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30/06/2018

Confesso, sou um palhaço!

Carequinha, o palhaço que encantou o Brasil (fotógrafo desconhecido)


Antonio Rocha
Quando terminei o doutorado eu queria dar um tempo nos estudos filosóficos, literários e afins...
Fiz uma reflexão desde que nasci e cheguei à conclusão que sou um palhaço em potencial. Sempre gostei dos programas humorísticos que ouvia no rádio quando criança e depois na TV. A meu ver (até rimou), é algo formidável, você escrever um texto, a outra pessoa filmar e outros rirem. O riso é terapêutico, alivia, é um bom tratamento.
E o Senhor Buddha, que sabia das coisas, afirmou certa feita que a alegria é um dos fatores da Iluminação, ou seja, para você chegar a um grau sublime de santidade/sanidade é preciso umas boas gargalhadas. Inclusive rir de si mesmo, das nossas bobeiras.
Decidido a assumir minha face palhaça lembrei da irmã do meu genro que é atriz e fez curso de teatro na França. Eu sabia que ela havia feito curso de palhaça, certa feita me disse que foi a matéria que ela mais gostou. Há situações graves em nossa vida que só mesmo uma boa palhaçada para desopilar o fígado. Vejam a sabedoria popular em seu famoso adágio, informa que rir faz bem ao fígado.
Entre outras ela me ensinou que a primeira lição para ser um palhaço de verdade é não ter medo, nem vergonha do ridículo. Digamos, é ser sem vergonha no sentido criativo, artístico, palhaçal...
Às vezes o palhaço é chato, incomoda, mas é preciso budisticamente verificar o tal Caminho do Meio, para não ser mal interpretado. O cinema, a literatura, a televisão já explorou e muito o lado doloroso do palhaço, que sofre e tal.
Mas eu não estou falando desse palhaço. Estou falando do palhaço positivo, construtivo, de bem com a vida, alegre, contente, podem até me chamar de ingênuo, mas, por exemplo, vejo no grupo “Doutores da Alegria” um trabalho sério, importantíssimo através de bobagens, de palhaçadas, de afeto, de carinho com os que estão internados nos hospitais, asilos, casas de saúde, orfanatos...
O famoso Sigmund Freud, médico e pai da psiquiatria, psicanálise e afins tem um livro sobre o “Chiste” que estuda a questão do humor. Um outro livro muito ótimo é “O Riso” do filósofo Bérgson, sem contar os muitos exemplares nas prateleiras das livrarias que falam de piadas, charges etc.
Tem o humor saudável, de boas vibrações, esse é o meu. Tem o humor destrutivo, esse não gosto.
O tema é tão antigo quanto a humanidade. Rir é contagiante, certa feita, vi no YouTube uma experiência que fizeram onde um ator entra em um vagão do metrô, simula ver algo no celular e começa a rir, gargalhar e daqui a pouco todo o vagão está rindo a “bandeiras despregadas” como se falava no português arcaico, acho que é quando a pessoa perde a compostura de tanto rir.
No volume clássico de Lin Yutang “A Sabedoria da Índia e da China”, quinhentas e oitenta páginas, publicada em 1943 por Irmãos Pongetti, há um capítulo sobre o Humor Indiano e apresenta mais de vinte textos da antiguidade védica que foram reunidos, pela primeira vez no século II (dois) antes de Cristo. Mais adiante falarei dessas artes literárias humorísticas...
No Budismo temos o Buda Gordo e Sorridente, outro dia li que se representasse Cristo sorrindo, aqui e acolá tenho visto desenhos de Jesus sorrindo, mas não é muito bem aceito, em função do pesadelo da Cruz  (escrevo isso com todo respeito).
Contudo, algumas vezes, escrevi ou fiz palhaçada e não entenderam, disseram que eu estava ironizando, debochando... Não era, mas nem todo mundo está preparado para uma inusitada brincadeira no meio da rua.
Por exemplo, outro dia vi na cidade um amigo que não encontrava há bastante tempo ele estava com a mochila nas costas... brincando... inadvertidamente, puxei por trás a mochila dele, quando saía do metrô. Ele teve um susto deu um salto para o lado e já me encarou em pose de briga, iria me socar...
De forma Zen falei sorrindo:
- Calma fulano, sou eu, fazendo palhaçada...
Meio sem graça ele me abraçou sorrindo e respondeu:
- Ainda bem que eu não estava armado!
Confirmei outra lição do Curso de Palhaço: “Cuidado ao fazer palhaçada na rua com estranhos”.
E a antiga sabedoria popular já me dizia quando criança:
“Brincadeira tem hora!”
Não seja irresponsável com as suas palhaçadas...


