha sido como uma carta de amor, irrepetível, de grande qualidade e raridade.

Não há certeza histórica quanto à identidade da modelo, embora a maioria dos historiadores acredite que seja Dona Jerónima. Dizem que o pintor era obcecado pelo rosto da mulher amada e que o pintara compulsivamente como sendo aqueles de todas as suas Marias e Madalenas.

É sim, o mesmo enigmático rosto mariano que vemos nas telas do artista, só que nelas ele é muito mais subjetivo. Essa maravilhosa Dama foi outro link íntimo com o qual a exposição sobre o Grego nos presenteou, mostrando-nos lado a lado duas telas. A Dama em Um Casaco de Peles, do Grego, e a Dama do Casaco de Peles depois do Grego, pintada pelo pintor Cézanne. 
El Greco / Cézanne - As Damas dos Casacos de Pele 
 Ambas lindas e normalmente encontradas na Glasgow Pollok House, na Escócia.

A Dama do Casaco de Peles de Cézanne é descendente da Senhora do Grego já envolta em peles na década de 1570. Cézanne nunca vira a pintura original pessoalmente, mas fora tomado de amor por ela diante de uma gravura ilustrada, em um artigo publicado por J. B. Laurens, em 1860, no Le Magasin Pittoresque. A ilustração, exposta em Toledo, de fato compartilhava muitas semelhanças com a interpretação de Cézanne da pintura do Grego, e explica a conexão de Cézanne com a obra-prima mais idosa.

Em Toledo descobrimos que a influência dos mestres espanhóis sobre a evolução do modernismo francês se iniciara no primeiro semestre do século XIX. Desde quando, além da Dama das Peles, na Galeria Espanhola do rei Louis-Philippe moraram outras telas do Grego. O monarca mandara o barão Isidore Justin Taylor para a Espanha, a fim de adquirir, por sua conta, um grupo representativo de obras da escola espanhola. Taylor enriquecera a coleção do rei com nove pinturas do Grego: quatro com motivos religiosos, quatro retratos e um Evangelista.

Entre 1836 e 1848, portanto, a imagem impressionante dessa Senhora envolvida por peles de arminho fora exibida em Paris na Galeria Espanhola do Louvre juntamente com mais de quatrocentas e cinquenta obras de mais de oitenta0 pintores espanhóis, e o público francês pudera ver obras do Grego, entre as de Velásquez e Goya.

Foi justamente nessa inauguração do Museu Espanhol do Louvre que pela primeira vez foi verbalizado, embora de forma alusiva, o pensamento de que o Grego representara o início da escola espanhola. Isto porque os organizadores do museu haviam colocado as telas dele no início da galeria, deixando as de Goya para o final.

O poeta Baudelaire comentou a extraordinária beleza da dama espanhola, em 1846, ao escrever sobre como a Galeria Espanhola do Louvre tivera o efeito de aumentar o volume de ideias gerais que os franceses tinham sobre a arte e de defender um museu de arte estrangeira como um lugar internacional de comunhão, "onde dois povos, possam se encontrar, observando e estudando um ao outro”. Podemos imaginar os famosos versos do poeta, dedicados a uma mulher que passa, poderiam, até mesmo, ter sido inspirados por aqueles olhos...

Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

A ligação de Cézanne com a Dama do Grego foi comentada ainda pelo crítico de arte alemão Julius Meier-Graefe, que, em parte, iniciou uma redescoberta do Grego, após ter visto o retrato de Cézanne em Paris, e a estudar a influência do mestre de Toledo sobre artistas modernos:  

“El Greco descobriu um reino de novas possibilidades. Nem mesmo ele próprio foi capaz de esgotá-las. Todas as gerações que vieram atrás dele, viveram e vivem em seu reino. Há uma maior diferença entre ele e Ticiano, seu mestre, do que entre ele e Renoir ou Cézanne. No entanto, Renoir e Cézanne são mestres da originalidade impecável porque não é possível aproveitar-se da linguagem do Grego se, ao usá-la, ela não for inventada de novo e de novo, pelo usuário”.

Tinha razão o especialista. Cézanne escolhera, por exemplo, suas próprias cores para o retrato, saindo completamente dos tons da pintura original e optando por várias tonalidades de azul e verde, complementadas por rosa, pêssego e tons de cinza.

Foi então que soubemos que, com a chegada do romantismo, o Grego passara a ser visto como o precursor daquela ânsia para o estranho e o extremo, pois os melhores trabalhos de seu segundo período pareceram, para os românticos pelo menos, ter um estilo bem romântico.

Foi precisamente então que o mito da loucura do Grego nascera em duas versões. Por um lado, acreditava-se que o Greco enlouquecera de sensibilidade artística excessiva. Por outro lado, o público passou a vê-lo como um pintor louco e, portanto, os seus mais loucos quadros em vez de serem admirados passaram a ser considerados como documentos históricos comprovando a loucura dele.

Disseram-nos que em 1867 Paul Lefort, um especialista em pintura espanhola, dedicara um artigo de oito páginas ao Grego, ilustrado por gravuras de quatro obras. Neste artigo, Lefort exaltara o Grego, refutando a narrativa de sua “loucura” e proclamando-o o fundador da escola espanhola. Na década de 1890, os pintores espanhóis residentes em Paris adotaram-no como seu guia e mentor.

Durante a segunda metade do século XIX, o elemento de luz e brilho em suas pinturas apelou para os impressionistas. Depois a excentricidade em seu estilo foi elogiada por simbolistas. A crescente admiração pelo Grego naquele momento também pode ser parcialmente atribuída à filosofia estética do filósofo alemão Immanuel Kant, que era louvado pelos artistas do final do século XIX.

De acordo com a filosofia de Kant, um artista é um criador único que tem o seu próprio domínio e não é limitado por regras ou outros poderes. O Grego encarna perfeitamente a definição kantiana de artista, por causa da sua abordagem inovadora da arte, juntamente com a sua independência e bravura perante as autoridades.

Na verdade, o que estávamos descobrindo nas salas daquele museu é que o Grego rejeitara o naturalismo como um veículo para a sua arte, assim como a ideia de uma arte acessível a um grande público. O que ele abraçara fora um mundo à sua maneira, muito pessoal e consciente de si e em um estilo erudito. O paradoxo é que ele mergulhara de cabeça no maneirismo, no auge das críticas contra o estilo do momento, quando a maioria dos artistas estava se esforçando para livrar seus quadros de qualquer coisa que pudesse parecer mera exibição ou indulgência. O Grego tomara o caminho oposto ao da história da arte.

Em 1908, o historiador de arte Manuel Bartolomé Cossío publicou o primeiro catálogo completo das obras do Grego. Nessa oportunidade o Grego não foi estabelecido como o fundador da escola espanhola, mas como o comunicador da alma espanhola por excelência, como um grande pintor do passado, mas totalmente contemporâneo, um profeta do encontro da arte com a modernidade.

Disseram-nos ainda que em 1902 a primeira exposição de suas obras ocorreu no Museu do Prado, em Madrid, que em 1908 fora organizada uma exposição do Grego em Paris, e que em 1910, o Museu El Greco foi fundado em Toledo. Finalmente, que em 1911 a exposição do colecionador húngaro, Marczell von Nemes no Alte Pinakothek, em Munique, apresentou oito pinturas do Grego.

