-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

26/12/2020

SMS

 

fotografia Carlos Monteiro

Carlos Monteiro

Há alguns dias, passei a receber mensagens, por SMS, do meu cartão de crédito. Até aí nada de anormal, afinal todas as instituições financeiras o fazem a fim de dificultar fraudes. A questão eram as compras realizadas em um momento que estava recluso. Logo pensei: fraude! Mas, com valor tão baixo? Seria um teste? Numa leitura mais apurada percebi que não se tratava do meu cartão, pois a numeração final era completamente diferente daquela impressa em relevo naquele pequeno pedaço de mau caminho de financiamento. Um engano do sistema?  Erro no envio?

Fiz contato com a operadora para dirimir todas as dúvidas. Nenhuma fraude, nenhuma tentativa de compra com o meu dinheiro plástico. Nada. A Hipótese aventada pela atendente, é que ao cadastrar o número telefônico, o incauto cliente, se confundiu com algum número, cadastrando o meu celular no sistema. Tudo bem, acontece, quem nunca? O que fazer para desfazer tal engano? “Senhor, não temos como estar fazendo nada”... Como assim? É só descadastrar e pronto. “Senhor, impossível estar fazendo o ‘descadastramento’, não sabemos qual cliente cadastrou”. Bacana, bloqueio então o número do SMS, assim acaba a aporrinhação. Não posso, se assim o fizer passo a não receber os meus avisos. O jeito é conviver.

Mas, quem era aquela pessoa, seria nova, mais velha, homem, mulher, transgênero, travesti, alta, baixa, gorda ou magra. Quem seria aquela personagem?

Aos poucos, pelo perfil consumidor, fui traçando aquela personagem em minha mente. Aquela ou aquele comprador misterioso. As primeiras aquisições não me deram muitas pistas: Uber, “hoje em promoção no Guanabara”, espetinhos delícia do Beto, carrocinha Podrão do Zé, armarinho São Jorge. Nada, nenhuma pista. Todos os protagonistas que elucubrei fariam estas ações independente de gênero e idade. Já tinha um dado, a minha personagem, provavelmente mora na região de Pilares e é bem chegada a uma alimentação não muito saudável. Seria gulosa(o), talvez fora de forma? Quem sabe nas próximas compras alguma dica viria. E vieram: bolo da Vó Alzira, Cantinho da Picanha e Maria Lúcia sorvetes. Sentenciei: gulosa(o). Na verdade, é uma afirmativa baseada em fatos. Não necessariamente pode espelhar a verdade. Não é porque alguém compra comida em fast-food e frequenta restaurantes, pratica um dos sete pecados capitais.

Noutro dia me preocupei; minha personagem fez uma corrida no Uber às 4h de 112 reais. O que teria acontecido? Uma emergência? Era uma sexta-feira. Saiu da farra e foi deixar amigo(a)os, Namorad(a)o em casa? Fez uma pequena viagem? O que terá sido? Nesse ritmo, fui acompanhando o passo a passo dessa personagem. Pequenas compras variadas. Depósito de balas, Casa do Bom Biscoito, 99 Táxi - não devia estar satisfeita com o Uber -, Lojas Americanas... da mesma forma que acompanho as compras, também vejo o saldo diminuir. Me questiono: vai virar o mês no vermelho? Vai poder comer o churrasquinho nosso de cada dia? A cervejinha sagrada dos fins de semana? Sobrará crédito?

Hoje seus hábitos mudaram o que me levou a crer que possa ser uma mulher. Pela manhã esmalteria da Milena, Burger King, Salão da Madá. À tarde, provavelmente no shopping, foi a vez da C&A, Pelo Sim, Pelo Não, Loungerie. Batata; os hábitos estavam diferentes. Estaria feliz e se cuidando? Um novo amor, nova paixão, toda contente? O que me dizes cartão? O que comprara no grande magazine? Que roupa íntima terá adquirido... essa curiosidade que me queima por dentro; o que será, que será?

À noite, novo ‘plin’ em meu celular: Pilares Grill. Opa, um grelhado sempre cai bem... mas, que grelhado terá sido? Com quem andará a personagem? Mais um ‘plin’, provisão da 99 Táxi R$ 18,67. Hum, parece uma corrida rápida, para onde vai minha personagem. Vinte minutos depois, mais um ‘plin’: 99 Táxi R$ 17,20. Opa, economizou. Foi por caminhos mais curtos, talvez.

Alta madrugada, acordo com o ‘plin’ do celular. Atordoado pela sonolência e lá estava, mais uma compra. “Compra no estabelecimento 52728963-87”. Uhuuu!

Entendedores entenderão. Minha personagem foi feliz esta noite...

Ou não. Oh dúvida cruel!

 

14/12/2020

A sombra da bailarina

 

Aquarela Ana Nunes

Ana Nunes

Sempre me perguntei, principalmente nesses tempos bulímicos onde o que importa é a barriga tanquinho, a figurinha esquálida, se o homem aprecia mesmo sua presa gordinha, roliça de carnes para segurar e delícias para sondar.
Tive dúvidas. Tive pulgas atrás da orelha. E resolvi desenhar mulheres rechonchudas. Aí me vieram ideias de bailarinas. Porque conheço uma bailarina que apesar do tempo e das tristezas da vida lhe colocarem um peso a mais, continua sua leveza nas aulas de balé para suas alunas. Fico maravilhada!