27/06/2018

Quase crianças

A festa de Babette (imagem Nordisk Film)


Heraldo Palmeira
Era mais um aniversário, quase encostando nos sessenta. Bem vividos, podia afirmar. Percalços, dores, dissabores? Claro! Quem passou sem eles? Afinal, trata-se da velha e boa vida, cheia de altos e baixos. E planos.
No final da tarde, amigas recentes enviaram um bolo delicado e delicioso. Enorme surpresa. Sinal de que os afetos ainda valem a pena, estão vagando por aí prontos para serem capturados e cultivados para amanhã e depois de amanhã.
O restaurante (que vive cheio) ainda não estava cheio, era cedo da noite. A amizade com os da casa garantiu a reserva dos quatorze lugares por aquela meia hora a mais, para ajuste do relógio biológico aos sabores que viriam a seguir.
O aniversariante chegou antes da hora para evitar contratempos. Trazendo a tiracolo os joelhos bichados, a novíssima dor no ombro, os quilos a mais adquiridos por anos a fio de vida sedentária, que estão diminuindo por esforço próprio – “é preciso melhorar as taxas”, disse-lhe o médico amigo, como um professor cobrando melhores notas na matéria.
E daí para esses acessórios do tempo? Estava feliz porque foi sendo feliz aos poucos ao longo da vida – por sorte e pelo esforço próprio de sempre buscar as contingências certas, o que realmente importa.
Os da família, pequena, chegaram em seguida. O grupo foi se formando devagar, a maioria em casais. Eram todos velhos amigos, o grisalho ou branco nas cabeças dava a pista do tempo de convivência. Um ou outro fora da confraria pelo menos sabia dos outros. Exceção às três meninas, ligadas ao grupo e ao aniversariante. Elas quiseram vir de bom grado, talvez prevendo que iriam se divertir muito.
Os presentes certeiros trouxeram a delicadeza do bem-querer dentro das embalagens.
Havia muitos conhecidos em outras mesas, a cidade ainda mantém essa característica, quase todos conhecem quase todos. Razão para muitos cumprimentos, reencontros, conversas rápidas.
Sem combinar nada, não beberam álcool. Preferiram água, água de coco, sucos e refrigerantes. De repente, iniciaram uma deliciosa brincadeira – puxada pelo aniversariante – de mudarem de cadeiras. Um jeito de todos ficarem perto de todos, fazer a conversa rodar na mesa enorme e não ficar presa em subgrupos.
E riram e riram e riram, como há muito não faziam. Com gosto, sem censura, sem se preocupar com nada ao redor. Quase crianças. E encheram aquele salão com tanta alegria...
E o aniversariante disse que não precisavam mais cantar o “Parabéns...”, pois outros cinco aniversariantes fizeram a velha canção soar a plenos pulmões. E ele, moleque, agradecia a cada cantoria alheia. “Assim já é demais, cantaram uma vez e teve bis, tris e quadris! E mais uma quinta!”.
No meio da algazarra, soava de mansinho a trilha sonora espetacular da casa, em seu equipamento refinado – de longe, o melhor da cidade. A música sempre teve grande importância na vida daquele grupo, alguns deles envolvidos com a cena cultural. E, por coincidência, ali na mesa estavam os dois responsáveis por aquele projeto de sonorização do restaurante.
É como um sol de verão
Queimando no peito
Nasce um novo desejo
Em meu coração
É uma nova canção
Rolando no vento
O tempo lá fora parecia ter parado um pouquinho para que aquele tempo ao redor da mesa passasse mais devagar. Não dizem que a felicidade é a soma de momentos felizes?
O mar bem mais adiante não era visível dali, mas estava lá abaixo com o vento de uma nova canção, com o sol guardado para o dia seguinte.
– Quero saber como será quando os pratos chegarem. Quando fizemos o pedido, eu estava acolá, na ala do camarão do chefe. E agora já estou sentado quase do outro lado. Será que eu consigo, pelo menos, um frango do lado de cá? – preocupou-se o professor gaiato, que havia lecionado a meio mundo que estava no restaurante.
– É verdade que você já dava aula de química aos índios quando os portugueses chegaram? – e seguia o rodízio de lugares e gracejos.
– Estou com vontade de ir ao banheiro, mas tenho medo de sair e perder meu lugar – disse, agarrada à bolsa, a mulher que já havia rodado meia mesa e conseguira sentar outra vez ao lado do marido. Gargalhada geral.
– Se eu fosse você, esperava até os pratos estarem servidos, é mais seguro – respondeu um prudente sentado à frente.
Mais uma pérola da trilha sonora e o aniversariante olhou com ternura para seus amigos, tentando rever todos num tempo de antes, quando eram jovens.
Você lembra
Lembra daquele tempo
Eu tinha estrelas nos olhos
Um jeito de herói
Era mais forte e veloz
Que qualquer mocinho de cowboy
Você lembra
Lembra, eu costumava andar
Bem mais de mil léguas
Água da fonte
Cansei de beber
Pra não envelhecer
Como quisesse
Roubar da manhã
Um lindo pôr de sol
Olhou para aquelas meninas, tão lindas, guardiãs da juventude, que não faziam a menor ideia do que é envelhecer. E nem precisavam mesmo, teriam tempo de sobra para essa aventura. Até porque a velhice não é dada a espalhafatos, vem chegando silenciosamente, não se percebe sua instalação, apenas que está instalada.
Olhou para a mulher que refletia seus olhos. Era bom rejuvenescer.
Os sabores da cozinha famosa desfilaram absolutos, naquela certeza de que são o que sempre foram e continuarão sendo. Ao fim, chegaram os garçons naquela farra boa, o pequeno bolo, a música repetida pela sexta vez entre palmas. E todos os gracejos cabíveis.
Vela soprada, apagada. E ninguém estava interessado em ir embora. E foram ficando mais um pouco, avançando sobre a hora de fechar as portas do lugar. E começaram a se levantar e a prolongar as conversas, de pé. E foram se despedindo e convocando novos encontros para o mais breve. E foram saindo para as separações adiadas até o limite, cada um voltando para sua própria vida, o tempo voltando a rodar inclemente.
O aniversariante viu seus amigos indo embora, sozinho no silêncio da falta de risos, caminhando até o carro. Não quis pensar no tempo, a idade ensina que é preciso otimizar esse item precioso. Não quis sentir saudade, estava mais interessado em apostar nas alegrias.
Pensou nas urgências sem sentido da juventude e na liberdade que chega com o envelhecimento. Pensou no movimento dos afetos, os que se perderam pelo caminho e os que chegaram inesperados.
O salão vazio, lá dentro, quase às escuras, contraponto à claridade do poste de iluminação. As marcas do rosto refletidas na vidraça lateral do restaurante. Profundas, superficiais, relevo irregular de uma vida.
Pensou na glória de ser imperfeito, no desejo de ganhar asas. Ainda escapava pelas frestas da porta a trilha sonora.
O poder que nos levanta
A força que nos faz cair
Qual de nós ainda não sabe
Não há pedra em teu caminho
Não há ondas no teu mar
Não há vento ou tempestade
Que te impeçam de voar