Depois de três séculos de negligência, nos fez bem constatar como Domenicos Theotocopulos renascera para a fama e passara a ser de crucial importância para a arte moderna da imaginação.

Foi ali, no limiar entre os dois últimos séculos, que o Grego fora reconhecido como um gênio arquetípico que fizera o que bem imaginara e pintara livremente, com total indiferença para com o efeito que a expressão poderia ter sobre o público. O mundo passara a ver o Grego, como um velho mestre que não fora apenas moderno, mas realmente estivera à frente do seu tempo, para mostrar caminhos.

Mas... mesmo neste nesse momento de glória, no começo do século XX, outros pesquisadores desenvolveram uma teoria alternativa, mais radical: argumentaram que o Grego pintara suas figuras humanas alongadas porque tinha problemas de visão, possivelmente astigmatismo progressivo ou estrabismo, que o faria ver os corpos mais longos do que eram. Se ou não o Grego sofria de astigmatismo progressivo é uma questão ainda aberta ao debate, se bem que alguém tivera juízo o bastante para lembrar que "astigmatismo não poderia dar qualidade a uma tela, nem talento a um asno"

Ali, naquelas velhas salas, em meio à arte e às memórias do pintor, foi-nos fácil compreender que se Toledo estivera longe da efervescência artística de Roma e Madri, a cidade não fora um baluarte contra as forças culturais e artísticas que moldaram a arte do século XVII. Portanto conseguimos entender a arte do Grego em isolamento, como se fosse um tesouro fora do seu tempo, à espera de ser descoberto na era moderna.

30/01/2017

Arco da Aliança


Heraldo Palmeira
A Natal da minha infância e juventude tinha seus ícones particulares, como qualquer cidade. Aquelas figuras populares que todos conhecemos do cotidiano das ruas com uma enorme falsa intimidade. Quando morrem, reviramos o baú do esquecimento até percebermos que perambularam na periferia das nossas vidas com certa intensidade e nada sabíamos a respeito deles.
Com a notícia de que uma dessas figuras do patrimônio popular natalense havia silenciado, dei um enorme passo para trás no tempo para reencontrar uma cidade encantadora em pleno fulgor da virada dos anos 60/70, prenhe dos sonhos traçados pela nossa juventude e pelo intenso caldeirão político-cultural que sacudia o mundo naquele momento.
Tínhamos um elenco local com ares chaplinianos, três ou quatro “artistas oficiais”. Um pintor sempre debaixo de um chapelão de palha e vestido de branco angelical lambuzado de tintas e cores, algo extremamente psicodélico! Um eterno rei momo, monarca indiscutível da tribo foliã, um nobre da bagunça. Um cego que vendia bilhetes de loterias, rei do chiste que distribuía sua alegria gratuita como prêmio maior. Um fotógrafo de baixíssima estatura e bigode monumental que quase servia de acessório às suas Rolleiflex e Yashicas. Alguns ainda vivos. E havia uma figura enigmática: André da Rabeca.
Tempos em que as festas particulares não careciam de produção alguma e bastava amontoar um bocado de amigos ao redor de um bom motivo. Não houve festa de aniversário ou qualquer acontecimento familiar de maior destaque sem a presença daquela criatura extremamente triste. Triste como seu arremedo de cantoria e o som do instrumento que virara sua cara-metade. Quando entrava em ação, era difícil distinguir entre atração artística e curiosidade humana.
Falava pouco, com uma fala quase incompreensível, e o estrabismo reforçava o ar perdido do seu olhar. Um boné surrado – na mesma cor café com leite que a polícia usava na época – com alguns emblemas costurados denunciava algum fetiche militar, talvez um sonho secreto de ser soldado por profissão. Algo que merecia o zelo extremo de manter à mão agulha e linha para refazer as costuras diante do menor sinal de necessidade de reparo. Urgência que não poupava da espera qualquer plateia. Afinal – devia pensar entre seus botões –, figurino é figurino.
Na verdade, aquele homem era tão incompreensível quanto a música que imaginava tocar na rabeca, cujo repertório era centrado em clássicos nordestinos e cirandas pernambucanas. Viveu espremido na exata divisa entre passado e futuro, trilhando um presente cruelmente incerto todos os dias. Caminhava sobre partituras imaginárias onde o som acabava a qualquer momento, sem um mínimo de cerimônia e podendo retornar instantes depois. Era como se sua música e sua vida transcorressem nesses lapsos, em arranjos sem notas precisas, sem maestro e sem nexo.
Nos últimos tempos escolhera dois pontos para sua mendicância musical: uma sorveteria reduto da classe média e uma ponta de calçada na rua Princesa Isabel, na outrora fulgurante microrregião comercial do Centro, denominada Grande Ponto. Instalado no passeio sob sol devastador, tocava para as almas num palco imaginário. Desaparecia no meio da indiferença dos passantes, à espera das moedas que teimavam em não cair na caixa do instrumento, surrada como a própria vida.
Encerrou seu espetáculo solitário num domingo de janeiro, talvez desconfiado de mais um ano que teria de enfrentar com as mesmas armas. Tinha 65 anos e se curvou ao enfisema pulmonar. Músico de muitas limitações, André da Rabeca foi um desses anjos tortos que permitiu à música roçar as vidas de outras criaturas que, como ele, vagaram pelas ruas incertas da ilusão antes de descobrirem que o nome disso é desilusão.
Quando perdemos esse tipo de referência urbano-cultural tomamos um susto, talvez alertados pela consciência de que estamos morrendo um pouco também. André da Rabeca se foi como um paradoxo, deixando um legado silencioso: o tempo feliz que representou sem saber. Um tempo que ainda podemos visitar revendo filmes e fotografias, relendo livros e ouvindo as velhas canções que nos fizeram acreditar no paraíso terreno.
Um lugar que ele tentou conquistar deslizando um arco sobre as quatro cordas intangíveis da sua rabeca. Vã tentativa de estabelecer aliança com um paraíso que lhe acolheu por simples caridade, e que não lhe permitiu um passo além da dureza das suas calçadas. Um paraíso de mentira que transformou aquele pobre homem numa esfinge.    

(*) Agradecimentos especiais a Marcus Guedes, por ajudar a organizar estas memórias com sua memória prodigiosa.


29/01/2017

O Buda e os Serviços de Inteligência

Estátua de Buda, em Andhra Pradesh, India (imagem wikimedia)



Antonio Rocha


A polêmica, que aconteceu recentemente, sobre a espionagem praticada pelos Estados Unidos em relação ao Brasil me fez lembrar de um texto clássico da Literatura Budista:

Certa feita, o rei Pasenadi, de um reino chamado Kosala, foi visitar o Buda na floresta e conversavam animadamente sob uma árvore.

