-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

30/08/2018

Quarta feira

imagem kisspng


Francisco Bendl
Quarta-feira, 1º de agosto de 2018.
Mês que sempre esteve envolto em expectativas e tragédias para o brasileiro, além de longo e sem feriado algum.
O dia amanheceu radiante.
Apesar do sol faz frio. Neste momento, 5º Celsius às 7h!
Os dias de inverno são muito belos, nítidos, claros, assim como deveria ser a vida do brasileiro, em razão de nascer e viver em um país que é sinônimo de paraíso!
No entanto, a realidade faz de nossas existências, nesta nação, que se tornem geladas, frias, pois queremos estar na cama e nos esquentando com bons cobertores, protegidos em nossos quartos por mais simples e modestos que sejam.
Não é possível, o dever nos chama.
Trabalho, compromisso, obrigação, cuidados para que não sejamos vítimas de assaltos, muita atenção no trânsito, alerta permanente quanto ao humor do chefe, muita paciência.
Exigências que são excessivas, convenhamos, praticamente não nos restando qualquer opção para que relaxemos deste estado de prontidão constante, sobre o que poderá acontecer conosco durante um dos dias de agosto!
Devemos estar preparados para enfrentar trinta dias que estão à espreita de algum erro nosso, que vacilemos, que não consideramos as probabilidades.
E ouço a abertura da Ópera Brigada Ligeira, de Franz von Suppé:
E, de modo que eu me prepare melhor para sobreviver ao agosto – mês de cachorro louco, como se dizia na minha época -, também ouvi, de Rossini, uma parte da ópera Guilherme Tell, um herói suíço, aquele arqueiro que precisa acertar a maçã na cabeça do seu filho:
Impregnado pela música dessas duas canções, encontro-me em condições de elaborar a minha “agenda” para esses trinta e um dias que terei pela frente, haja vista eu me sentir vigoroso, destemido, preparado!
Penso daqui, penso dali, repenso, paro.
Imagino outro modo de viver o mês:
Penso daqui, penso dali, repenso, paro... que bobagem é esta minha, de um velho aposentado ter agenda??!!
E que problemas terei de enfrentar, se apenas fico em casa?!
O que poderá me acontecer, se as minhas horas na maior parte do dia são consumidas em frente ao micro?
Dia desses me vi escrevendo uma receita de cueca virada... (brinco com as atendentes das padarias quando peço “ceroula do avesso”)!!!
Desfaço-me mentalmente das músicas que me deixaram com o espírito beligerante, atiçado, pronto para a briga!
A minha vida é só paz, logo, agosto será rigorosamente igual.
Ouço, agora, de Richard Rodgers, a maviosa e belíssima canção Edelweiss, com a não menos extraordinária orquestra de André Rieu:
Se não tenho agenda porque desnecessário, projeto os meus dias com relação às contas do mês:
Água, luz, telefone, Internet, TV, aluguel, farmácia, supermercado, combustível, padaria, frutas, legumes, bebidas, compras para os netos, cartão de crédito, empréstimo bancário, uma que outra emergência ou gasto sem previsão, além de eu ter de ser como um exímio espadachim porque o salário é pago com atraso pelo governo estadual!
Como?!
Escrevi que a minha vida é só paz??!!
De que maneira vou dar conta desses pagamentos sem dinheiro??!!
Agosto se tornou um suspense terrível!!!
Nos primeiros quinze dias:
A última quinzena, então:
E depois são contas inadiáveis, improrrogáveis, que devo dar um jeito.
Preocupações à parte, haja vista que o problema sem solução, solucionado está, volto a ter o meu espírito tranquilo, calmo, sereno.
O coração velho de guerra já pela metade não pode estar se aventurando com grandes emoções, precisa ser preservado, caso eu queira viver mais algumas horas!
Em consequência, o suspense deixado de lado... me vem à mente o país, o povo, e meu coração palpita de novo, e bate mais forte porque estamos em ano de eleições!
Perdi a conta de quantas vezes votei na minha vida.
Lamentavelmente meus sufrágios não contribuíram para que este Brasil melhorasse, logo, acho que novamente votar não irá alterar o quadro atual, mas há sempre a esperança que agora vai.
Bom, se pensar no mês de agosto não me fez bem, sobre a crise brasileira muito menos.
Legal seria sair do país, residir na Escandinávia, frio por frio...
Dar adeus aos problemas, às dificuldades, à política nacional.
O filme Sayonara, Japonese Goodbye, lançado em 1957, estrelando Marlon Brando, tem como trilha sonora a música ideal para esta despedida:
Epa, péra lá!
Não vou poder levar a minha família. Filhos, netos, irmão, eles têm as suas vidas no Brasil. Vai ser pior a emenda que o soneto!
Viagem descartada.
Volto para o Brasil, à minha casa, e meus pensamentos fixados em agosto e suas tragédias:
Getúlio se suicidou;
Jânio renunciou;
Juscelino morreu;
Início da Primeira Guerra Mundial;
Morte de Elvis Presley;
Morte da princesa Diana;
Lançamento das duas bombas atômicas, em Hiroshima e Nagasáki;
Bah, mas estou sendo ridículo em estar superestimando meus problemas, definitivamente eu não os tenho!
O negócio é deixar a vida me levar:
Agora, sempre com determinação, com fé, e se a felicidade demorar para chegar, um dia ela vem, tá escrito na palma da mão:
Passa do meio dia, vou almoçar.
A Marli fez uma carne assada com batatas, arroz, feijão, salada de alface, tomate e ovo cozido, mais uma omelete de espinafre.
Mesmo quem esteja sem fome, basta olhar na mesa os alimentos postados que devorará a comida!
Eu estou esfaimado, logo...
Precisei sair, após a lauta refeição.
Peguei o carro, liguei o ar-condicionado no quente, 25º Celsius, e sem atropelos fui à farmácia.
Aproveitei para lavar o carro, e iniciar um novo mês com o automóvel limpo, pois choveu muito na semana passada.
O rodar suave do veículo, sem a necessidade de se fazer marchas porque automático, a lataria brilhando, um trajeto percorrido mesmo pequeno, mas agradável, me fizeram voltar para casa animado.
Curiosamente, eu queria a minha rotina.
Sentar-me em frente ao micro e escrever, me distrair, anotar as observações do dia, registrá-las.
O meu dia primeiro de agosto está no fim. Foi muito bom. Nada diferente do que estou acostumado a fazer nos últimos anos.
Como será a quinta-feira?
Ora, ora... fantástica!
Imaginemos que será um balão mágico, que poderemos viajar para onde queremos, levando nossos amigos para passear e nos divertir:


27/08/2018

Jardim dos esquecidos



Ana Nunes
A velhice não vem só
Nas rugas
Nem nas passadas doloridas
Ou no sono interrompido
Nem na insônia persistente
No corpo mais pesado
Ou nos desejos impossíveis
Ela fica nos jardins dos envelhecidos
Nas folhas secas e mal cuidadas
Nas flores murchas debruçadas no concreto
No matinho delicado entre as pedras
E nas ervas indesejadas na grama crescida
Nas janelas demoradas no abrir
E no sol acordando ares desolados
No musgo desbotado que ameaça paredes brancas
E a tristeza do inevitável
Atravessa as grades, o portão
E o muro invisível
Invade a calçada
E toca o passante descuidado
E um pouco desse triste
Acompanha a alma pelo dia


E o velho lá dentro
Deitado
Tem olhos embaçados
E coração carcomido
E não conhece mais o seu jardim
E nem sabe da primavera


23/08/2018

Os retratos dos cubistas

Juan Gris - Portrait de Pablo Picasso (1912)

Moacir Pimentel
No retrato que abre o post o pintor Juan Gris pintou seu compatriota e vizinho, Pablo Picasso, bem vestido, de paleta pronta para a guerra. O toureiro parece maior do que a vida, de frente e de perfil, ocupando a maior parte do espaço com os tons de azul, cinza e marrom dos prismas e planos e formas que, ao mesmo tempo, fraturam a sua imagem e a colocam em movimento, só que inteiramente de acordo com a missão cubista, na divergência com a representação e no esforço para capturar o dinamismo da vida moderna.
Uma das coisas que na Montmartre da primeira década do século XX turbinou o desenvolvimento dessa nova e estranha linguagem cubista foi a seguinte questão: Por que fazer pinturas? Para que continuar pintando retratos quando a fotografia estava se desenvolvendo furiosamente e, portanto, já ficara claro que seu domínio seria a captura da realidade? Os artistas passaram a se questionar como é que Dona Arte continuaria viva e relevante em um mundo onde as imagens visuais estavam se tornando mais acessíveis e mais fáceis de replicar?
A resposta foi simples: as ferramentas da arte das tintas - o plano, a linha, a cor e a luz - não tinham necessariamente que ser colocados a serviço da natureza. O mundo exterior passou a dar origem à expressão da identidade do criador de arte. Essa rejeição da imitação da vida e do mundo objetivos abriu oportunidades incríveis para os artistas. É claro que essa virada foi um processo lento que ocorreu de várias maneiras e em várias etapas.
Mais lá atrás os impressionistas já haviam dedicado um capítulo à luz e à fixação de impressões fugazes. O pontilhismo de Seurat, por sua objetividade construtiva, também de algum modo preparou o terreno para a mudança futura. A libertação das cores foi iniciada por van Gogh e regida por Matisse enquanto que Cézanne e os fauvistas abriram caminho para uma arte mais construída e menos sujeita à imitação do mundo exterior.
Mas nada disso tocou no cerne da questão que deflagrou a reviravolta estética promovida através desse tão falado cubismo que revolucionou a forma graças a Pablo Picasso, Georges Braque e Juan Gris e tantos outros pintores. O movimento cubista surgiu da necessidade de definir e representar uma nova realidade moderna, complexa e ambígua, moldada pela especulação filosófica, movida pela Relatividade, influenciada pelas diversidades e interações culturais que ocorriam entre o o primitivo e o industrializado, o Oriente e o Ocidente e mexida pelas novas tecnologias e invenções e descobertas científicas.
Cada uma dessas novidades trouxe consigo uma maneira nova de ver as coisas e o intercâmbio que ocorreu entre tantas visões obscureceu a percepção da verdade, virou a experiência da realidade de ponta a cabeça, tornou as perspectivas mutantes, mudou radicalmente o ritmo da vida e a forma como a sociedade percebia a natureza das coisas. O que todas essas novidades sugeriam era que vivemos em um mundo onde a aparência dos objetos está em fluxo constante, dependendo do ponto de vista a partir do qual os enxergamos.
Foi ali, na comunidade artística de Montmartre, que o escultor lituano judeu Chaim Jacob Lipschitz, mais conhecido como Jacques Lipschitz assim definiu o cubismo:
“É como estar em um certo ponto de uma montanha e olhar ao redor. Se depois você subir lá no alto, as coisas parecerão diferentes e se você descer, novamente elas ficarão diferentes. É um ponto de vista”
Tudo tornara-se relativo, o tempo e o espaço tinham se casado e entendeu-se que dois observadores nem sempre vêem exatamente o mesmo e por aí se ia. No passado a vida e a pintura tinham sido estáticas, mas a ciência e a tecnologia passaram a obrigar o homem a experimentar tempo, movimento e espaço de forma mais dinâmica. Para os pintores, o dilema era específico: como representar o fluxo de tempo, o movimento e o espaço mutante em um meio que se presta à mera captura do momento fugaz, como a pintura?
O cubismo nasceu como uma resposta a esta situação e não é por acaso que o movimento foi um fenômeno parisiense, considerando o legado artístico da cidade e sua capacidade magnética de atrair os artistas e escritores mais talentosos de todo o mundo. Paris ofereceu-lhes ótimos museus de arte, uma tradição de liberdade moral e artística, e a boêmia artística de Montmartre na qual podiam viver e beber de forma barata à margem da sociedade burguesa. E deu no que deu: o cubismo explodiu!
Pablo Picasso - Jeune Fille à la Mandoline (Fanny Tellier) - (1910)

Essa Garota com um Bandolim, além de ser uma das mais belas, líricas e traduzíveis de todas as pinturas cubistas, dá um testemunho importante da sua época e das intenções estéticas de Picasso que embora com tintas cada vez mais abstratas ainda estava, em 1910, profundamente condicionado pela materialidade circundante e pela aparência física de seus temas.
A tela ilustra, de forma didática, um Picasso lutando com o desejo de dar às formas um tratamento volumétrico e a necessidade de tornar as coisas planas. Compare, por exemplo e por favor, o cuidado quase escultural que os seios e os braços dessa moça receberam do artista versus a forma plana como foi pintada a dupla cabeça. Pois é. O espanhol pintava dividido. Acontece que o cubismo não é fácil. Então por que deveria ter sido para os pintores cubistas?
Uma coisa é gostar ou não da arte moderna, “ver algo” ou “não ver nada” nela e tudo bem. E outra coisa é esse cubismo prepotente nos dizendo que o mundo é profundamente diferente da forma como nós achamos que ele é. Há uma diferença fundamental entre o cubismo e outros estilos modernistas posteriores: ele nunca foi um estilo mas sim um interrogatório (rsrs) Pense em uma prova de matemática difícil na entrada da arte moderna!
Nos maiores museus de arte do vasto mundo, muita gente boa passa direto pelas primeiras cubices analíticas legítimas, pelas tintas calmas dessas telas entre as quais surgem espaços de lona branca que ficaram cor de café com leite com o tempo, sem lhes dar a menor bola, porque há vários outros estilos modernos muito mais chamativos. E a dificuldade de “tradução” do cubismo não é do tipo que recua com o tempo e/ou a familiaridade.
Acontece que nas paredes dos museus as primeiras pinturas cubistas parecem pálidas, inflexíveis e herméticas em meio a modernices bem mais simpáticas! Nós podemos desfrutar ou, pelo menos, ser provocados por outras artes modernas, com muito mais facilidade. Podemos decidir se gostamos ou não dessa ou daquela arte – das cores do abstracionismo, do simbolismo, do surrealimo, do expressionismo - sem precisar de outro GPS além da intuição.
Hoje a arte é construída a partir de flashes e pedaços da vida. O cubismo, no entanto, os deletou. A maioria das artes confirma a nossa noção de quem somos e de como vivemos. O idioma da arte contemporânea é democrático e o seu vocabulário é o da nossa experiência cotidiana. Os do cubismo também são assim, só que de uma maneira muito mais ameaçadora.
O Cubismo Analítico, ao promover a decomposição, a fragmentação e a geometrização das formas, sugeriu que nossa existência real escapava às imagens e narrativas que vemos constantemente, que não somos como nos vemos no espelho, como é o caso do retrato de um colecionador de arte, de nome Wilhelm Uhde, pintado por Picasso e dessa mulher estranha, de autoria de Braque.
Pablo Picasso - Portrait de Wilhelm Uhde (1910) / Georges Braque - Portrait d'une femme (1910)