Trechos de:
Canção de verão (Luiz Guedes-Thomas Roth)
Sapato velho (Mú Carvalho-Cláudio Nucci-Paulinho Tapajós)
Dona (Gutemberg Guarabyra-Renato Sá)


24/06/2018

A geometria da colina

Pablo Picasso - La Femme aux Pains (1906)

Moacir Pimentel
Pode lhe parecer uma bobice minha escrever tanto sobre um só lugar desse tão vasto mundo, mas é emocionante se estar e voltar onde sabemos que tantas coisas que apreciamos foram pensadas, discutidas, planejadas e realizadas. Em Montmartre, com certeza e de quebra, foram pintadas muitas das grandes telas da humanidade!
Foi  lá que Pablo Picasso pintou sua amada Fernande carregando pão – na tela que inaugura o post - antes de escapar da marcação cerrada da moça e flanar com Georges Braque pelas vielas do bairro. Georges com um boné verde à la Wilbur Wright e Pablo com um dos seus famosos chapéus “cloche” comprados no mercado Le Havre que não tiravam das cabeças nem para almoçar nas mesas ao ar livre dos bistrôs, discutindo os voos dos irmãos Wright e de Santos Dumont, combinando fazer esculturas de papel inspiradas em suas máquinas voadoras.
Foi ali que Cézanne geometrizou a natureza, que Picasso, Georges Braque e Juan Gris - os pais do cubismo – pintaram e colaram as suas bizarrices em série, que Matisse pintou a Alegria de Viver e depois passou a descer a colina para ver no Bateau Lavoir o trabalho de Picasso e Braque, “a arte dos pequenos cubos” – e esse chiste do artista é uma das origens do termo “cubismo”.
Pablo Picasso - L'usine de briques à Tortosa (1909)

Foi por lá que Guillaume Apollinaire e Max Jacob escreveram seus versos e foi bem ali que André Salmon pregou:
“Tudo é possível, tudo é realizável, por todos e em todos os lugares”.
Montmartre não é um lugar mas uma filosofia. Tudo bem que os pintores podem e devem ser visionários e que muitas vezes viajam até mesmo na vanguarda do conhecimento científico. Mas no caso específico do cubismo, um dos seus santos milagreiros foi o matemático amador Maurice Princet.
A “matemática cubista” é uma das famosas histórias do bairro e, bem assim, mais uma de suas coloridas anedotas. Explico: qualquer galeria de arte de respeito, nas imediações da Place du Tertre, terá entre os seus cartazes uma caricatura colorida de um sujeito raivoso rasgando o casaco de uma jovem e bela mulher. Esclareceram-me que se tratava de um tal de Maurice Princet, enlouquecido de ciúmes, porque Alice Géry, sua esposa, se apaixonara doidamente pelo pintor André Derain.
Alice é descrita de forma controversa na mitologia do bairro e na literatura artística. Dona Lenda diz que a moça teria sido “a amante notoriamente infiel de Maurice Princet” pois enquanto namorava o rapaz, também estaria envolvida com Picasso, para quem modelava e que a retratara no desenho A Jovem Inclinada. Já Dona História afirma que Alice foi realmente “lançada” no círculo artístico de Montmartre pelo toureiro e que seus traços angélicos e ar deprimido pareciam encarnar o ideal feminino da fase azul do pintor.
Pablo Picasso - Jeune fille accoudée (1903 / 1904)