Nisto, um grupo de religiosos de outra linhagem passa perto. O rei interrompe o diálogo com o Buda, vai até os ascetas, andarilhos, peregrinos e faz as reverências cabíveis nestas ocasiões. Depois voltou para sentar-se e continuar a conversa com o Buda. Mas o rei observou que o Mestre Sidarta não fez os cumprimentos tradicionais, respeitosos e ecumênicos para o grupo que já se afastava, nem se levantou para saudar os caminhantes. Então perguntou:

- Eles são homens santos e o senhor não saiu do lugar, não moveu uma palha?! São pessoas ímpares, conduta notável e o senhor não os cumprimentou como recomenda a boa educação e quer nos ensinar as boas maneiras éticas!?

Sorrindo, Sakyamuni ponderou:

“É na adversidade, após um longo tempo, que as pessoas se revelam, quem realmente são. E não em um encontro inicial, superficial”.

Agora foi a vez do rei sorrir e dizer:

- Maravilhoso Senhor! Eles são meus soldados, dos serviços de inteligência, andam disfarçados de religiosos e me informam sobre tudo o que o povo pensa, fala e faz.

Então o mestre Gautama completou, novamente sorrindo:

“Um homem não é facilmente conhecido pela aparência exterior. Leva-se muito tempo para confiarmos ou não nele. Homens descontrolados andam pelo mundo disfarçados de controlados, equilibrados.”

Fonte: páginas 222 e 223, “Ensinamentos do Buda – Uma antologia do Cânone Páli”, Nissim Cohen, 2008.

Moral da História: o rei Pasenadi de Kosala, como era conhecido, tentou fazer uma “pegadinha” como o Buda, mas não deu certo.

Uma das características do Estado de Buda ou Estado de Deus é que a pessoa consegue ler na aura de cada um, isto é, no campo vibratório em torno de si, quem ela realmente é.

Como já escrevemos aqui neste blog uma vez, até os vinte e nove anos o Buda foi treinado para ocupar o trono. Então ele conhecia os meandros dos poderes e a pegadinha do rei amigo não foi possível.

E se alguém estranhar que naquele tempo, século VI antes de Cristo, já existiam serviços de inteligência, é preciso esclarecer: desde que existem os poderes na face do planeta, estes mesmos poderes sempre cuidaram da proteção dos reis e soberanos das mais diversas formas.

Buda, quando morava no Palácio também tinha os seus seguranças. As vezes que precisou sair fora dos muros fortificados, fazia-se acompanhar dos soldados.

Mas um belo dia, ele renunciou a tudo e virou um asceta, andarilho. Claro, ele tinha antiga missão já decretada a milhares de anos: revelar que todo ser vivo tem em Estado Potencial o Estado de Buda, de Iluminação, de Esclarecimento.

Para fazer isso, precisava desapegar-se das benesses dos poderes. Depois que atingiu o tal estado, ele voltou para casa, sua esposa e filho o acompanharam pelo resto da vida.

Digamos, ele foi fazer um MBA nas florestas... Meditação Bem Aplicada.




27/01/2017

Uma aula na África

fotografia Wilson Baptista Junior

  
Wilson Baptista Junior

Lá pelos idos de 1998, 2000 (não me lembro agora da data exata) eu e um colega fomos convidados pela Câmara de Comércio Portugal / Moçambique para dar um curso num projeto do governo moçambicano.
Nós dois trabalhávamos na época com aprendizado experiencial. Para quem não conhece, cabe uma breve explicação (peço desculpas se tiver que me alongar um pouco): quando se vai treinar um piloto, antes que ele tome os comandos de um avião de verdade convém que ele passe por um simulador de voo, onde ele aprende a manejar os controles do avião sem correr o risco de se espatifar no solo ou cair com o avião em cima de uma cidade. Este simulador, como o nome diz, “simula” todas as reações do avião ante os comandos do piloto e as situações de emergência criadas pelos instrutores, e o aluno, que já recebeu alguma instrução teórica antes, aprende agora com o cérebro, os músculos e os nervos, o que estudou antes, vendo como o avião reage ao que ele faz.
Ora, se podemos cortar os riscos e os prejuízos treinando pilotos assim, não seria bom poder fazer a mesma coisa antes de entregar a um gerente ou diretor as decisões estratégicas de uma empresa que podem custar centenas de milhares ou milhões de reais e das quais depende o emprego de muita gente?
A ideia de criar essas simulações estratégicas surgiu, como tantas coisas, da necessidade imposta pela Segunda Grande Guerra de melhorar as decisões dos comandantes militares. E foi um pesquisador e professor de uma universidade americana, que mais tarde cheguei a conhecer e colaborar algumas vezes com ele, quem primeiro aplicou isso na vida civil e com o tempo se tornou um dos mais respeitados especialistas do mundo no assunto.
Aqui no Brasil, eu e o meu colega, que trabalhávamos com planejamento, fomos os primeiros a desenvolver e aplicar essa técnica. Desenvolvíamos modelos matemáticos de alguma complexidade que incorporavam o comportamento de um mercado, a parte de produção e comercialização e a parte financeira de uma empresa, conforme as necessidades do cliente, e depois conduzíamos pessoalmente o treinamento dos seus executivos usando estes modelos, em que eles eram divididos em equipes que representavam cada uma uma empresa do setor e que competiam umas contra as outras, obtendo resultados melhores ou piores conforme as suas decisões impactassem o mercado e os concorrentes.
Esse processo era muito interessante porque nós na realidade não ensinávamos nada aos alunos, no sentido convencional, eram eles quem aprendiam por si mesmos conforme o que viam acontecer no mercado e que discutiam entre eles como consequência das decisões de equipe. Por isso se chamava “aprendizado experiencial”. Eles aprendiam a aprender. O que colocávamos como princípio para os alunos era do sábio chinês K’ung-Fu-Tzu, que escreveu em seus Analectos, quinhentos anos antes de Cristo, alguma coisa assim:
“Ouço, e esqueço,
Vejo, e me lembro,
Faço, e aprendo”.
Hoje sistemas parecidos produzidos por diversos desenvolvedores são muito conhecidos por aqui como “jogos de empresas”, e podem ser jogados em tempo real pela web, em tablets e smartphones, mas naquele tempo reuníamos os alunos, cada equipe com seu computador, e realizávamos o exercício  durante vários dias, em conjunto.
Quando recebemos o convite para trabalhar em Moçambique, a primeira coisa que tivemos que fazer foi nos vacinarmos contra a febre amarela, que era exigência para conseguirmos passar pela África do Sul, onde trocaríamos de avião na ida e na volta.
Vacinei-me, e como o certificado de vacina valia por dez anos, para não correr o risco de perdê-lo tirei uma cópia, coloquei dentro do passaporte e deixei o original em casa. Mal podia imaginar o problema que isso me causaria.
O voo para a África partia do Rio de Janeiro.
No aeroporto do Rio, quando fui à Polícia Federal para registrar meu equipamento fotográfico, antes de embarcar, encontrei um moço com uma pastinha daquelas estilo James Bond algemada ao pulso. Puxamos conversa enquanto esperávamos e me contou que negociava diamantes, do Brasil para a África do Sul e da África para o Brasil. Quando chegou ao balcão abriu a pasta e parecia coisa de cinema, aquelas pedras, brutas e lapidadas, faiscando sob a luz das fluorescentes num fundo de veludo negro.
Embarcamos num velho Douglas DC-10, o mais antigo ainda em atividade na Varig. Tinha havido uma confusão da companhia aérea com nossas passagens, e acabei sendo acomodado ao lado do moço dos diamantes na última fila do avião, aquela onde os assentos não se reclinam. Antecipando nove horas de voo com o assento na vertical e o da frente reclinado, eu já não estava muito feliz,  e menos ainda quando o passageiro na fila do corredor logo à minha frente generosamente trocou de lugar com uma mãe que tinha um bebê de colo que não parava de chorar e estava mal acomodada num assento na fileira do meio mais lá na frente.
Durante toda a viagem o bebê chorou, um choro sentido de quem tinha dor. Nas poucas ocasiões em que ele dormiu a mãe o acordou para dar remédio e o choro recomeçou...
Como não conseguimos dormir, conversamos grande parte do tempo. Contou-me que era mineiro como eu, tinha uma fazenda no Brasil na região do cerrado onde tinha resolvido plantar café. E que muito do dinheiro que ganhava no comércio das pedras perdia na fazenda, mas que era teimoso e queria por que queria chegar a produzir um café de boa qualidade nas terras dele. E tinha outra fazenda na África, na Tanzânia, lá para os lados do monte Kilimandjaro. Me convidou para encontrá-lo terminado o curso e fazer um safári nessa fazenda, um safári de verdade, não desses para turistas.
Eu, que cresci lendo histórias de caçadas na África, fiquei frustradíssimo porque tinha um outro curso já agendado para uma empresa de São Paulo, três dias depois do de Moçambique. Se pudesse ficar, seria a realização dos meus sonhos de criança...
Fazer o quê?
A chegada à África foi bonita, era de manhã, voamos por cima do deserto da Namíbia, vendo aquela extensão de areia e rochas ir gradativamente se transformando em manchas mais escuras e depois pequenas manchas de verde que foram aumentando até aparecerem os primeiros rios e depois o terreno começar a subir até chegarmos a Johannesburg, a maior cidade da África do Sul, que fica no interior do país, a quase mil e oitocentos metros de altura nas colinas do Witwatersrand, em afrikaner “Serra da Água Branca”.
Passamos sem problemas pelo controle de passaportes. Logo depois do controle apareceram dois brutamontes com coletes à prova de balas e escopetas calibre doze nas mãos, eram os seguranças do meu novo conhecido. Despedimo-nos trocando cartões de visita, uma troca protocolar sabendo que provavelmente essa visita nunca aconteceria.
O voo para Moçambique só partia no começo da noite seguinte, tínhamos então um dia e meio de espera. Os  organizadores do curso tinham reservado para nós apartamentos no Rosebank Hotel, um belo quatro estrelas fora do centro velho da cidade.
Aproveitamos para passear um pouco pela vizinhança do hotel. Entre as diversas coisas que nos chamaram a atenção havia uma galeria de arte, onde vi uma escultura em bronze muito interessante de um babuíno.