E despindo-as, as gordinhas, vi que elas são belas! Sem os panos que as amarram e deformam, fazendo dobras e rolinhos e estufados, elas trazem linhas apuradas! Diferentes e delicadas.

Aí, porque o processo criativo é um não acabar nunca na sua vontade própria e invasiva, pensei nas sombras das bailarinas. Até porque a linha do desenho objeto me basta e não gosto de encher com fundos e fakes. E as sombras delas poderiam completá-las. E se as sombras fossem seus subconscientes trabalhando e atrapalhando? Mostrando o que elas realmente gostariam de estar fazendo?
Confesso que fiquei tentada a colocar, além do cigarro e sua fumaça romântica, uns copos e umas flores. E uma certa eroticidade, influências do querido Schiele, mas disse para mim mesma, calma, vá com calma. Uma coisa de cada vez meu filho me ensinou.
Também me tentou a primavera e dei a elas nomes de flores.

Aquarelas Ana Nunes


Tive ótimas modelos! Corri atrás das bailarinas do maravilhoso Degas, das meias verdes do Egon Schiele, queria desenhar como ele, e de umas bonequinhas russas.
E me dei bem, acho. Queria que elas fossem velhas, um reflexo de mim, mas a juventude ganhou! Pena mesmo. Mas chego lá. Ainda quero seios pendurados e faces murchas! Tipo escultura da Camille Claudel. A velhice não é difícil só no real. No imaginário também! E nos traços. Podem ficar amargos (e geralmente são) ou caricaturais.

Coloquei para mim a meta de umas sete. Mas fui indo e desenhando, encomendei mais papel, abri novos tubos de aquarela e parei nas vinte.

E ficou um resto do desenho nas mulheres gordinhas que encontro nas raras vezes em que saio da toca. Eu as vejo, tiro seus panos, e tenho vontade de dizer-lhes, sabe que você é linda?

Aquarelas Ana Nunes


E, para os meus amigos,









08/12/2020

Into the wild blue yonder

 

Chuck Yeager e o X-1 na base de Muroc

Wilson Baptista Junior

Toda criança, nova ou antiga, tem seus heróis de infância. E eu, criança antiga, não sou exceção.

Hoje um dos meus viajou para mais longe.

Desde pequeno fui um apaixonado pela aviação. Desde o primeiro aviãozinho de papel que meu pai me ensinou a fazer, depois pelos aviõezinhos de madeira que ele construía para mim em sua oficina e que eram a inveja de meus colegas do primário, passando depois pelos planadores que eu adorava construir e fazer voar, e até por pequeninos modelos como um, que cabia na palma de minha mão, que fiz num torno de joalheiro com fuselagem de latão e asas de aço, de um avião francês da Primeira Grande Guerra.

Meu sonho de garoto era ser um piloto de caça. Mas quis o destino que a miopia crescesse mais depressa do que a idade, e quando cheguei aos dezoito anos já não conseguia passar nos exames de vista da Força Aérea.

Dinheiro para o curso de piloto civil não houve na juventude, e depois ao correr dos anos outras prioridades foram aparecendo. Sobrou-me o encanto de voar levado por outros, em aviões pequenos e grandes de todos os tipos, que guardo até hoje e me levou por tantos lados.

Hoje de manhã cedo recebi a notícia da morte de um dos pilotos que fizeram história. O hoje general Charles Yeager, mas que todo o mundo chamava de “Chuck”, e que em 1947, pilotando um avião que parecia uma bala de fuzil, com o nome de sua mulher pintado ao lado da cabina, duas asinhas afiadas como lâminas, um motor foguete na cauda e duas toneladas e meia de combustível altamente explosivo atrás do piloto, foi deixado cair da barriga de um bombardeiro B-29 a sete quilômetros de altura, acendeu o foguete e disparou para o céu.

A quase treze quilômetros de altura ele nivelou o avião, acelerou ao máximo, e se tornou o primeiro homem a atravessar a barreira do som e sair vivo do outro lado. Depois, sem combustível, o motor apagado, desceu planando até aterrissar no lago seco de Muroc.

Hoje voar mais rápido do que o som é coisa de rotina, até um avião de passageiros, o belíssimo Concorde, hoje aposentado pelos altos custos de operação, levou muita gente viajando ao dobro dessa velocidade. Mas naquela época era uma incógnita, só se sabia que ao chegar perto daquela velocidade o ar comprimido pelo avião, de um deslizamento suave se transformava numa verdadeira muralha aerodinâmica que alterava todos os efeitos dos controles e podia levar o avião a se despedaçar. Daí o nome que lhe deram de “barreira do som”, e mais de um piloto pagou com a vida o encontro com essa muralha ao mergulhar em alta velocidade em aviões que não tinham sido construídos para enfrentá-la.

Alguns anos depois, quando eu já tinha idade para ler, acompanhei o desenvolvimento da série de aviões experimentais que eles chamavam de “aviões X” (X era a abreviação em inglês de “experimental”, aquele de Yeager foi o X-1). Um trabalho magnífico que foi empurrando cada vez mais para longe os limites da aviação, num tempo em que não havia computadores, os engenheiros usavam réguas de cálculo e pranchetas de desenho e não se sabia muito como esses aviões iam voar quando chegava a hora de um piloto corajoso entrar nele e tirar a prova.