Nesse retrato frágil a tristeza diz presente embora a causa específica da melancolia da vítima nos escape, permanecendo deliberadamente indefinida. Na fase azul Picasso criava um vazio em torno das suas mulheres, acentuando a intensidade das emoções e chamando a atenção para os rostos e pescoços, deixando o resto do corpo loooongo e indefinido. Mas ele teve três modelos durante esse período - Madeleine, Margot e Alice - e muitas vezes mesclou os traços fisionômicos das três, misturando os olhos de uma com as maçãs do rosto da outra e com a boca da terceira, criando assim uma perfeita “mulher azul” (rsrs)
Gertrude Stein descreveu Alice Géry como uma criatura que mais parecia uma Madona “com grandes olhos e cabelos encantadores e uma certa qualidade selvagem”. Já Fernande Olivier, então companheira de Picasso, nos garante que durante sete anos Alice fora, sim, fiel a Princet. Então, em março de 1907, para adquirir um certo grau de respeitabilidade e ser promovido no trabalho - quem vivia em pecado com a amante não era exatamente aplaudido - Maurice decidiu se casar e o casal se mudou-se para os arredores de Paris.
Apesar de sua aparência frágil e desanimada no desenho de Picasso, Alice era uma mulher forte, que não tinha medo de viver sua vida como bem entendia. Sucede que a senhora se entediou mortalmente longe do rebuliço de Montmartre e, depois de apenas seis meses de lua de mel, conheceu André Dérain e - @#$%&@!! – deram início a um romance turbulento que fulminou seu primeiro casamento e tornou-se o seu segundo. Alice e Dérain nunca mais se separaram nessa vida até a morte do pintor em 1954.
Mas esse post não é sobre Madame Alice Dérain e sim sobre o primeiro marido traído: Maurice Princet. Apesar de ganhar muito bem a vida no ramo dos seguros, ele era um sujeito de extensa cultura matemática que batia ponto todas as noites nos cafés e cabarés de Montmartre. O homem era um dos mais fieis clientes do Le Lapin Agile, onde é descrito sentado na sua mesa preferida reservada pelo proprietário Frédé, com um caderno e uma caneta nas mãos, fazendo anotações e resolvendo equações.
Francis Carco, no seu livro de memórias dos primeiros anos do século XX de nome The Last Bohemia: From Montmartre to the Latin Quarter - A Última Boêmia: de Montmartre ao Quartier Latin - se lembra de Maurice sempre bem vestido, um cavalheiro zombador e melancólico, possuidor “de inteligência e charme professoriais e dono de uma mentalidade que poderia tornar-se cáustica e diabólica”. Exatamente o tipo de criatura que era mais do que bem vinda no Bateau Lavoir (rsrs)
Todos os artistas e autores envolvidos no cubismo foram, durante um certo tempo, matemáticos amadores que consideraram a pintura como uma aventura intelectual com o objetivo específico de reduzir as formas à geometria. Só que a exploração do espaço feita por Picasso foi mais além e empregou as noções de espaço em quatro dimensões que lhe foram descritas justamente por Maurice Princet.
Os dois homens foram apresentados, é claro, por Alice em 1905, mas a essa altura da história, Princet já era também muito amigo do pintor, escultor e poeta Marcel Duchamp que, à época, era vizinho do espanhol e enturmado com outros artistas e intelectuais como Guillaume Apollinaire e Max Jacob que então viviam no pardieiro conhecido como Bateau Lavoir.
Embora Princet nunca tenha sido uma figura central e carismática da malta vanguardista ele frequentava os rapazes e participava de suas discussões e sessões de haxixe, e visitou Picasso durante os momentos críticos da primavera e do verão de 1907, quando o toureiro estava lutando com as Senhoritas d'Avignon. Ele permaneceu na órbita dos artistas até que sua mulher o deixou definitavamente para morar com André Derain. Cabisbaixo, o pobre homem se afastou de Montmartre, mantendo-se próximo apenas do pintor Jean Metzinger.
André Salmon escreveu que Princet:
“Se preocupava especialmente com os pintores que desdenham a perspectiva antiga. Ele os elogiava por não mais confiarem na óptica ilusória”.
Minha falta de vocação para as exatas não me atrapalha na abstração do fato de que já nas últimas décadas do penúltimo século, vários artistas demonstravam um grande interesse pelo tempo. Isso mesmo: o tempo! O meu pintor impressionista predileto, o grande Claude Monet, bem que tentou representar a passagem do tempo em suas tintas em diferentes séries de telas. Ele capturou as mudanças dos choupos a cada hora do dia e a cada estação do ano.
Claude Monet  -  Peupliers (detalhe)  / Les trois arbres, automne / Peupliers au bord de l'Epte  / Les trois arbres, eté