fotografia Wilson Baptista Junior

Era um bairro novo, construído para as pessoas e empresas que estavam querendo fugir da deterioração do centro urbano.
Johannesburgo era na época uma cidade relativamente violenta, com  grande número de assaltos a carros. Para vocês terem uma ideia, um acessório que tinha acabado de ser lançado no mercado, para automóveis particulares, era um lança chamas com aberturas instaladas logo abaixo das portas dianteiras, que podia ser disparado contra os assaltantes pelo motorista que se sentisse ameaçado. Por lei, era obrigatório ter um aviso colado no carro de que ele dispunha desse lança chamas. Nos contaram que o primeiro cliente tinha sido o Superintendente de Polícia da cidade. Chegamos a ver um deles, mas não tive tempo de fotografá-lo porque passou perto de nós na rua.
O Apartheid, o regime de segregação racial imposto pelos brancos, tinha acabado apenas poucos anos antes, com a eleição de Nélson Mandela para a presidência do país, e ainda persistiam lembranças dos violentos conflitos da década de oitenta.
À noitinha, no balcão do bar do hotel, bebendo a deliciosa cerveja Castle local, puxei conversa com o barman, um negro de ar distinto aí duns cinquenta anos, que trabalhava no hotel há mais de vinte anos. Contou-me que até poucos anos atrás seus filhos não podiam entrar no hotel para falar com ele, negros que não fossem funcionários não tinham permissão de entrar.
O ressentimento do barman era bem forte, e ele esperava com grande antecipação mas ao mesmo tempo preocupação, porque não sabia o que poderia acontecer, as próximas eleições parlamentares, onde pela primeira vez poderia se configurar uma maioria negra no parlamento.
Ao jantar, vi no cardápio um prato chamado “Chicken liver piripiri”, que era um ensopado de fígado de frango, que aprecio, com molho de uma pimenta local. Mas o garçon me disse que já tinha acabado, e pedi outra coisa.
No dia seguinte voamos para Maputo, capital de Moçambique, num Boeing 737 da South African Airlines. Quando desembarcamos encontramos um amigo, um consultor português com quem já tínhamos trabalhado diversas vezes no Brasil, que nos apresentou ao presidente da Câmara de Comércio, um major reformado do exército português que tinha servido em Moçambique no tempo ainda da guerra de libertação.
Moçambique tinha se libertado da dominação portuguesa vinte e poucos anos antes, depois de mais de dez anos de combates violentos entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique, apoiada pela Rússia, China, Cuba e outros países europeus e africanos) e o exército português. A luta só terminou quando a Revolução dos Cravos derrubou o ditador Salazar em Portugal e o novo governo pôs fim ao império colonial.
Moçambique ainda estava procurando se reorganizar economicamente depois da saída dos portugueses, e a ideia do governo era preparar quadros para a administração e o desenvolvimento empresarial do país. Nosso trabalho fazia parte desse projeto.
Maputo, construída à beira do Oceano Índico, no tempo do domínio português era chamada de Lourenço Marques, as construções antigas eram bonitas e a cidade aprazível. Depois da independência ressentia-se de uma certa falta de cuidado e as favelas começavam a se espalhar em volta dela. Ainda bem diferentes das favelas que hoje, dezesseis anos depois, envolvem a cidade, eram casebres construídos em meio ao verde, com pequenas hortas de subsistência, não muito diferentes das aldeias tribais do interior.
Ficamos hospedados no hotel Carlton, perto da Catedral de Maputo, com vista para o porto, e onde também seria realizado o curso.
A sala onde teríamos a turma reunida para parte das atividades chamava-se “Sala Mabula”. Mabula é um nome comum na região, havia até uma reserva de caça bem conhecida com esse nome. Mas ninguém soube nos explicar o seu significado, nem consegui descobrir depois. Como coisa que ninguém sabia o que era, pareceu-me muito adequado para o tipo de curso que iríamos dar...
No dia seguinte começamos o programa. As aulas foram muito interessantes, os alunos, homens e mulheres, eram todos muito bem preparados, alguns com mestrado e doutorado, muitos com cursos no exterior, todos ávidos para aprender mais. Os instrutores, ou facilitadores, como os chamávamos, éramos eu, meu colega, o nosso amigo consultor português e o major presidente da Câmara.
Os alunos sabiam que o major tinha lutado contra os guerrilheiros na guerra de libertação, que foi uma luta cruel, e tinham pais, tios ou amigos que por sua vez tinham sido guerrilheiros. Havia uma tensão palpável no ar, mesmo tantos anos depois. Mas com o desenrolar do curso a tensão foi se reduzindo e tudo correu bem.
Esses hotéis de cadeias americanas são iguais no mundo inteiro, as salas são parecidas, nossos alunos dos mesmos tipos étnicos tão encontrados no Brasil e falando todos em português, que é a língua oficial de Moçambique, a gente se esquecia de que estava na África e acabava pensando que estava dando aulas por aqui.
Mas de vez em quando éramos inesperadamente chamados de volta para a África... Uma parte do exercício é atuar um dos facilitadores como um sindicalista, para exercitar a negociação sindical, e para estabelecer os benefícios sociais que entravam nas negociações e nos modelos a gente precisa saber qual é a composição média das famílias de cada região. Então lá pelas tantas perguntei isso a um dos alunos e ouvi a resposta: “Um pai, duas mães, quatro crianças e uma ou duas sogras”.
Blam! Para quem estava acostumado com sociedades teoricamente monogâmicas, um mergulho de cabeça nos costumes tribais e muçulmanos...
Uma noite, saímos para jantar com os outros instrutores, e fomos levados a um restaurante português onde comemos um magnífico bacalhau, devidamente acompanhado de um vinho da t’rrinha, e ficamos conhecendo o dono do restaurante, amigo deles, simpático e conversador, com o tradicional bigodão português das histórias em quadrinhos... e negro retinto.
No dia seguinte ao término do curso, antes de embarcarmos de volta para Johannesburg, fomos almoçar um sanduíche no Hotel Polana, um belíssimo hotel situado à beira mar. Conta-se por lá que nos tempos da Segunda Guerra Mundial os agentes do Eixo e dos Aliados se hospedavam nesse hotel, que ainda é o melhor da cidade, e como Portugal era tecnicamente neutro, apesar das simpatias de Salazar pelo regime nazista, havia ali uma trégua tácita entre eles, que, segundo o gerente do hotel, brincavam de irritar os oponentes amarrando uns aos outros os cadarços dos sapatos deixados para engraxar do lado de fora das portas dos quartos...