Alguns dos leitores talvez tenham visto uma parte da história de Chuck Yeager num filme que fez sucesso em 1983 e trouxe o título em português de “Os Eleitos” (em inglês se chamava “The Right Stuff”) que mostrou a progressão dos pilotos destes primeiros aviões até os astronautas que chegaram à Lua.

Chuck aprendeu a atirar desde garoto caçando para ajudar a encher a geladeira da família na Virgínia do Oeste, foi piloto de caça na Segunda Guerra Mundial, foi abatido sobre a França e fugiu para a Espanha ajudado pelos maquisards, voltou a combater e terminou a guerra como capitão e duplo ás (piloto com mais de dez vitórias), depois da guerra foi piloto de testes, desde os primeiros aviões a jato americanos até o programa dos Aviões X, e voltou a lutar, já como tenente coronel, comandando um esquadrão de caça na guerra da Coréia.

Mas não quero aqui fazer uma biografia dele. A quem por acaso quiser saber mais recomendo a sua auto biografia, ou o livro do Tom Wolfe, “The Right Stuff”, que deu origem ao filme, e que fazem companhia um ao outro numa estante atrás de onde estou escrevendo. Só falei do começo da sua vida para poder falar no que ele escreveu ao final de sua biografia, com sessenta e dois anos: 

“Tenho um enorme prazer pessoal em voar um F-20, mas conheço pessoas demais que erigiram barreiras, paredes reais de tijolos, apenas porque têm cabelos grisalhos, e que se isolam, definitivamente de coisas que amaram fazer toda a vida pensando – Estou muito velho para fazer isto ou aquilo, isso é para os mais jovens – Viver até uma idade avançada não é um fim em si próprio; o truque é aproveitar os anos que ainda nos restam”. E termina dizendo: “Ainda há tantas coisas que quero fazer, nunca perdi minha curiosidade sobre as coisas que me interessam. (---) Não fiz tudo ainda, mas quando chegar meu fim não terei perdido muita coisa”.

Chuck nos deixou hoje, com noventa e sete anos, para voar definitivamente para “o selvagem azul lá em cima”, que é a tradução do título deste post e como os pilotos do tempo dele chamam o infinito céu.

E ao pensar nisso me lembro de um poema escrito por um piloto canadense  chamado John G. Magee Junior, lutando pela RAF na Segunda Guerra Mundial, poucos dias antes de morrer num acidente com seu Spitfire, e que me vem à memória sempre que tenho a alegria  de voar:

"Oh, I have slipped the surly bonds of earth,
And danced the skies on laughter-silvered wings;
Sunward I've climbed, and joined the tumbling mirth
of sun-split clouds -and done a hundred things

You have not dreamed of -.wheeled and soared and swung

high in the sunlit silence. Hovering there
I've chased the shouting wind along
and flung my eager craft through footless halls of air.

Up, up the long delirious burning blue
I've topped the wind-swept heights with easy grace,
where never lark, or even eagle, flew;

and, while with silent, lifting mind I've trod
the high untrespassed sanctity of space,
put out my hand and touched the face of God."

E que, se me perdoarem a tradução, fica mais ou menos assim:

“Oh, eu me livrei dos tristes laços da terra
e dancei pelos céus em asas prateadas pelo riso;
subi para o sol, e me uni à alegria buliçosa
das nuvens divididas pelo sol – e fiz um cento de coisas

De que nunca sonhastes –rodopiado e planado e me balançado

bem alto no silêncio ensolarado. E lá pairando
persegui pelos céus o vento uivante
e lancei meu ávido aparelho por salões sem piso de ar.

Alto, mais alto pelo longo, delirante, flamejante azul
escalei com graça ligeira os cimos varridos pelos ventos
onde nunca voaram nem a águia nem a cotovia

E enquanto com a alma silente e elevada pisei
a alta e intocada santidade do espaço
estendi a mão e toquei o rosto de Deus.

 


02/12/2020

Dinheiro não traz felicidade...

 

O Príncipe Charles e a Princesa Diana (fotogtrafia em Saltwire)

Francisco Bendl

Assisto a série promovida pela Netflix, The Crown, que aborda a realeza britânica ou os Windsor.

Deixando de lado alguns detalhes históricos, os episódios são primorosos pela qualidade, pela veracidade ao passado do pai da Rainha Elizabeth II, que se viu rei com a abdicação ao trono pelo seu irmão, Edward VIII, que optou por ser feliz ao lado da mulher amada, renunciando ao dever de ser rei do povo britânico.

Recomendo que assistam à série, pois uma das melhores já feitas e que assisti ao longo da minha vida.

Agora, se o célebre ditado, “dinheiro não traz felicidade”, existe quem possa contestá-lo, inclusive alegando que pode não trazer, porém ajuda muito, o seriado que mencionei e recomendo é a prova cabal que a máxima popular tem razão!

Pode-se dizer que a vida nos castelos e palácios ingleses são uma espécie de contos de fadas.

Luxo, abundância, riqueza, poder, pajens, vassalos, seguranças, mordomos, uma condição que não se vê numa pessoa mesmo abastada porque lhe falta a linhagem, a influência local e mundial, as exigências que a corte estabelece e que devem ser cumpridas acima da felicidade dos membros da realeza.