Depois fez o mesmo com os palheiros de trigo, os campos de papoulas, as catedrais francesas, as Torres de Westminster refletidas no rio Tâmisa e os nenúfares no seu jardim em Giverny. Ao pintar todos esses lugares em diferentes momentos do dia e/ou épocas do ano ele buscava registrar a influência temporal na pintura.
Os experimentos com a luz feitos pelos pintores impressionistas coincidiram com importantes descobertas modernas nas ciências físicas, revelando-nos a dinâmica da luz como uma forma de energia. Ali foi estabelecido um paralelo notável: o conhecimento humano e a nossa vida na prática evoluem simultaneamente.
Não precisa ser nenhum gênio em ciência para entender a teoria de Einstein, concebendo a ideia de espaço-tempo como uma entidade unificada, composta por uma variedade de quatro dimensões: três espaciais e uma temporal.
Primeiro, precisamos lembrar que vivemos em um mundo de três dimensões, certo? Segundo, imaginar alguém acidentado, digamos, em uma cordilheira precisando ser resgatado. Para ser localizada essa pessoa precisaria indicar onde está na geografia circundante, fornecendo sua latitude, sua longitude e a altitude em que se encontra nas montanhas em relação ao nível do mar.
Entretanto, há mais uma importante informação que deve ser indicada: o momento em que a criatura poderá ser encontrada nesse determinado local. E aqui se elabora um importante raciocínio: o tempo pode ser tratado como uma quarta dimensão embora nela, por enquanto, só possamos andar para frente... (rsrs)
Porém quando se trata da percepção fundamentada em princípios científicos, os hábitos enraizados não conseguem dar lugar facilmente às novas possibilidades, que desafiam a consciência imbuída de tradições obsoletas, assim como a nossa vida temperada pela aprendizagem pretérita.
Vale lembrar que a pintura ocidental tivera seus pressupostos científicos estabelecidos no Renascimento. As leis da perspectiva que dominavam a arte ocidental na virada dos dois últimos séculos e cujas insuficiências Braque e Picasso expuseram cabalmente em Montmartre tinha sido formulada fazia mais de quatrocentos anos, pelos arquitetos renascentistas Leon Battista Alberti e Filippo Brunelleschi dois séculos antes dos conceitos de gravidade e do tempo terem sido estabelecidos por Isaac Newton no século XVI.
Alberti e Brunelleschi redescobriram os princípios da perspectiva cônica - que depois de terem sido estudados pelos gregos e romanos ficaram esquecidos durante toda a Idade Média - restabelecendo na prática o conceito de ponto de fuga e a relação entre a distância e a redução no tamanho dos objetos. Seguindo os princípios ópticos e geométricos enunciados por Brunelleschi, os artistas da época puderam reproduzir objetos tridimensionais no plano bidimensional com surpreendente verossimilhança.
Esse sistema de perspectiva inventado em Florença no século XV é uma taquigrafia para a maneira como as coisas pareciam, uma ficção brilhantemente utilizável da aparência do mundo, pois mostrava como as imagens podem ser consistentes e lógicas: o que está mais longe parece menor do que aquilo que está próximo.
Mas apesar do mundo sempre ter estado em movimento ao nosso redor, durante milênios nos contentamos em ver-lhe apenas as superfícies e é por isso que em Montmartre Dona Arte ainda mostrava o tempo independente do espaço, ou seja, cada obra de arte representava, ao fim e ao cabo, um momento diferente.
O certo é os rapazes de Montmartre - os pintores modernos! -, na sua busca de expressão, antipatizavam muitíssimo com a rígida pintura acadêmica. Foi aí que Maurice Princet entrou na conversa e encontrou solo fértil tanto que a História das Artes o apelidou de “o matemático do cubismo”, aquele que desempenhou um papel importantíssimo no primórdios do movimento que rompeu com a tradição e abriu alas para todas as muitas novidades pictóricas posteriores.
Quando conheceu Princet, o toureiro estava interessado em novas formas estéticas, estudava a pintura de André Derain e a nova concepção de arte presente na obra Le Bonheur de Vivre, de Henri Matisse.
Henri Matisse - Le bonheur de vivre (1905)