A ideia principal do movimento foi fragmentar a realidade, mostrando, assim, que há outras maneiras de perceber e interpretar a real. É por isso que o cubismo permanece não domesticado, enquanto todas as outras vanguardas puderam ser transformadas em decoração ou romance.
Paradoxalmente o cubismo é difícil, não porque seja abstrato, mas porque é descritivo. Os cubistas não eram pintores abstratos nem o cubismo jamais pretendeu ser bonito. Queria ser verdadeiro, levar a sério o objetivo declarado de todo pintor desde o Renascimento, qual seja o de descrever o mundo como ele é. No entanto, ao tentar honestamente desenhar as experiências mais humildes e cotidianas, como olhar para uma garrafa, um cachimbo e um jornal sobre uma mesa, ou para um amigo querido ou para a mulher amada sentada nua em uma poltrona, os cubistas descobriram e mostraram muitas complexidades.
E o resto dos mortais simplesmente espera que a arte seja amena e fácil e não um desafio cansativo que obriga seus pobres cérebros, movidos pela lei do menor esforço, a trabalhar duro ou, pelo menos, a brincar de Hercule Poirot e/ou de Miss Marple (rsrs) Só que, apesar da calmaria cromática, Pablo Picasso, mais uma vez, conseguiu roubar o show.
Por incrível que possa parecer, o cara revolucionou a arte do retrato quando pintou, em 1910, duas telas que não podem estar ausentes de nenhuma conversa cubista de respeito e/ou da lista dos melhores retratos feitos por mão humana. Mesmo enquanto o cubismo foi – e para muita gente boa continua sendo!(rsrs) - um ato de terrorismo contra os hábitos não só de pintar, mas de ver, uma guerrilha contra a beleza, o toureiro não se afastou dos temas tradicionais da sua arte, como as naturezas mortas e o retrato.
Só que, apesar de manter os fundamentos que um retrato sempre teve, a pintura do espanhol foi capaz de subvertê-los. Ainda que o mistério dos seus retratos cubistas seja eterno e mesmo que as suas representações do “eu” continuem intangíveis e indescritíveis, Picasso nos faz reviver, na arte moderna e do ponto de vista de uma imaginada quarta dimensão, as profundeza e seriedade dos retratos de Rembrandt.
A primeira das duas obras primas é o retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, o seu marchand de 1908 até 1915, uma pessoa notória, um escritor e editor de arte de origem alemã. Dizem que quando o toureiro voltou a Paris, depois daquele verão espanhol passado em Horta do Erbro trazendo a tiracolo quase uma centena de telas nas quais retalhara a aldeia e a companheira, Kahnweiler comprou todas elas.
O marchand posou entre vinte e trinta vezes para esse retrato, no qual, no entanto, a imagem foi impiedosamente fraturada e o personagem foi altamente abstraído. Mas Picasso adicionou ao conjunto atributos para direcionar o olho e focar a mente: mechas de cabelo, um bigode, feições afiladas, um impecável nó de gravata, uma corrente de relógio de algibeira.
O fato é que, não mais preocupado em criar a ilusão de aparências verdadeiras, Picasso quebrou e recombinou as formas que viu, descrevendo Kahnweiler através de uma rede de superfícies semi-transparentes - marrons, cinzas, pretas e brancas - que se fundem com a atmosfera ao seu redor. E dessas paragens cintilantes emerge um retrato bastante tradicional de um homem distinto, sentado de frente e de perfil, com as mãos cruzadas.
Pablo Picasso - Portrait de Daniel Henry Kahnweiler (1910)