Pois, se dinheiro, fama, uma vida inigualável não é suficiente para qualquer pessoa se sentir bem, a família real britânica é o exemplo!

O personagem mais enigmático, contido, infeliz, frustrado, ligado somente em si mesmo, egoísta, invejoso, uma personalidade titubeante, inseguro, é nada mais nada menos que o príncipe Charles.

Não é por nada que a rainha jamais abdicou para lhe transferir o poder e torná-lo rei, pois ela sabe como ninguém que o seu filho não tem a menor condição de ser o monarca esperado.

Bom, mas não quero me desviar do assunto.

A questão é eu tentar transmitir se existem motivos para alguém sadio física e espiritualmente, herdeiro de um trono, rico, poderoso, ter se deixado ser exemplo de infeliz, e esse é o enredo dessa crônica.

Charles desposou a mulher de que o mundo se enamorou, apaixonou-se, adorava e reverenciava.

Foi a mulher mais fotografada na história, e uma das mais fotogênicas, se não a maior de todas.

Diana era linda, meiga, sensível, deixava-se abraçar, pegar na sua mão, embalava crianças, sentava-se perto de aidéticos, visitava feridos e doentes, viajou para a África, simplesmente levou os Windsor para patamares nunca dantes imaginados pela realeza inglesa.

Mas, trouxe consigo uma necessidade premente de carinho, de afeto, de ser amada, pois a sua família havia sido desfeita quando a sua mãe se separou do pai.

Charles, antes de Diana, tinha o seu amor voltado para uma mulher casada, frívola, porém o escutava, consolava, entendia como ninguém os problemas do príncipe, quando ia ao seu encontro furtivamente para desabafar.

Chamava-se Camila Parker Bowles.

Curiosa ou ironicamente, hoje Duquesa da Cornualha...

Pois bem.

Camila, se comparada à beleza de Diana, seria o mesmo que eu disputar com Einstein quem seria mais inteligente!

Diana ofuscava; Camila não tinha luz alguma.

Mas, mulher mais velha que Charles, tinha o segredo de como agradar um homem, de como envolvê-lo, ainda mais em se tratando de um uma pessoa medíocre, ridículo, inseguro, mimado e superficial.

Se Diana esperava encontrar um príncipe que a levaria à felicidade plena, Charles ao ser obrigado a se casar com a srtª Spencer, queria transformá-la em mera seguidora de seus passos, uma mulher submissa, apenas para “o inglês ver” como o seu matrimônio era feliz.

Camila era inesquecível, Diana não lhe agradava, pelo contrário, em muitas ocasiões deixava a sua esposa “em casa”, e se mandava para os macios braços e o colo quente da sua verdadeira amada.

No entanto, certamente a grande mágoa de Charles, a sua frustração, a sua impotência constatada por ele mesmo, dizia respeito à sua vida.

Ele não a tinha como desejava, pois estava determinada para ser o futuro monarca britânico.

Príncipe, rico, poderoso, influente, uma vida nababesca mas, antes da sua felicidade, havia o senso do dever!

Então, a sua rebeldia, infelicidade, e algoz da sua esposa, a encantadora e maravilhosa Diana, a Princesa de Gales, com a qual se viu obrigado a se casar em detrimento do seu amor, Camila.

A preocupação da corte com Charles era tanta, que a rainha e o seu pai, Phillip, que abandonara a sua brilhante carreira na Marinha para se casar com Elizabeth, imaginavam que Charles poderia copiar o seu tio, rei Edward VIII, que abdicara do trono para estar ao lado da mulher dos seus sonhos, gerando uma crise imensa na coroa, e que chegou a ser discutida a sua continuidade ou não!

Se Charles fizesse o mesmo, o futuro da realeza britânica estaria irremediavelmente em jogo.

Logo, encontrar uma esposa para Charles ficou sendo uma tarefa de todos os membros do palácio de Buckingham, de modo a tirar Camila da mente do filho mais velho da rainha, o herdeiro do trono inglês.

Resumo da tragédia real britânica:

Diana começou a devolver ao Charles a sua traição com Camila, e escancarada.

Diziam as más línguas, que o quarto da princesa tinha uma porta giratória, de tantos eram seus visitantes furtivos e ocasionais.

Nas várias tentativas de Charles pedir que a mãe lhe concedesse se separar de Diana, e a rainha o obrigava a tentar a reconciliação, mais ainda Charles se tornava infeliz, magoado, derrotado.

Até que chegou um dia que a rainha ouviu de seus auxiliares as peripécias amorosas da sua nora, e concordou com o divórcio.

Diana, expulsa da família, execrada pelos Windsor, morreria em seguida, buscando uma felicidade que jamais encontrara.

A comoção mundial e, principalmente, a britânica, obrigou que a família resolvesse dar importância ao episódio trágico.

No dia do enterro, com o caixão de Diana sendo conduzido por uma carruagem levada por vários cavalos, quando passou em frente à rainha, esta em um gesto que deixou a todos perplexos, que devolve as críticas que recebera pelo tratamento dado à morta, meneia a cabeça, reverenciando a princesa que deixara de existir!

A rainha rompia com o cerimonial, a tradição, e saudou a passagem da sua ex-nora como se fosse ela a rainha e, Elizabeth, a princesa!