fotografia Wilson Baptista Junior

O sanduíche do Polana, famoso por toda a região, é feito com uns dois bons palmos de bisnaga crocante de pão francês, recheado com presunto cru e um molho de receita do hotel. Acompanhado de uma Castle bem gelada era tranquilamente um almoço.
Voamos de volta para a África do Sul, novamente pela South African Airlines. Ao desembarcar no aeroporto de Johannesburg, o funcionário da imigração me pediu o certificado de vacinação contra febre amarela (não me pediram na vinda do Brasil porque naquele tempo o Brasil não era um país de risco, mas Moçambique era). E não quis aceitar a cópia xerox que eu tinha levado, disse que só aceitaria o original. Sem ele eu não poderia sair do aeroporto.
Depois de quase uma hora de discussão, passando por vários funcionários, eu já estava me sentindo como devia se sentir o personagem do Tom Hanks naquele filme “O Terminal”, lançado alguns anos depois, em que um cidadão tem que ficar morando no aeroporto de Nova Iorque porque a imigração não o deixa entrar no país mas ao mesmo tempo não têm motivos para o deportar. Afinal um deles, vendo pela minha passagem da Varig que eu deixaria o país na noite do dia seguinte, resolveu abrir uma exceção e me deixou passar.
Voltamos ao hotel Rosebank. Na hora do jantar perguntei se tinham o tal fígado de frango com pimenta. O garçon me olhou meio de esguelha e perguntou se eu sabia que aquele prato era apimentado. Eu disse que sim, e ele foi para a cozinha.
Ficamos conversando, eu e meu colega, e quando os pratos chegaram e o garçom destampou o meu, o cheiro estava delicioso. Aí percebi um certo movimento no entorno, e vi que os outros garçons e o cozinheiro estavam em volta da mesa olhando para nós com ares de expectativa. Comecei a desconfiar de que aquele prato tinha alguma coisa de especial.
À primeira mordida, descobri que a tal pimenta piripiri era violentíssima, muito mais forte do que a nossa dedo de moça, e a turma tinha vindo assistir ao forasteiro que ou era muito corajoso ou muito ingênuo...
Como cabrito bom não berra, comi os fígados, que aliás estavam deliciosos, assistido por várias fatias de pão e algumas Castle longneck para apagar o incêndio. Mas confesso que não tive coragem de passar o pão no molho. Achei que o espetáculo já tinha sido suficiente... E olhem que eu gosto de pimenta.
No dia seguinte, antes do embarque, passeamos por Johannesburg, visitamos as instalações de uma mina de ouro desativada e um prédio do centro, construído para ser um shopping mas desativado pela fuga das empresas da desordem local, que tinha cinquenta e dois andares. Chamavam-no de “O Teto da África”, porque Johannesburg já está a quase mil e oitocentos metros de altura, com mais os cinquenta e dois andares então...
A vista de Johannesburg, lá de cima, parecia uma vista aérea.

fotografia Wilson Baptista Junior

No andar mais alto ainda funcionava um pequeno museu com artefatos nativos. Uma coisa interessante foi ver, juntos numa vitrine, dois cantis de soldados dos dois lados da Guerra dos Boers, no final do século XIX. O do inglês era um cantil de metal, o do africano era feito com a casca de um ovo de avestruz, decorado. Duas culturas em confronto.

fotografia Wilson Baptista Junior







No dia seguinte, voltando para casa no mesmo DC-10 da Varig, meu assento não era mais na última fila nem havia bebês chorando. Um final tranquilo para uma aula interessante.



“Há mouro na costa!”