O retrato de Kahnweiler é considerado um dos melhores exemplos desta etapa do Cubismo Analítico e sintetiza o desejo de penetrar na natureza interior do objeto tridimensional representado – no caso, o dono da galeria de arte – de compreender a essência do espaço que ele ocupa, os limites nos quais se situa. Essa cena de aparência quase impenetrável foi cristalizada, foi lapidada e cada faceta foi definida para permitir-nos avaliar os volumes que se encontram na sua superfície e abaixo dela, enxergando em profundidade.
Esse Kahnweiler é um exemplo mais que perfeito da fragmentação cubista cuidadosamente planejada para nos assombrar como se fosse um fantasma impresso no espaço, uma sombra de si mesmo. À distância, pode-se distinguir a sua forma, as mãos cruzadas e o bigode afiado entre os planos cinzas que dançam soltos no tempo e no espaço. Tem mais: não sei explicar como mas à primeira vista sabemos que o modelo é bem apessoado e elegante e vaidoso.
Porém quando a gente se aproxima o cara desaparece na superfície fragmentada da tinta, deixando para trás apenas o bigode (rsrs) De repente a figura humana - o cabelo basto, as feições, o queixo, o nó da gravata, a corrente do relógio, as mãos cruzadas - que antes e de longe víamos sem dificuldades na pintura, quando olhamos novamente de perto, não está mais lá.
As formas que pareciam ser dois olhos tornam-se apenas intertextos triangulares na multiplicidade de planos inacabados que formam a composição. Essa não é uma imagem de alguém, mas uma caricatura de tudo o que foi suprimido da imagem de um homem. No lugar das cores do cabelo, roupas, sorriso, hábitos e expressões do amigo, Picasso pintou os escombros das suas percepções dele que são vislumbrados por nós e mantidos apenas por um segundo. A palavra imagem aqui talvez seja muito inapropriada. O retrato de Daniel-Henry Kahnweiler é antes uma miragem, um espectro, um enigma frio e lógico a ser resolvido.
Mas apesar dessa visão não corresponder aos fatos, não se parecer com o marchand, no entanto ele está completamente lá, sentado sozinho em uma parede de um museu de arte em Chicago, sua identidade vislumbrada com uma estranha e calorosa intimidade. Note que, a essa altura do baile, o termo “cubismo” já não é mais capaz de descrever essa pintura, pois ela não possui um diagrama geométrico, mas um desenho denso de muitas texturas.
Picasso era um homem muito físico e emocional e, portanto, o seu cubismo não foi uma tentativa de, cientificamente, explicar o mundo mas de experimentá-lo mais plenamente, de trazer os objetos ao alcance do observador em uma pintura. O Kahnweiler de Picasso é algo complicado cujos contornos nos escapam, mas cujo conteúdo intuímos. E ele é tão real e desconcertante e relativo quanto o universo que habitamos.
O segundo melhor dos retratos cubistas de Picasso, na minha modesta opinião, é o de Ambroise Vollard, um dos maiores comerciantes de arte do século XX que teve a coragem de expor as obras dos ainda desconhecidos van Gogh, Cézanne, Gauguin e Rousseau e que apoiou Picasso durante as suas fases azul e rosa, mas que balançou a cabeça, coçou a careca e se segurou diante do cubismo, demorando a divulgá-lo.
Pablo Picasso - Portrait d'Ambroise Vollard (1910)

Essa obra de arte tem características distintas da anterior: os olhos baixos, aparentemente fechados, a explosão maciça de uma cabeça calva, o nariz bulboso, a boca mal humorada, o rosto gordo e o triangulo escuro da barba são os primeiros detalhes que se encaixam nas nossas miradas por serem reconhecíveis. É assim, através de detalhes, que a mente humana, através do hábito, processa a informação visual.
Mas acima dos olhos de Vollard mora uma arquitetura doida de pedra, quebrada em pedaços cor de tijolo, uma estranheza que se multiplica em fragmentos de tinta, em planos que foram iniciados e deixados inacabados. A explicação física é grosseira e, ao fazê-la, Picasso transfigura a cabeça de Vollard em um domo de catedral, uma cúpula maciça, que impressiona. Muitos interpretam tal deformidade como uma alusão à poderosa mente do homem.
Essa visão se parece com o rosto real do marchand, mas quanto mais procuramos pela sua imagem, mais Picasso demonstra que a vida não é feita de imagens, nem de aparências, mas de relações instáveis entre o artista e o modelo, o observador e a pintura, nós e o mundo. E, no entanto, esse é um retrato de um indivíduo, cuja presença domina a pintura. Vollard tem volume e é mais real do que o seu entorno, que se desintegra à sua volta como uma mortalha brilhante preta e cinza.
Diz Dona Lenda que Picasso afirmou para sua vítima que o retrato era lisonjeiro, pois insinuava que Vollard era um membro da minúscula elite que entendia o cubismo. O enorme cérebro dele deve ter ajudado (rsrs)
Outras surpresas cubistas nos aguardam na próxima conversa...