Charles finalmente se casou com Camila. Encontrou a felicidade, enfim. Atendeu aos apelos de sua vontade, do seu egocentrismo, da sua vida pequena.

Mas, a rainha, cujo senso do dever é maior do que ela mesma, que a sua felicidade pessoal, a sua responsabilidade com o povo suplanta qualquer anseio particular, também cobrou do filho um preço pelo que fizera com Diana e o seu próprio futuro:

Jamais será rei!

Charles se deixou vencer pela emoção, pela paixão, pela sua vontade.

Um legítimo monarca não pode pensar em si, mas na tradição do nome, na linhagem, na realeza, que deve estar acima de tudo e todos.

Ao se equiparar com uma pessoa comum, da plebe, comprovou que não teria condições de colocar a coroa, que exige de quem a usa qualidades muito acima dos mortais, conforme os sacrifícios que devem ser feitos e que se espera de um rei.

De fato, dinheiro não traz felicidade e, até para contrariar o complemento do ditado que ajuda a encontrá-la, a realeza britânica, a mais importante do planeta, cuja rainha é a mais longeva na história do trono inglês, a condenação pelo fausto, poder, abundância, refinamento, riqueza, veio na forma de ser negada a felicidade aos Windsor, uma punição cruel, convenhamos.

Dito isso, até que estar no SPC, Serasa, não ter crédito na praça, ser um pelado não é nada importante, se a chance de ser feliz é muito maior que a dos ricos e poderosos.

Se eu não fosse um pobretão, sem eira nem beira, jamais eu teria encontrado a Marli pois, em tempo algum eu teria conhecido a verdadeira felicidade!

Tá bem, volta e meia ela se queixa, reclama da falta de condições, que ainda residimos em casa alugada, jamais viajamos para o exterior ...

Então respondo:

- Marli, minha amada mulher, quando nos casamos eu te prometi uma vida de emoções, lembras?

- Que emoções, Chico, se não temos nada?

- Ora, emoções no sentido de hoje termos o que comer, amanhã quem sabe; hoje residimos em uma casa, mas podemos ser despejados; agora temos roupas, no futuro, sabe-se lá, se não temos de usar folha de parreira; temos algumas moedas que sobraram de ontem, possivelmente no dia seguinte teremos de pedir dinheiro emprestado ... queres uma vida mais emocionante que esta??!!

Percebi que a minha felicidade estaria fatalmente comprometida, caso ela acertasse a frigideira que atirou em mim!

Para a minha felicidade, a Marli errou!

 

25/11/2020

A Loba Nazareth

 

Fotografia de Carlos Monteiro

Hoje publicamos a primeira colaboração de um novo companheiro, a quem damos as boas vindas. Deixemos que ele mesmo se apresente:

Meu nome é Carlos Monteiro, sou carioca, flamenguista, portelense. Fotojornalista, jornalista e publicitário desde 1975. Trabalhei em alguns dos principais veículos nacionais como: Revista O Cruzeiro, Jornal dos Sports, História e Glória do Rock além de outros como freelancer. No Jornal O Dia publicava a fotogaleria Alvoradas Cariocas, retratando o amanhecer de algum ponto da Cidade. Atualmente sou publicitário na Agência Saravah. Tenho três livros fotográficos, publicados, retratando a Cidade Maravilhosa.

O artigo do Carlos foi escrito no dia 24, façamos de conta que hoje é 24 de novembro, data também do amanhecer que ilustra o post. 😊

---------------------------------------------------

Nasceu maranhense com nome de deusa grega, pelas mãos de Zeus se transformou em pássaro. Seu pai, quando a batizou Alcione, sabia que ela vinha ao mundo para cantar, encantar e acalentar.

Pássaros são para o mundo. Ela cresceu e volitou para o Rio de Janeiro, se transformou em Loba, Mangueirense, “Rainha do Samba”, trompetista. Na noite, embalada no berço da Bossa Nova, cantou no “Little Club”, naquele cantinho especial de rua Duvivier em Copacabana; o Beco das Garrafas.

E, como pássaro que é, alçou voos maiores, atravessou Américas e oceanos. Sem esforço para manter a afinação e com um tom de voz absolutamente peculiar, quase único, não deixou o samba morrer, nasceu com o samba e no samba se criou com muita ginga e um tremendo bole-bole. Não deixará acabar a batida forte do surdo, pulsar do coração, repique do tamborim, choro da cuíca. Enquanto puder sambar, na avenida, no terreiro, nas rodas de samba e na solidão, será compasso do passo do coração.

Esse amor pelo samba ‘envenena’, mas, todo amor sempre vale a pena, para quem, como ela, não tem a alma pequena, viveu amor em gostoso veneno.

E o amor cantou em dores, saudades, alegrias, felicidades e tristezas. Amores correspondidos, platônicos e abandonados. Amores traídos, amados, amantes. Jogou o jogo do amor como um vício, segredo guardado no peito, chama da paixão, perfume do mato, água da fonte, pétalas caídas das rosas se abrindo, exalando perfumes roubados e despetalando no chão.

Cantou o amor, e como cantou. Amores acabados, findados em sonhos grifados num jogo de palavras trocadas, cartas marcadas, dadinhos rolados. Daqueles que pagaram caro por amar demais, estranha loucura que faz o coração doer, se esconder na falta, se encontrar na cama, no doce abraço do abraçar de braços que nada importam, mas, que abrem a porta do coração.