fotografia Moacir Pimentel



Moacir Pimentel

Desde os finais do século VII e durante mais de um milênio toda a orla marítima portuguesa - do Algarve ao Alto Minho - foi alvo de expedições protagonizadas por corsários e piratas mouriscos à caça de escravos ibéricos que eram, em seguida, comercializados nos mercados de Argel, Marrakech ou Trípoli.
Face a isto, as aldeias costeiras de Portugal viviam em permanente estado de alerta de maneira a prevenir suas populações do perigo e dar-lhes chance de fuga. Pelas praias erguiam-se inúmeros postos de vigia, do alto dessas torres o horizonte era vigiado e quando lá surgiam as velas dos navios árabes, o sentinela gritava desesperadamente:
Há mouro na costa!”
Em seguida fogueiras eram acesas e sinais de fumaça enviados e o povo alertado ou se armava para o confronto ou abandonava as vilas praianas e dirigia-se para o interior, onde os corsários não se atreviam a penetrar. Há relatos desses episódios em pleno século XIX.
Na t’rrinha o grito “Há mouro na costa!” passou a ser uma expressão de uso popular para advertir alguém de um eventual perigo.
Dizem as “velhas da praia” que um desses postos de vigia foi erguido em Viana do Castelo, bem no local onde hoje mora o imponente Santuário de Santa Luzia que ilustra o post com sua silhueta mourisca.
Durante muitos séculos a Península Ibérica foi povoada e governada por vários povos – dentre eles os muçulmanos - que se cruzaram entre si, misturando sangues, culturas, costumes e conhecimentos.
No ano de 711, tropas oriundas do norte da África cruzaram o estreito de Gibraltar e venceram, na batalha de Guadalete, o visigodo Rodrigo, um dos muitos reis germânicos que dominaram as províncias ibéricas depois da queda do Império Romano. Esta conquista árabe entrou para a História com o nome de Invasão Islâmica da Península Ibérica.
O curioso é que a ocupação islâmica foi incentivada e facilitada pelo povo que habitava a região hoje conhecida como Algarve, no sul de Portugal. Naquelas paragens várias tribos visigodas convertidas ao cristianismo viviam às turras, envolvidas em disputas territoriais e de poder.
Por causa dessa rivalidade, os inimigos do então rei visigótico Rodrigo resolveram pedir ajuda ao líder árabe Musa ibn Nusayr, que reinava absoluto no norte da África, argumentando que segundo a xaria, a lei islâmica, era dever do mulçumano defender os povos do Livro: judeus e cristãos.
Musa não só atendeu ao pedido como aproveitou para tomar para si toda a Península, invadindo-a com tropas sob o comando do temido general Tarique.
É preciso registar que chegada dos árabes foi saudada com muito entusiasmo pelos sefarditas, os judeus de Portugal e Espanha. Pudera! Desde o tempo das navegações fenícias, os judeus tinham vivido e prosperado em Sefarad – o nome em hebraico da Península Ibérica - até que começaram a ser perseguidos pelos reis cristãos visigóticos que os condenaram à escravidão e proibiram de comercializar com os cristãos.
Não é de estranhar, portanto, que muitos judeus sefarditas tenham aberto as portas das cidades para facilitar o avanço das tropas islâmicas e se colocado às ordens dos invasores.
A invasão moura da Península Ibérica foi longa na duração e rápida na conquista. Durante mais de vinte anos, o avanço mouro enfrentou pouca resistência e só foi barrado pelos francos, o povo cristão que habitava o território francês, a menos de trezentos quilômetros de onde hoje fica Paris.
Os mouros precisaram de menos de uma década para dominar completamente a Península que chamaram de “al-Andalus” e que permaneceria sob seu controle durante quase oito séculos.
E o que significava “ al-Andulus” ? A resposta é que não se sabe ao certo. A denominação deu o ar da graça dela, pela primeira vez, em 716, em uma moeda árabe de nome dinar, na qual cunharam de um lado e em latim Hispania e do outro al-Andalus.
Dizem os doutos que a palavra al-Andalus pode estar relacionada com Vandalicia, o vocábulo usado pelo povo vândalo para denominar a Bética romana tomada por ele no século V. Há quem ache, diferentemente, que a palavra seria uma arabização de landa-hlauts, outra denominação da mesma Bética, só que na língua goda, aquela do povo bárbaro que dominou a Lusitânia. E quem acredite que al-Andalus poderia ser interpretada como uma tradução infiel para a ilha perdida de Atlântida.
O que interessa no escopo desse post é que a Lusitânia romana, a região ocidental da Península Ibérica que foi chamada pelos árabes de al-Gharb al-Andalus, significando o Ocidente do al-Andalus, era o atual território português.
Esse Portugal mouro, esse Gharb al-Andalus - que não se limitava apenas à atual região do Algarve como o seu apelido árabe al-Gharb leva a crer - foi uma região periférica em relação à próspera vida econômica, social e cultural da província que depois se tornou um emirado e que por fim chegou a ser o califado de al-Andalus, na região da atual Andaluzia.
Nos séculos seguintes, os muçulmanos foram os donos da península e as conquistas territoriais e militares resultaram em influência cultural. A invasão dos mouros deu origem a uma sociedade muito heterogênea na qual os judeus sefarditas também deixaram profundas digitais, uma delas na música. Uma das mais belas canções sefarditas em ladino, a língua híbrida por eles falada, é o acalanto Durme, durme, querido:
O processo da reconquista cristã prolongou-se durante todo o período da Idade Média. Em 1139, encorajado por uma brilhante vitória contra os árabes em Ourique, Afonso Henriques declarou-se liberto das rédeas de Castela e um Portugal independente surgiu sob a sua própria coroa.
A partir dessa data, Portugal começou a desenvolver uma identidade nacional distinta daquela dos galegos, leoneses, catalães, castelhanos e outros reinos ibéricos, que mais tarde se uniram para se tornar a Espanha.
Em meados do século XIII, Afonso III conquistou Faro, a atual capital do Algarve, que era então o último reduto dos árabes. Com a sua queda, em 1249, os cinco séculos de domínio árabe que tanto enriqueceram Portugal, tiveram um ponto final.
Mas continuaram a existir várias comunidades mouras, sobretudo no Algarve e no Alentejo. Como o seu nível cultural era superior ao dos nativos, foi grande o influxo da cultura muçulmana na vida portuguesa.
Finalmente, após oitocentos anos de tentativas, no início da chamada Idade Moderna, durante o reinado dos reis católicos Fernando e Isabel, os muçulmanos foram expulsos também das terras que viriam a ser a Espanha.
Francisco Pradilla - A Rendição de Granada

A vitória final sobre os invasores muçulmanos que aconteceu a 2 de janeiro de 1491 quando da Tomada de Granada foi pintada pelo artista Francisco Pradilla, no século XIX, num quadro onde se pode ver Boabdil, ou Maomé XII, o último sultão de Granada, entregando as chaves da cidade aos reis Fernando e Isabel.