Picasso, que acreditava que seus trabalhos não eram nem tão bons nem tão vanguardistas, estava tentando caminhar na direção de um novo estilo de pintura que enfatizasse mais a concepção em vez da observação.
Ele refletia sobre vários elementos tais como a geometria de Cézanne, as esculturas ibéricas primitivas que contemplava no Museu do Louvre, as máscaras africanas. E fazia tudo isso resmungando que a arte representava o que sabia e não o que realmente percebia, sonhando promover uma miragem: uma fusão de uma arte dele, que valorizasse mais conceitos e ideias do que os objetos e a sua representação física, misturada com a arte ibérica primitiva. Complicado!
Nessa encruzilhada há registros históricos que comprovam o peso da matemática introduzida por Maurice Princet no trabalho dos cubistas. O pintor fauvista Maurice de Vlaminck, por exemplo, escreveu:
“Eu testemunhei o nascimento do cubismo, seu crescimento, seu declínio. Picasso foi o obstetra, Guillaume Apollinaire, a parteira, Princet, o padrinho”.
Maurice Princet estudava longamente as novas matemáticas e geometrias, conversava sobre elas com Max Jacobs que, por sua vez, se reportava ao seu vizinho Picasso o qual, de imediato, vislumbrava possibilidades de novos esquemas pictóricos e corria para trocar ideias com o crítico de arte Apollinaire, que se apressava a escrever sobre o tema e a coisa se espalhava e se propagava e Montmartre engravidou do cubismo.
Também o pintor Jean Metzinger, nas suas anotações confirma a importância de Princet nos primeiros passos do movimento:
“Maurice Princet se juntava a nós com frequência. Embora muito jovem, graças ao seu conhecimento de matemática, ele nos deixava interessados pelas novas visões sobre o espaço que haviam sido abertas por Schlegel e alguns outros. Princet estava interessado em matemática avançada, em particular no trabalho de Poincaré e, em geral, em geometrias não-euclidianas”.
Voilà! Foi Maurice Princet quem apresentou aos artistas de Montmartre e, em especial, a Pablo Picasso o trabalho “Ciência e Hipótese”, uma obra de reflexão filosófica e científica publicada em 1902 da lavra do brilhante matemático francês Henri Poincaré e com eles debateu detalhadamente sobre as geometrias não euclidianas e sobre o conceito da “quarta dimensão” e outros temas matemáticos que fascinavam a galera.
Henri Poincaré, descrito como “o último dos universalistas”, foi um sujeito versátil: na matemática ele estabeleceu a base para a teoria do caos, na física seus métodos matemáticos ainda são usados no estudo de partículas elementares, na filosofia sua cartilha para explorar as teorias científicas ainda é controversa e na psicologia da criatividade ele estudou o funcionamento do inconsciente.
Longe de ser um cientista estereotipado, um Professor Pardal meio maluco, o pensamento de Poincaré estava mais próximo do de um artista: era espontâneo, pouco consciente, mais como um sonho do que racional, parecendo mais adequado para obras de pura imaginação. Portanto, não é de surpreender que Picasso também tenha se inspirado em seu trabalho.
Tudo bem que o substantivo abstrato “povo” já tinha vislumbrado de relance as tais das dimensões em paragens gregas, simbolizadas no universo de arquétipos e essências pela Alegoria das Sombras de Platão (rsrs) No começo do século XX os matemáticos tentavam explicar às gentes a ideia de uma quarta dimensão invisível para a percepção, fazendo uma alegoria com os prisioneiros daquela caverna: assim como aqueles homens e mulheres acreditavam, erroneamente, que o mundo em duas dimensões de sombras que viam projetadas na parede fosse o real, a nossa percepção de um mundo em 3D seria apenas uma visão empobrecida de uma realidade em quatro dimensões.
No entanto, só no cubismo esse pensamento foi expressado artisticamente, quando os pintores passaram a tentar pintar, de forma simplicada, a miríade infinita de ângulos, as múltiplas perspectivas que teoricamente enxergariam de uma quarta dimensão, de onde seria possível se ver todas as dimensões ao mesmo tempo.
Para perceber como as ideias artísticas se misturaram com as preocupações científicas da época, basta saber que o físico francês Poincaré no seu livro - considerado um dos precursores da Relatividade - buscou entender a simultaneidade, a natureza do espaço e do tempo, debruçou-se em estudos sobre a velocidade da luz e a medição do tempo, e explicava como se podia representar o mundo em quatro dimensões.
Poincaré argumentava que nós só sabemos que os objetos têm três dimensões porque os vemos sequencialmente em diferentes perspectivas. E jurava de pés juntos que, assim como se pode fazer em uma superfície plana – uma tela! - a perspectiva de uma figura em três dimensões, da mesma forma se poderia representar a mesma figura em quatro dimensões, imaginando sequencialmente as perspectivas diferentes que teria caso fosse vista por alguém se deslocando em um espaço de quatro dimensões.
Em 1902 Henri Poincaré já insistia que, longe de ser universalmente ou absolutamente verdade, a geometria euclidiana que, em Alexandria, tinha definido a matemática, era apenas um dos muitos sistemas possíveis e que as suas três dimensões não eram as únicas que poderiam ser concebidas mas, isso sim, o conjunto mais conveniente de hipóteses para negociar a vida. Pensar em três dimensões era prático.
Picasso tinha inquietações muito semelhantes às dos cientistas que, como Einstein, estavam trabalhando na fronteira do conhecimento. Ele se debatia em busca de soluções estéticas novas no epicentro do debate sobre representação versus abstração, dos desenvolvimentos tecnológicos da época - o avião, o telégrafo, o automóvel, os avanços implacáveis da fotografia e o cinema - dos novos conceitos matemáticos e geométricos - como os poliedros complexos - dos debates sobre as quatro dimensões. Tudo isso, entrava no caldeirão que o espanhol revirava.
O toureiro ficou particularmente impressionado com as sugestões de Poincaré, nos conta Princet, sobre como ver e representar essa quarta dimensão em páginas bidimensionais. Mas como projetar as diferentes perspectivas na tela? A sugestão de Poincaré era criar uma de cada vez, mostrando-as em sucessão. Picasso queria retratá-las todas de uma vez. O certo é que, ouvindo Maurice Princet, o espanhol percebeu que essa nova geometria oferecia a linguagem que precisava para se expressar. Só que superou o professor do professor...
Mas isso contaremos noutra conversa.