Cantou o perdão ao menino sem juízo, garoto maroto que toma porres, picha muros diz que adora, troca juras secretas, mil loucuras e depois vai embora. Pasárgada talvez. Cantou ao ébano dos lábios de mel, feito a pincel. Cantou meninos danados, moleques levados, daqueles que fazem olhar estrelas achando que é amor, daqueles que viram a cabeça, que tiram do sério.

É gata em pele de loba, é loba em pele de gata, doce, dengosa, polida, fiel, que se entrega de corpo, alma, paixão, toque e olhar sedutor que despe. Que faz a gente sentir saudade, vontade de ficar noite afora, perder a hora, fazer loucuras, que faz dizer: “te amo plurimum. Nequaquam ego amare te.” Quando o coração fica para sempre!

É o que fica dentro do peito em forma de saudade, que faz pensar no jeito, no desejo, no nome que chama em chama, que faz até gostar de alguém, mas amor, amor verdadeiro, distribuídos em sonhos e carinhos...? Só uma estranha loucura que faz perguntar: o que eu faço amanhã sem você?

Alcione é como o Sol, brilha sempre mais uma vez, sua luz chega aos corações, faz o amor ser eterno novamente.

Completou 73 anos muito bem vividos no sábado, veio ‘pra’ cantar. Cumpre seu papel com devoção, com emoção, com o coração.

É loba!

 


26/09/2020

Viagem ao redor do meu quarto

 

O autor e seu criado Joanetti - ilustração de Tony Johannot

Wilson Baptista Junior

Faz dias que estava pensando em escrever este post sobre um livro que nas minhas lembranças tem algo a ver com a reclusão em que tantos de nós têm vivido nos últimos meses, e hoje, quando me sentei ao computador, antes de começar a escrever corri a vista, como de hábito, pelos jornais do dia e – Plim! Saltou-me aos olhos a chamada de uma bela resenha da Tati Bernardi, na Folha, sobre uma nova tradução brasileira do mesmo livro...

Pensei: “Lá se vai o post...”. Mas depois, confesso que ajudado por um empurrãozinho da Ana, resolvi não me preocupar com a coincidência e contar assim mesmo o que ele me trouxe à mente.

Não conheço nem essa nova nem a antiga tradução brasileira do livro; algum leitor que as tenha lido perdoe-me por favor as diferenças entre aquilo de que se lembra do que transcrevo aqui. Traduttore, traditore...

Primeiro, alguma coisa sobre o autor, para que possamos entender o seu livro:

Xavier de Maistre era um cavalheiro e militar sardo, nascido em Chambéry, na Savóia. Em 1792 a França, já transformada em república pela revolução, tomou a Savóia do reino da Sardenha, e a região se tornou muito pouco hospitaleira para qualquer das antigas famílias da nobreza. Xavier viajou para a Rússia, onde continuou na carreira das armas, tomou parte na guerra que aliou quase todos os reinos europeus contra a França e subiu até a patente de general. Amante das artes, e além de escritor amante da pintura, chegou a ser nomeado diretor da biblioteca do Museu Real de São Petersburgo. Mas sua carreira militar teve também seus percalços – um deles relativamente comum para um cavalheiro da época: em 1790, quando ainda servia no exército do Piemonte, foi condenado por ter participado de um duelo, considerado ilegal, e sentenciado a ficar em prisão domiciliar na fortaleza de Turim, onde estava aquartelado, sem poder sair do seu quarto. A história não registrou o que aconteceu com o outro duelista, pode-se supor que tenha sobrevivido porque a pena não foi tão longa.

Nos quarenta e dois dias em que ficou confinado, escreveu um livro que chamou de “Voyage autor de ma chambre” - Viagem ao redor de meu quarto - e que foi publicado em 1794, quando já vivia na Rússia, financiado por seu irmão Joseph de Maistre (na época Xavier passava por grandes dificuldades financeiras).

Como era costume entre oficiais, o cumprimento da pena baseava-se na palavra de honra do condenado de que não sairia do seu quarto, e ele honradamente a manteve. Nenhum costume impedia, entretanto, que pudesse receber visitas, e que, como convinha a um cavalheiro, continuasse sendo servido por seu fiel “valet de chambre” Joannetti, nas suas palavras “un parfait honnête homme” e cuja dedicação transparece em algumas das páginas Também sua cadela, Rosine, que vivia no quartel, podia entrar e sair livremente do seu quarto.

Nosso soldado escreveu (surpresa!) quarenta e dois capítulos, onde mistura descrições, lembranças, realidade e ficção com algumas introspecções muito mais profundas do que a mera aparência do assunto poderia sugerir. Só uma vez, durante essa viagem, a sombra de uma queixa sobre o motivo do seu confinamento aparece quando ele fala do duelo que o causou e da situação difícil em que fica um cavalheiro vítima de uma ofensa real ou imaginária:

“Existe alguma coisa mais natural do que se arriscar a cortar a garganta com qualquer um que vos pise inadvertidamente o pé, ou que deixa escapar qualquer palavra ferina num momento de irritação do qual vossa imprudência tenha sido o motivo, ou então que tenha a infelicidade de agradar a vossa amante? Vai-se a um prado, e lá, como Nicole fazia com o Burguês Fidalgo, tenta-se atacar em quarta enquanto ele faz a parada em terça: e, para que a vingança seja certa e completa, lhe apresentamos o peito descoberto, e corre-se o risco de se fazer matar por seu inimigo para vingar-se dele.”