Note que no mesmo ano da rendição da Granada, um genovês de nome Cristóvão Colombo chegou à América, patrocinado pelos mesmos reis e mudou a história do mundo.
Este conjunto de acontecimentos históricos teve uma importância imensa pois a unificação e a expansão dos reinos português e espanhol resultou na era dos descobrimentos, do colonialismo e do apogeu da civilização ocidental.
A mesma civilização ocidental que criou tudo isso também formou o espírito crítico que permitiu ver essa narrativa gloriosa, desde o início, com todos os seus atos de heroísmo e crueldade, acertos e erros, injustiças e inovações, generosidade e abusos de lado a lado.
A gente se encanta ao ler o poema El Cantar de Mio Cid ou ao escutar Le Cid, a ópera de Massenet em homenagem a Rodrigo Díaz de Vivar, chamado por seus inimigos de El Cid – do árabe Sidi para senhor - e de El Campeador por seus pares, sempre com igual respeito por sua valentia.
Diz a lenda que Jimena, a mulher de Rodrigo, ferido de morte defendendo sua cidade de Valência, mandou amarrar o corpo do seu homem ao cavalo e uma espada à sua mão e o colocou à frente de suas tropas no campo de batalha. Ao ver El Cid – que julgavam morto e sepultado - em cima do seu cavalo os árabes fugiram e, desorganizados, foram facilmente perseguidos e derrotados pelo exército de Don Rodrigo de Castella, o herói nacional dos espanhóis.
Alguns de vocês se lembrarão desta cena no final do filme de Anthony Mann:
               Mas não se pode admirar menos Ṣalaḥ ad-Din Yusuf ibn Ayyub, o Saladino, que apesar de ter sido a nêmesis dos cruzados, conquistou o respeito de muitos deles, incluído Ricardo Coração de Leão. Segundo os cronistas cristãos de seu tempo, longe de se tornar uma figura odiada na Europa, o sultão mouro, além de ser adorado por seu povo, foi um exemplo dos princípios da cavalaria medieval para os cristãos.
O personagem Saladino de Sir Walter Scott, um guerreiro refinado e cavalheiresco, fictício mas totalmente plausível pois fundamentado em fatos históricos, merece ser lido nas páginas do seu livro Talismã e, bem assim, o líder histórico Ṣalaḥ ad-Din tem que ser descoberto nos capítulos do Livro de Saladino, da lavra do escritor paquistanês Tariq Ali, que nos remete ao universo da cultura muçulmana e nos apresenta as Cruzadas não como uma aventura de cavaleiros em armaduras reluzentes, lutando para civilizar povos bárbaros e libertar Jerusalém do julgo muçulmano, mas pela perspectiva islâmica e, mais interessante ainda, pela do narrador da “conversa”, o escriba judeu Ibn Yakub, cuja própria vida é contada nos intervalos do drama principal.
Moral das leituras? “A moeda tem duas faces”, como repetem os portugueses.
Os vestígios materiais da longa e próspera permanência árabe em Portugal não são tão notórios quanto deveriam, principalmente porque a política cristã de reconquista foi a de terra arrasada.
Cada localidade retomada dos árabes era destruída e tanto os objetos de arte como as construções do inimigo infiel eram queimados em fogueiras que ardiam durante dias. Mas restaram alguns elementos reveladores deste período da vida portuguesa, principalmente nas ruínas das muralhas e dos castelos, bem como no traçado de ruelas e becos de várias cidades, notadamente do sul do país, já que a retomada cristã forçou gradualmente os árabes para o sul.
Mas não se pode negar que o período islâmico em Portugal deixou poucos monumentos importantes enquanto que, na Andaluzia, os árabes produziram tesouros arquitetônicos como a Giralda de Sevilha, a Grande Mesquita de Córdoba e o Palácio da Alhambra em Granada.
Em Portugal, na fronteira sul da Europa com o mundo muçulmano, os governantes árabes investiram pouco nas construções grandiosas. Assim, o legado artístico e arquitetônico islâmico em Portugal limita-se a ruínas de fortificações, muitas delas posteriormente alteradas.
Das artes da construção militar e civil nada chegou intacto até o nosso tempo mas o Castelo de Silves, o Castelo dos Mouros em Sintra e a Igreja Matriz de Mértola são algumas das relíquias deixadas pelas gerações de ibéricos e mouros e judeus que conviveram durante mais de quinhentos anos.
O Palácio Nacional de Sintra apenas ecoa o design mouro nas suas alvas torres, construído que foi no século XV. Da mesma forma, no Palácio da Pena edificado no século XVI, a influência árabe também se verifica no revestimento de paredes e chãos e nos mosaicos, com técnicas específicas e uma linda paleta de cores importadas da Espanha mourisca.

Montagem Moacir Pimentel

Cidades como Coimbra, Lisboa, Faro, Évora, Mértola e outras foram islamizadas e em todas elas ainda se encontram vestígios mouros nos muros, portas, fontes, jardins e mesquitas.É notório, nos últimos anos, um incremento de interesse pelo legado árabe de Portugal dessas cidades tanto que em Lisboa, por exemplo, tem-se investido na restauração de parte das muralhas da cidade moura.
É preciso salientar que em todos os recantos da t’rrinha os lusitanos, mouros e sefarditas conviveram nas ruas tortas e estreitas e viveram em casas quase desprovidas de janelas em bairros separados. Sob o domínio islâmico em Portugal as medinas, as judiarias e os bairros cristãos e moçárabes eram vizinhos.
As três mais populosas cidades muçulmanas lusitanas foram, pela ordem, Silves, Lisboa e Mértola, cujo museu abriga uma estupenda coleção de arte árabe.
No entanto é Silves, conhecida como Shalb enquanto era a capital árabe do Algarve e competia com Cordoba para ser o centro intelectual do mundo islâmico ocidental, a cidade guardiã do mais rico legado mouro. O místico Ibn Qasi, o rei- poeta de Sevilha al-Mutamid e o poeta Ibn'Ammar nasceram todos dentro de suas muralhas.
Devastada quando foi reconquistada, a cidade nunca mais atingiu o tamanho ou a glória anteriores e hoje é uma terra modesta, cuja economia depende fortemente do turismo.
Apenas o castelo árabe, que além de Palácio das Varandas era conhecido como a Alcazaba - de al-Qasabah, significando fortaleza – permanece altaneiro nas duas primeiras fotos da montagem acima, com suas paredes de arenito vermelho e as torres quadradas, onde a corte real muçulmana se reunia para concertos, leituras de poesia e festas, segundo o poeta Ibn’Ammar
“Saúda, por mim, Abu Bakr,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande quanto a minha.
Saúda o Palácio das Varandas,
da parte de quem nunca o esqueceu,
morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
Moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
Ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava…
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.
Tangia-me o alaúde
e eis que eu estremecia
como se estivesse ouvindo
tendões de colos cortados.
Mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.”

Pois é. Aparentemente, os mulçumanos de antigamente, com muita sensatez, não estavam nem aí para aquelas quarenta virgens esperando por eles no além à beira daquele rio de mel. E gozavam das delícias do paraíso aqui mesmo na Terra, em solo lusitano.
Desse passado ameno sobreviveram ainda, em precárias condições, a cisterna abobadada que abastecia d’água os mouros e um dos portões da medina de Silves. Sua Catedral ainda retém tênues vestígios da mesquita sobre a qual foi construída.
Na cidade de Mértola, no Algarve, a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, também conhecida como Igreja Matriz – veja na última foto da montagem acima - é o único exemplar de arquitetura religiosa islâmica remanescente em Portugal. Ela foi construída como mesquita no século XII e foi transformada em Igreja após a Reconquista, no século XIII.
Do primitivo templo islâmico são testemunhas as quatro portas de estilo árabe, o mirabe indicando a direção de Meca, as delgadas colunas e os minaretes que mais do que qualquer outro elemento evidenciam que a construção era uma vez uma mesquita.
Em Mértola tem sido feito um valente trabalho de restauração desde o bairro mouro até a necrópole islâmica. Recentes escavações também descobriram uma rua de paralelepípedos e fundações de praí uma dúzia de casas muçulmanas, debaixo de antigos conventos e das muralhas defensivas da antiga cidade costeira de Tavira.
Nesse património árabe são notórias certas características arquitetônicas como a abóbada, o arco em ferradura e a ornamentação que, sem dúvida, foi um dos aspetos que mais contribuiu para a unificação e fama da arte islâmica.
Ainda que tenham sido utilizados na Península Ibérica antes dos mouros, pela originalidade das suas estruturas e dos seus motivos ornamentais, tais elementos deram origem à uma paisagem portuguesa tipicamente muçulmana e passaram a ser as imagens mais icônicas da ocupação mourisca na t’rrinha.
As arcadas com colunas encimadas por capitéis, por vezes ricamente trabalhadas, foram soluções estruturais muito utilizadas, porém o arco em ferradura, de influência visigótica, é a própria imagem de marca da civilização muçulmana em Portugal.
Embora os arcos em ferradura apareçam do Norte do país até o Algarve, poucos deles resistiram intactos até aos dias de hoje. Em bom estado de conservação lembro-me apenas daquele do Castelo de Silves – veja a segunda foto da montagem - dos que adornam as portas da Vila de Faro e da Medina de Elvas, e daqueles que embelezam as quatro portas da Mesquita de Mértola.