21/08/2018

Salve o Povo da Rua*

Fotografia Eric Pouhler (Wilimedia commons)


Antonio Rocha
Certa feita vi no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, ali por trás do Largo de São Francisco, próximo àquela Igreja Católica onde se cultua a Escrava Anastácia, na Rua Uruguaiana, uma mendiga varrendo um canto da calçada e ela o fazia com tanto esmero que parecia ser a sua casa.
E de fato era, é; pelo menos espero que ainda esteja viva. Compreendi isso lendo o ótimo livro de Cristina Costa Pereira, formada em Letras pela UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, poetisa consagrada e autora de vários livros.
Logo no início Cristina explica que a “casa” dos mendigos é a rua, e no caso, nós transeuntes passamos, atravessamos, andamos pelo território que também é deles. A rua é um espaço democrático. É de todos. Todavia, cada vez mais, em função das nossas contradições sociais, tem muita gente nascendo, vivendo e morrendo nas ruas.
Me fez lembrar do grande mineiro Darcy Ribeiro que, afirmou, se não me falha a memória, em seu livro “Aos trancos e barrancos como o Brasil deu no que deu”. O ex-ministro dizia que o Brasil estava caminhando para ser uma Índia, gerações de milhares de pessoas nascendo, vivendo e morrendo nas ruas”.
De outra feita conheci um mendigo, também no Centro do Rio, perto da Praça Tiradentes. Era dentista formado, nunca exerceu a profissão, a mãe morava muito bem na Zona Sul, praia do Leme. De vez em quando ele ia lá, buscava uma camisa e voltava para a rua, o seu habitat.
Perguntei a ele por que não voltava para casa, já que sua família tinha posses e ele teve ótima educação. Desconversou e parodiou o Hino do Flamengo: “Uma vez na rua sempre na rua”. São raros os que voltam.
O livro de que falo ao leitor é uma preciosidade e revela esse “mundo, vasto mundo” (para citar o poeta Carlos Drummond de Andrade, também mineiro) das ruas.
Foi com minha tia e madrinha, irmã do meu pai, hoje falecidos que me iniciei nas artes da Umbanda, linda religião brasileira. Depois, por causa da filha, minha prima, ela virou protestante, primeiro batista e a seguir neopentecostal, de um desses pastores eletrônicos.
Curiosamente fazia um sincretismo bíblico-umbandístico. Em casa ela incorporava as entidades, eu conversava muito com os espíritos e um aprendia com os outros e vice-versa.
Ao longo de quase quinze anos, pelo menos uma vez por mês, eu dialogava com o Povo de Rua, maravilhosos Espíritos. Uma vez me contaram que entre outras entidades, existe o Caboclo Vira Mundo e quando ele atua em uma pessoa ela vai morar nas ruas, dificilmente volta para o convívio com os parentes.
Faz sentido, uma vez o Jornal do Brasil publicou que um grande artista plástico brasileiro Manoel Messias, tinha virado mendigo e morava nas ruas com a mãe idosa.
Conheci Messias e escrevo com todo respeito e dor. Ele chegou a ganhar um Prêmio na Alemanha, desenhava muito bem, era evangélico, mas foi expulso da casa onde morava pela bandidagem do subúrbio carioca. De vez em quando ele aparecia lá em casa, com a mãe, pediam para tomar banho, vestiam roupa limpa, toda amassada, almoçavam ou faziam um lanche dependendo da hora e iam embora.
Tentei conversar com ele uma vez, mas ele disse que não tinha volta. Seu destino era a rua. Então lembrei do Caboclo Vira Mundo, que ele não acreditava.
Com a reportagem no JB, o dono de um Hotel na Zona Sul condoeu-se de sua história e ofereceu para os dois trabalho e moradia, Ficariam morando no Hotel, em um pequeno quarto, próximo à ala onde ficavam os funcionários. Não ficou nem um mês e voltou para as ruas.
Tempos depois, em outra matéria de jornal, o Prefeito da Cidade, não lembro quem era, ofereceu um canto de um balcão no Cais do Porto, naqueles grandes armazéns, para ele morar lá com a mãe e recomeçarem a vida.
Também não durou um mês, quando eu cobrei a ele estas duas chances obtidas ele me disse que estranhos queriam fazer sexo com sua mãe, já idosa e eles não aceitavam. Então voltavam às ruas.