(Aqui, um parágrafo meu, “atacar em quarta enquanto ele faz a parada em terça” é jargão de esgrimista para dizer resumidamente que se atira a lâmina na direção do lado esquerdo do peito do oponente enquanto ele tenta aparar o golpe do lado direito, e não o conseguindo é ferido. Nicole é personagem do “Burguês Fidalgo”, de Molière)

“Vê-se que nada é mais consequente, e no entanto encontramos pessoas que desaprovam esse louvável costume! Mas o que é tão consequente quanto o resto é que as mesmas pessoas que o desaprovam e que querem que o consideremos uma falta grave tratarão ainda pior qualquer um que recuse cometê-la”.

De fato, pelos costumes da época, um ofendido que se recusasse a combater no campo de honra, por mais superficial que fosse a ofensa, seria considerado por seus pares covarde e indigno do nome de cavalheiro, mas se combatesse nem por isso deixaria de ser condenado por esses mesmos pares nos tribunais...

Xavier começa o seu livro no estilo dos relatos dos viajantes da época: “As observações interessantes que fiz, e o contínuo prazer que experimentei ao longo do caminho, me fazem desejar torná-lo público; a certeza de ser útil me decidiu a isto.” E nos diz que qualquer um de nós pode fazer viagem igual: “Na imensa família dos homens que cobrem como formigas a superfície da terra, não há um só – não, nem um só (entende-se, dos que moram em quartos) – que possa, depois de ter lido este livro, recusar sua aprovação à nova maneira de viajar que introduzo no mundo”.

Limitado aqui a um mundo, como nos conta, “de trinta e seis passos de perímetro, voltado do nascente ao poente, bem perto do muro da fortaleza”, e aos objetos nele contidos (alguns verdadeiros e outros imaginários), o autor nos leva a uma viagem por dentro de sua mente, atingindo às vezes profundezas insuspeitadas. Para começar, divide o viajante (ele próprio) em duas naturezas distintas, a alma, morada da inteligência e da memória, e “o outro”, ou “o animal”, que é o seu corpo, mas seu corpo infundido de uma vida própria, que perambula pelo mundo e toca nos seus objetos, às vezes junto da alma e às vezes livre do seu comando. E pela interação dessas duas naturezas vamos percebendo a sua pessoa.

Sua viagem não tem regra, nem método, nem caminhos determinados; como ele diz, “nada me atrai mais do que seguir as ideias pelos seus rastros, como o caçador persegue a caça, sem fingir que tem algum caminho. Assim, enquanto viajo por meu quarto, raramente percorro uma linha reta: vou de minha mesa para um quadro pendurado em um canto; daí parto obliquamente para ir à porta; mas conquanto ao partir minha intenção seja de chegar lá, se encontro no caminho minha poltrona, não me importo, nele me acomodo na mesma hora”.

E é pela alternância entre os lugares onde vai parar, seja levado pela alma, seja pelo animal, e pelas sensações que cada lugar ou objeto lhe traz que ele vai falando com o leitor.

Da poltrona: “Um bom fogo, livros, penas, quantos recursos contra o tédio! E ainda que prazer em esquecer seus livros e suas penas para atiçar o fogo, se entregando a alguma doce meditação, ou construindo algumas rimas para alegrar os amigos!”.

Mas, seguindo da poltrona, encontra o leito, e fala do prazer de ver os raios do sol avançando pelas paredes, do ouvir as vozes das andorinhas que moram no telhado, do quanto lhe apraz prolongar ao máximo estes momentos neste “móvel delicioso em que esquecemos, durante metade da vida, as tristezas da outra metade”...

No capítulo seguinte (dedicado, segundo ele, aos metafísicos) ele nos explica sua concepção da pessoa humana, “separando a potência animal dos raios puros da inteligência”.

Xavier não considera o homem como composto de alma e corpo; para ele o nosso “animal” é “um ser sensível, perfeitamente distinto da alma, indivíduo verdadeiro que tem sua existência separada, seus gostos, suas inclinações, sua vontade e que só está acima dos outros animais porque é melhor criado e provido de órgãos mais perfeitos (...) A grande arte de um homem de gênio é saber criar bem seu animal, de modo que este possa andar por si só, enquanto a alma, livre deste seu doloroso acompanhante possa se elevar até o céu”.

O autor gostava de pintar, e pelo exemplo abaixo, da coleção de uma sua contemporânea russa, era mais do que um mero principiante:

Paisagem por Xavier, Conde de Maistre (coleção de Elizabeth Tschitschagow)

É ele quem nos diz: “Feliz ainda o pintor que o amor da paisagem arrasta em passeios solitários, que sabe exprimir sobre a tela o sentimento de tristeza que lhe inspira um bosque sombrio ou um campo deserto!”.

Não é de surpreender, então, que algumas das reflexões mais interessantes de sua viagem sejam provocadas pelo exame dos quadros pendurados (verdadeira ou imaginariamente) nas paredes do seu quarto. Mas nos alerta: “É tão impossível descrever claramente um quadro quanto pintar um retrato que se pareça com o modelo tendo apenas uma descrição”.