É preciso não confundir a arte islâmica unida à arquitetura e baseada na tradição clássica das artes bizantina e persa - desenvolvida em Portugal entre 712 e 1249 – com a arte neo-árabe, mais contemporânea, feita no final do século XIX com a intenção de recriar com luxo e exotismo a arquitetura muçulmana.
É o caso da Praça de Touros de Lisboa e do maravilhoso Salão Árabe azulejado do Palácio da Bolsa no Porto.

imagem Wikimedia Commons

Diferentemente da influência moura na Andaluzia espanhola tão marcante na arquitetura - fontes, jardins internos e salões com paredes decoradas por poemas escritos em árabe - em Portugal a arte árabe e moçárabe é sobretudo móvel.
Nela os arabescos geométricos estilizados são o principal elemento decorativo, embora apareçam também, aqui e ali, representações vegetais e animais nas peças de cerâmica utilitária.
A grande profusão de superfícies decoradas e o preenchimento decorativo de absolutamente todos os espaços tem a peculiar denominação de “horror do vazio”.
A repetição de motivos – geométricos, cosmológicos, de origem vegetal - as belíssimas caligrafias e a combinação de diversos materiais e texturas criam um efeito tridimensional que confere aos edifícios uma certa aura de mistério e harmonia, para a qual contribuem igualmente a luz e a presença da água.
A rejeição de qualquer imagem figurativa que é, como sabemos, outra característica da arte islâmica deve-se ao repúdio que os muçulmanos têm pela idolatria, ou seja, a veneração de imagens que simbolizem seres divinos.
Uma tradição decorativa árabe que tem sofrido para se tornar parte da moderna identidade portuguêsa é a dos azulejos. A palavra vem do árabe al-zulayj, significando pedra polida.
Nas paredes de casas, igrejas, mansões, estações de trem e metrô, restaurantes, museus e em inúmeras outras estruturas, lá estão os onipresentes azulejos acentuando a beleza de cada edifício que adornam.
As lindas paredes de azulejos que encontramos em cada cidade e aldeia da t’rrinha harmonizam-se com todos os Portugais: do mouro ao manuelino e dele ao barroco, este último desenvolvido em grande parte por Francisco Arruda, um admirador da arte árabe e um dos melhores arquitetos portugueses no período posterior aos Descobrimentos.
Durante o século XVIII, a idade de ouro dos azulejos, a influência holandesa foi marcante e introduziu novidades pictóricas tais como animais, castelos, navios, flores, pessoas e cenas religiosa e históricas monocromáticas: azul sobre branco.

fotografia Moacir Pimentel
Mas são os primeiros azulejos, de inspiração mourisca, estilo geométrico e padrões coloridos, que mostram mais claramente os laços com a arte árabe.
Fora de Lisboa, azulejos de padrões intrincados embelezam as paredes e pisos do Palácio Nacional e do Castelo da Pena em Sintra, a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo nas Caldas da Rainha, a Igreja da Misericórdia em Vila do Conde e muitas outras estruturas enriquecidas pela excelente arte árabe.
Mas é no sul, especialmente no belo Algarve, nas suas características geográficas, nos seus campos de oliveiras, sobreiros, alfarrobeiras e cítricos, nas suas videiras e pomares de romãs e amendoeiras, nos seus castelos, nos portões e muros e telhados de suas brancas habitações e nas cidades de nomes estrangeiros, onde se escuta mais alto os ecos desse passado com imenso sotaque mouro e se vislumbra mais claramente a presença árabe.
Para se mergulhar na paisagem moura de Portugal, mais do que passear pela literatura ou provar a pastelaria ou se encantar com a tecelagem de tapetes lusitanos islamizados, há que se estar no Algarve diante dos milhões de chaminés que adornam os lares do Sul...
Cones, cubos, prismas, cilindros, pirâmides, balões, finas colunas, altas estruturas, brancas, lisas, coloridas e rendilhadas, todas essas descrições se ajustam às chaminés algarvias. Se há uma coisa que caracteriza o sul ensolarado de Portugal, são as suas chaminés ornamentais que nos trazem à mente os minaretes e fazem com que as casas brancas e brilhantes cochilando à sombra perfumada de pomares, debaixo de preguiçosos telhados vermelhos de terracota, pareçam mesquitas em miniatura.

fotografia Moacir Pimentel
Mas atenção! A arquitetura tradicional da região algarvia tem uma forte influência árabe sim, no cal das habitações, nos painéis de azulejos das fachadas, nos telhados, nos terraços chamados de açoteias, que servem para secar as frutas tradicionais, para recolher água e, é claro, como um espaço relaxante onde as pessoas se sentam e apreciam a vista durante as quentes noites de verão. Mas as charmosas chaminés só começaram a aparecer no Algarve no século XVII, muito tempo depois dos mouros terem partido.
Não foram os mouros, ao contrário do que se pensa,que conceberam as mais belas chaminés de Portugal para suas habitações simples, lineares e abobadadas. A arquitetura árabe em Portugal nem sequer tinha chaminés.
Loulé, famosa por seu mercado e ciganos e muralhas do século XII, é talvez a cidade do Algarve cujas casas são mais enfeitadas por terraços atraentes e chaminés coloridas. Da mesma forma, nos centros históricos de Olhão e Tavira, ambas arquitetadas em estilo kasbah com ruas estreitas, as chaminés nos fazem acreditar estar em solo africano e não europeu.
É a mesma falsa sensação que se tem na Alfama, o velho bairro lisboeta que nos dá testemunho da convivência pacífica e da inovação promovida pela mistura das culturas árabe e ibérica.
Apesar de ter sido fundada pelos fenícios e mais tarde embelezada por romanos e visigodos, os árabes batizaram esta esquina de Lisboa como al-Hammah - fonte de água quente.
Supõe-se que na Alfama existissem os banhos públicos, que funcionavam não só como espaços de higiene, mas também de convívio. Os banhos islâmicos apresentavam uma estrutura semelhante à dos banhos romanos, com várias salas com piscinas de água fria, morna e quente.
Apesar de nada disso ter sobrevivido em meio ao labirinto das ruas estreitas da Alfama, uma aura muçulmana ainda perdura...
Mas onde exatamente?
Não se sabe. Talvez nos becos e escadarias estreitas, nos tapetes dependurados nas janelas, no cheiro de maresia e de jasmim ou das trepadeiras em flor nos vasos dos pátios, quem sabe na falta de espaço?
O fato é que a ambiência da Alfama e seus habitantes parecem ter mais em comum com o Marrocos, por exemplo, do que com uma capital europeia.

Portugal tem mais belas mourarias que merecem leitura, mas elas ficam para outra conversa.