21/06/2018

Velhice nos tempos do amor

 Käthe Kollowitz - Altes Paar (1932)




Nossos corpos velhos
são tão velhos
e são tão íntimos!
E são amigos
mas não são amantes.
São tristes
mas são calmos.
E distantes
partilhados.
São compreensivos
e aceitos.
Mas ainda desejados.
São procurados
e são achados.
Perdidos no tempo
perdidos no amor.
Mas são amados.
São restados.


Ana Nunes

Para o Editor, meu velhinho preferido, que hoje faz 73!



18/06/2018

Boa Bola!

"Maillots" antigos de natação (fotografia USA Congress Library)

Domingos Ferreira
Tive uma tia avó, Sra Donana, nascida na cidade de Brejo, no Maranhão, (onde as vacas já estavam e agora continuam) no terço final do século XIX. Ela seguia todas as normas da etiqueta inglesa ditadas pela Rainha Vitória, nesse período de fausto do império britânico, onde o sol não se punha.
Também, pudera, ela se casara com um cidadão inglês, chamado James, que “descobrira” o rio Parnaíba e se instalara na sua foz, na cidade de mesmo nome. O inglês invasor era criativo e articulado. Ele não demorou a organizar um grande negócio, abrangendo a importação e exportação de bens variados entre a região banhada rio acima e o porto de Plymouth, na Inglaterra.
A acolhedora foz do Parnaíba passou a ser frequentada por navios da britânica Booth Line, descarregando regularmente os mais variados frutos da revolução industrial, anunciados em catálogos caprichados de firmas e lojas da famosa Oxford Street e cercanias do centro de Londres. Tal procedimento fora consolidado ao longo dos últimos séculos pelos ingleses em todo o mundo, substituindo, paulatinamente, a atividade dos corsários, bancados pela coroa, todos com enormes dividendos para o reinado.
Esse material variava de ferramentas diversas e máquinas de moer cana a vestidos de anquinhas, perfumes e lençóis de linho egípcio, queijo “Palmira” enlatado em bolas vermelhas, etc... Essa tralha subia o Parnaíba em barcaças puxadas por rebocadores, de uma empresa de alemães, também sediada na mesma cidade, sendo distribuída em vilas, fazendas e lugarejos de toda ordem.
Os mesmos rebocadores desciam o rio com suas barcaças abarrotadas de produtos da região, incluindo castanhas variadas, cera de carnaúba agregada em forma de pratos, açúcar, rapadura, farinhas diversas, madeiras de lei, couros, cachaças, chifres e ossos de gado, artesanatos decorativos, redes de dormir, bordados regionais, cocares indígenas, etc... Tudo isso era embarcado nos navios ingleses com destino ao porto de origem.
As parentas de tia Donana, incluindo minha jovem mãe, Maria, vinham das fazendas da família, com frequência, e ficavam hospedadas no casarão que o industrioso e já rico tio Jâmes havia construído. Na verdade, era uma mansão de respeito, a maior de Parnaíba, ou melhor, do Piauí/Maranhão.
E o casarão tinha uma grande novidade: uma piscina de bom tamanho, com trampolim, onde o patriarca praticava natação, metodicamente. Este fato tornou-se o assunto da cidade e vinha gente de fora para admirar a piscina do Seu Jâmes, e achar graça dos “maillots” importados que os “banhistas” da família usavam. Aliás, era uma honraria de alto coturno, ser convidado para frequentar a beira da piscina do inglês, mesmo sem mergulhar nela, por absoluta falta de”maillots” para usar. Emprestados só para parentes. Comprados, só encomendados na Inglaterra...
Muitos bons negócios eram fechados com os privilegiados que atingiam esse Olimpo. Em pouco tempo, foi construído um muro para proteger a intimidade dos “banhistas”, mas, mesmo assim, era possível ver, da rua, os que subiam no trampolim para pular n'água.
Essa história toda é para dizer à Dona Ana que Dona Maria, minha mãe, teve oportunidade de praticar um esporte quando jovem, mas não aproveitou, apesar de ter sido uma pessoa muito ativa.. Ela não gostava da piscina do inglês e, vindo morar no Rio mais tarde, quando nasci na beiramar, em Copacabana, ela caminhava na calçadinha de então, mas não pisava na areia, que “grudava” nos pés.
Na minha geração, eu e um primo de mesmo nome fomos moleques de praia em Copa e Ipanema. Ele se especializou em mergulho, tendo sido um dos introdutores no Brasil das tecnologias de mergulho livre e pesca submarina com equipamento. Bateu vários recordes de profundidade e de pesca com arpão. Eu preferi o frescobol, o tênis e principalmente a vela, minha paixão, tendo sido campeão da classe “Guanabara”. Velejei, também, nos Estados Unidos, no Mediterrâneo e no Havaí.
Aí apareceu Dona Marlene, meu esteio. Uma filha e três filhos. Vida que corre. Vários submarinos. Imensidão da Amazônia. Muitas viagens. Povos diferentes. Civilizações diversas. O tempo passou muito rápido. Filhos criados e espalhados pelo mundo. Netas australiana e americanas.
O ritmo do aposentado diminuiu. A televisão cresceu. O computador é um amigo não muito confiável. Tenho horror ao Facebook. Se bobear, te engole. Marlene não gosta dele. Eu não gosto de televisão. Bicho barulhento na sala. Pior que ela, só os smartphones com os selfies. Marlene, minha filha e minhas netas adoram. Temos um zilhão de fotos...!!!???
Dona Ana, seu texto sobre esportes é um primor. Marlene, cada vez mais, dedica tempo para acompanhar diversas competições na telona. Nosso filho solteirão, que mora conosco, é o contraregra organizador da programação, inclusive fazendo gravações para que possamos, mais ou menos, dormir em paz. Quando não, ela vara a noite...
Rimos muito ao ler seu desabafo apaixonado. Nesse ponto, Marlene é igualzinha a você. Sabe, de cor, as programações, os nomes dos jogadores/as dos times de volley, de basquete americano, de tênis, de futebol, etc...
Imagine como vai ser nossa Copa do Mundo...
Marlene, eleita sua irmã, lhe manda um beijo e um abraço.