O primeiro com que se defronta, inspirado na obra de Goethe, mostra Charlotte, o amor impossível do jovem Werther, desempoeirando com a alma cheia de maus pressentimentos as pistolas que ele tinha pedido emprestadas ao seu marido Albert sob o pretexto de fazer uma viagem, e que ele usaria depois para tirar a própria vida. E pensa: “Quantas vezes não fiquei tentado a quebrar o vidro que cobre essa estampa, para arrancar este Albert de sua mesa, de o despedaçar, o desmanchar sob os pés? Mas sobrarão sempre demasiados Alberts neste mundo. Qual homem sensível não tem o seu, com o qual é obrigado a viver e contra o qual as efusões da alma, as doces emoções do coração ou os arroubos da imaginação vão se quebrar como as ondas sobre os rochedos?” – e aí, contrapondo a isso o bem que faz ter um amigo, faz uma belíssima elegia a um seu companheiro das fileiras que morrera em combate, e termina dizendo “a morte de um homem sensível que expira em meio a seus amigos desolados, e a de uma borboleta que o ar frio da manhã faz perecer no cálice de uma flor, são duas épocas parecidas no curso da natureza. O homem não é mais do que um fantasma, uma sombra, um vapor que se dissipa no ar... (...) Não, meu amigo não entrou no nada; qualquer que seja a barreira que nos separa, eu o verei de novo”.

Usa o ver outro, retrato de uma sua amiga, para nos mostrar a dicotomia da alma e do animal; quando chega à sua frente e vê que o quadro está empoeirado sua mão começa maquinalmente a remover a poeira que o cobria, enquanto a alma vagueia por outros lugares, mas à medida em que a figura da dama vai sendo revelada a alma se encanta novamente pela beleza da retratada e se envolve com o coração para dividirem a alegria das lembranças que os assaltam. Por um momento o amor antigo domina nosso viajante, mas num piscar de olhos a razão o retoma e, nas suas palavras, ele “envelhece um ano inteiro” e volta à realidade.

Mais adiante ele disserta sobre a arte da pintura, comparando-a à da música e estabelecendo a superioridade da primeira. A dissertação é muito longa para ser resumida aqui, mas em essência (e ressalvando ele honestamente que não é músico, “como atesta o céu e todos os que já me ouviram tocar o violino”, termina por dizer que “vê se frequentemente crianças tocarem o cravo como grandes mestres, mas nunca vi eu um bom pintor com doze anos. A pintura, além do gosto e do sentimento, exige uma cabeça pensante, da qual os músicos podem prescindir. Vemos todos os dias homens sem cabeça nem coração tirar de um violino, ou de uma harpa, sons encantadores. Podemos criar o animal humano para tocar o cravo, e, quando isso é feito por um bom professor, a alma pode viajar à vontade enquanto os dedos vão maquinalmente tirar sons com os quais ela não interfere. Não se saberia, ao contrário, pintar a coisa mais simples do mundo sem que alma deva empregar nisso todas as suas faculdades”.

(Aqui eu, que não sou músico nem pintor mas sempre apreciei as duas artes, prefiro ficar calado para não contradizer o nosso viajante).

Depois de falar, com igual emoção, de outros quadros, inclusive de dois que ele coloca acima de todos – um auto retrato do grande Rafael Sanzio e outro que ele pintou de sua última amante, La Fornarina – e desse último ele conta: “Minha alma, enquanto a admira, sente um movimento de indignação contra essa italiana que preferiu seu amor ao seu amante, e que extinguiu no seu seio esta chama celeste, este gênio divino” – ele termina a visão das pinturas assim:

“As estampas e os quadros de que acabo de falar empalidecem e desaparecem logo ao primeiro olhar que se lança sobre o quadro seguinte: as obras imortais de Rafael, de Corregio de de toda a escola da Itália não suportariam o paralelo. Assim o guardo sempre para o último pedaço, para o bocado reservado, quando dou a alguns curiosos o prazer de viajar comigo; e posso assegurar que, depois que faço ver este quadro sublime aos conhecedores e aos ignorantes, aus homens do mundo, aos artesãos, às mulheres e às crianças, até mesmo aos animais, sempre vi qualquer dos espectadores mostrar, cada um à sua maneira, mostras de prazer e de espanto: tanto está a natureza tão admiravelmente reproduzida!  (...) O quadro de que falo é um espelho, e ninguém até hoje o criticou; é, para todos os que o veem, um quadro perfeito ao qual nada se pode corrigir.  (...) Único entre os conselheiros dos grandes, ele lhes diz constantemente a verdade”.

Já vai muito longe nossa conversa, e muito haveria ainda para dizer. Muitas vezes mais, por diferentes caminhos, o viajante mergulha dentro de si próprio. Até o dia em que é libertado, e ao sair de novo debaixo do céu, termina dizendo, mais do que nunca cônscio de sua dualidade: “Oh meu animal, meu pobre animal, entra em guarda!”

Mas o meu conselho é que, se gostaram dessas amostras, leiam o livro. Tem muito, muito mais do que gostar.

Este foi o primeiro romance (se assim o podemos chamar) publicado de Xavier de Maistre. O último, publicado quase trinta anos depois, retoma a ideia e se chama “Expedição noturna ao redor do meu quarto”. Quem sabe um dia ainda conversaremos sobre ele?