Belo dia li que a mãe tinha falecido. Meses depois foi ele quem faleceu. Que Deus o tenha. Que ele fique por lá exercendo a sua arte no Paraíso. Que eu saiba nunca fez mal a ninguém, sofreram demais, imagino que devem estar no céu.
Minha madrinha durante décadas foi minha Mãe de Santo e era “divertido”, ela dizia que a sua falange de bons Espíritos a acompanhavam até a Igreja dos Crentes. Os Seres Invisíveis depois me relatavam qual o tema da pregação do pastor e o que viam por lá.
No sepultamento da minha tia estavam presentes, entre os parentes e amigos, um pastor batista, de sua primeira igreja, um pastor neopentecostal, da atual denominação e eu, que, mentalmente, invocava, chamava e cantava os pontos de Umbanda para que os Guias  ajudassem na cerimônia...
Este livro que a Cristina da Costa Pereira escreveu me fez lembrar dessas experiências e do brilhante pensador alemão, um dos maiores do século XX, Martin Heidegger, que também andou pelos caminhos da religião. Nasceu em lar católico, depois foi seminarista preparando-se para ser padre. Largou a missa, casou com uma protestante e na maturidade interessou-se pelo Zen-Budismo e Taoísmo.
Existem explicações, estudos e interpretações sociais, políticas, econômicas, psicológicas e religiosas para as tribos que habitam as ruas. Pensando em Heidegger posso dizer que habitar é ser. Ser é habitar. Ser é um todo, habitar, morar idem. Cristina opta por apresentar os habitantes das ruas, mostrando o lado “interior” dos moradores e profissionais das calçadas, quem sabe mais adiante não fazem uma Associação de Moradores, Trabalhadores e Amigos das ruas, ou talvez um sindicato.
Penso que os nômades dos MST – Movimentos dos Sem Terras, MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e similares, pode em parte também ser explicado pelo Caboclo Vira Mundo.
Não se trata de romantizar, idealizar, utopizar essas “etnias” públicas, mas fica aqui registrada a minha leitura e opinião. O livro é bom, li de uma tacada só.
Por fim, presenciei mais uma: Uma noite um casal muito bem vestido, ele de paletó e gravata passava por uma calçada da Rua Santa Luzia, próximo à Cinelândia; de pé, uma mendiga arrumava os seus pertences para dormir. O rapaz não teve dúvidas. Largou a mão da mulher que estava ao seu lado, dirigiu-se à mendiga, abraçou e começaram a dançar e bailar na calçada, enquanto a noiva, ou namorada sorria e aplaudia.  Terminada a dança, o homem agradeceu e foi embora com a cônjuge e a mendiga felicíssima pelo presentão que recebeu.
Como uma reportagem, este livro “Povos de rua”, expõe as diversas facetas dos logradouros públicos, incluindo, também, os meninos de rua, os artistas, os boêmios, as baianas, os capoeiras e as prostitutas. Sabiamente a autora não entra em juízo de valor, como bem disse Jesus: “Não julgueis para que não sejais julgados, pois com o critério que julgardes vos julgarão também e com a medida que tiverdes medido vos medirão também”.
Nasci em lar kardecista, mas minha querida mãe fez questão que eu me batizasse na Igreja Católica, daí a citada madrinha. Aos dezesseis anos escolhi o Budismo, o pensamento e a filosofia oriental onde fui batizado como leigo e recebi o nome em língua páli, a língua que Buda falava no século VI antes de Cristo, de “Dhâmiko” (o Deleite do Darma). Por contingências da vida, fui batizado na Igreja Presbiteriana, já adulto. Bem mais tarde, recebi outro batismo do budismo japonês e o nome é “Hakuan” (Serenidade).
Mas, desde a adolescência descobri o meu lado umbandista e o meu coração é feliz assim. Digamos, sou um colecionador de nomes e batismos.  No Budismo Japonês, alguns praticantes, após a morte, recebem outro nome. Não sei se será o meu caso.
Mas os prezados amigos estão já convidados para a minha possível cerimônia de batismo no Além, mas não precisam morrer para isso, podem estar vivinhos, eu que estarei do outro lado recepcionando-os.