16/06/2018

Chuvas, óculos e avôs

fotografia WBJ

Pedro Nunes Baptista
Só quem usa sabe os efeitos da chuva num par de óculos: tal qual um carro sem limpadores de para-brisa, o míope é promovido a quase cego.
Hoje à noite saí para uma volta de bicicleta, com um amigo, e fomos surpreendidos por uma baita chuva, inesperada, forte e bem molhada.
Pedalando de volta, com os óculos cheios de gotas de água e ofuscado pelos faróis dos carros na pista ao lado eu não via quase nada, e vinha lembrando de quando tomei a minha primeira chuva usando lentes de contato, devia ter uns quinze anos. Que maravilha, podia ser o maior pé-d’água que eu me sentia num chuvisquinho sem vergonha, todo molhado, é verdade, mas vendo tudo.
Percebi naquela época que eu media a intensidade da chuva pelo tanto que ela atrapalhava a minha visão, e que o fato de estar molhado era um efeito quase secundário.
Cheguei em casa, meu amigo continuou seu caminho e fui, sujo e feliz (adoro andar de bicicleta) direto para o banho. Saí do chuveiro, me enxuguei, e olhei os meus óculos em cima da pia do banheiro, ainda respingados da chuva. Deveria lavá-los, mas não sei por que comecei a enxugá-los com a toalha de rosto, mesmo sabendo (também só o sabe quem os usa) que inevitavelmente o resultado não seria satisfatório. Nessa hora veio uma lembrança, de mais de trinta anos atrás. Era a minha missa de formatura da oitava série, à tarde. Teve aula de manhã, a igreja era perto do colégio e não voltei pra casa, eu e mais um colega almoçamos na casa de um outro, lá perto. No caminho para a igreja, uma chuvarada. Quase que uma chuveirada. Encharcados, sem tempo de voltar para a casa do amigo (e de que adiantava, se a roupa chique da missa, camisa branca, de botão, já estava toda molhada...) seguimos em frente. Chegando na igreja, os óculos molhados, míope promovido, mal percebi um vulto em pé, sob a marquise da igreja. Só bem perto reconheci: era meu avô, sorrindo ao ver aquele grupo de adolescentes ensopados.
O resto da família já estava lá dentro, ele deve ter saído da igreja para fumar, imagino hoje, trinta anos depois. Na época nem me toquei, lembro te ter achado estranho ele lá fora sozinho, e, encharcado, pensei: - Lá vem gozação!
Tirei meus óculos, comecei enxugá-los na ponta da camisa, tão molhada quanto eles, numa tentativa tão desajeitada quanto infrutífera (só o sabe quem os usa...).
E eis que meu avô, com um carinho que eu nunca tinha visto, toma os óculos das minhas mãos, tira um lenço do bolso e com um cuidado que eu também nunca tinha imaginado começa a enxugá-los. De cima para baixo, percorrendo cada lente lentamente em movimentos retos, completos, perfeitos, e depois repetindo de um lado ao outro, empurrando a água e a sujeira cuidadosamente para fora das lentes. Já não me lembro se ele disse alguma coisa, mas era desnecessário. Naquele instante, assim como agora, ficou óbvio para mim que era uma aula, a experiência de anos sendo passada de avô para neto, de míope para míope. Por fim me entregou os óculos, incrivelmente limpos, e entramos na igreja.
Esse ano faz quinze anos que meu avô morreu. Hoje a saudade veio forte com essa lembrança, forte como há muito não vinha, mas veio como toda saudade deveria ser: feliz, muito feliz.