(*) Parte do Prefácio que escrevi ao livro “Povos de Rua”, editora Luziletras, 2003, várias fotos, 228 páginas, acrescido de matéria inédita.

18/08/2018

A Magia

O mágico Zan Zigg (poster By Strobridge Litho. Co., Cincinnati & New York -
Restoration by trialsanderrors and Morn - Wikimedia Commons)

FranciscoBendl
Certa feita, um ator famoso, inglês, que podia fazer qualquer papel pela sua diversidade e qualidade na arte de interpretar, teve problemas em uma apresentação.
A cada espetáculo, o ator perdia o seu brilhantismo, e entrar em cena era a sua via crucis.
Constatava-se que perdera a condição que lhe havia conduzido ao estrelato.
O notável profissional, antes tão admirado pelo público, havia perdido a sua magia!
Bom, para que tenhamos em mente o que seria a magia para um profissional e de qualquer segmento imaginável, talvez o poder de convencimento de sua capacidade para quem lhe assiste é fundamental e que seria, para início de conversa, um significado.
Senna, por exemplo, quando chovia, todos nós sabíamos que seria uma corrida mágica, pois acima das condições normais de um piloto por melhor que ele fosse.
A célebre e inesquecível corrida de Fórmula 1 em Donnington Park, quando na primeira volta Senna ultrapassou seis carros e se colocou em primeiro lugar foi épica, sendo considerada a volta perfeita!
Os mestres da pintura, tão magnificamente apresentados pelo Pimentel, obtêm nosso reconhecimento pela magia de suas telas.
Jogadores de futebol e seus dribles mágicos, também.
Normalmente os atletas de qualquer modalidade de esporte são mágicos, principalmente quando se apresentam individualmente na ginástica solo ou nas paralelas, a meu ver.
Da mesma forma os surfistas de ondas grandes que, além de mágicos, a coragem que possuem é de outro mundo.
Igualmente os que andam de motos em rally, com seus saltos espetaculares, inacreditáveis.
Um bom vendedor precisa ser mágico para convencer alguém a comprar seus produtos e que não precise deles!
Enfim, e para resumir de uma vez por todas, o amor é mágico... isso mesmo, quando não encontramos explicações convincentes sobre o que assistimos ou aquilo que podemos realizar, e que as demais pessoas nos elogiam pelo desempenho e porque não conseguem fazer o mesmo ou porque o cara mais feio e sem graça conquistou a guria disputada no bairro!
Mas, a magia termina um dia.
Ela não é para sempre.
O poder de encantamento tem o seu ápice e depois decresce, vai diminuído, até o seu final.
Como seguir adiante sem a magia, o hipnotismo pelo que se faz, pela excelência do que se realiza?
De que forma compensar esta condição insubstituível?
Penso, medito, dou um tempo.
Volto a pensar, meditar e, lá pelas tantas, acredito que compensar um pouco a perda da magia seria a experiência adquirida com o tempo de vida que se tem!
Diz a má¡xima popular que, o diabo sabe não porque é sábio, mas porque é velho!
Ora, a partir do momento que perdemos a magia, a beleza, o vigor físico, a plenitude intelectual porque a idade passa a tomar conta de nós, de nossos passos, intenções e vontades, a experiência seria uma espécie de antídoto contra a falta de magia.
Os conselhos, as advertências, os alertas que oferecemos aos nossos amados, em razão de que já vivemos uma situação igual ou quase semelhante, certamente tem a sua aura de diferente, de enigmático, de apreciável, de a experiência estar à disposição para quem quiser aproveitá-la, então uma magia mais calculada, sem maiores espetáculos, porém de grande utilidade!
Se o nosso nascimento é a magia da criação, o nosso desaparecimento deve igualar este fenômeno, e até para mais!
O velho deve deixar aos mais moços a sua história, o seu legado, que se consolida e comprova quando a experiência adquirida e transmitida surte o efeito desejado!
A magia é incompleta quando apenas uma pessoa desfruta dessa sensação de admiração, mas a grande mágica, a completa, aquela perfeita como foi a volta de Senna na chuva, jamais repetida, passa a ser quando o talento do mágico servir às demais pessoas, pois Senna fez escola com o seu jeito de pilotar carros de corrida!
Na razão direta que cada um de nós tem a sua magia, o seu poder de encantamento, de convencimento, quando adicionada à experiência, o ser humano antes fenomenal, atinge a condição de imprescindível!
Não só temos de saber fazer o que nos pedem ou que imaginamos com a capacidade total de nossos esforços físicos e mentais, quanto transmitir aos mais novos o que sabemos e como usamos a varinha de condão, com o professor sendo idoso, claro, pois as suas palavras serão ouvidas, as suas instruções seguidas, suas orientações acatadas e... c’est magique!
Eu que pensava não ser mais o mágico de antes para os meus filhos e principalmente para a Marli, que diz conhecer todos os meus truques, me vejo transformado em conselheiro!
Em um homem idoso, evidente, mas que mostra como se deve fazer em certas condições para se ter os resultados esperados.
Ah, o motivo desta crônica, que eu quase ia me esquecendo:
Levei um tombo na garagem de casa, caindo de costas de tal maneira, que Rolante ficou preocupada.
A cidade, pequena, sentiu tremores de terra nunca antes percebida!
Uma vez caído ao solo, claro que a Marli só ficou me olhando, pois não tem como ajudar a me erguer.
Chamou pelos BOMBEIROS, que vieram em minutos, certos que descobririam de onde partira o abalo sísmico no Vale do Paranhana!
E foram necessários trois pompiers (estou treinando o meu francês) para levantar este mágico e experiente cidadão, porém com as pernas já bambas e incapazes de sustentar o corpanzil do ilusionista!
Resultado, adquirido pela experiência:
Não há magia que passe as dores que estou sentindo no corpo inteiro!!!