Dennis Hopper e Peter Fonda em "Easy Rider" (fotografia Pilotguides.com) |
Heraldo Palmeira
Um ícone
vai sendo formado pelas histórias que se repetem ao longo do tempo. Quando se
percebe, virou retrato de identidade de mais e mais pessoas.
A estrada
foi inaugurada em 1926, dentro do plano nacional de autoestradas do governo dos
Estados Unidos. Com cerca de quatro mil quilômetros, era parte de um conjunto
de noventa e seis rodovias destinadas a facilitar a mobilidade dos norte-americanos
para todos os pontos do país. Os trajetos Norte-Sul receberam números ímpares;
os Leste-Oeste, pares.
Do ponto inicial
em Chicago até o ponto final no famoso píer da praia de Santa Mônica, cruzava quase
duzentas cidades espalhadas por oito estados (Illinois, Missouri, Kansas,
Oklahoma, Texas, Novo México, Arizona e Califórnia). Um trajeto de mais de
cinquenta horas no asfalto, enfrentando múltiplas paisagens, temperaturas,
áreas inóspitas e sensações únicas. Em determinados pontos, ganhou tal
importância que algumas cidades foram se formando ao redor e o asfalto virou
área urbana. Há alguns anos o trajeto final foi estendido até o Sunset
Boulevard, em Los Angeles.
Nas primeiras
décadas serviu de rota para aventureiros ou gente que buscava melhores
condições de vida na já famosa Costa Oeste. Também era um caminho novo por onde
os jovens pioneiros iam se livrando dos costumes conservadores da Costa Leste,
até sentir o vento marinho das praias do Pacífico na ensolarada e liberal
Califórnia. Na verdade, todos queriam encontrar os próprios destinos que haviam
projetado.
A estrada
era um cenário de novidades. Estavam nela o Eagle, primeiro motel da história.
A primeira lanchonete McDonald’s. O Joey Cafe oferecendo combustível, comida e
local e hospedagem. O MidPoint Cafe indicando o ponto exato do meio da viagem.
O pequeno 66 Motel, que funciona desde a década de 1940 e ostenta uma das
placas de néon mais famosas do trajeto. O Cadillac Ranch com seus dez carros semienterrados
na areia, mostrando a evolução do modelo de 1949 a 1963. Sem contar o parque
Joshua Tree, onde o corpo do músico Gram Parsons foi cremado numa cena
espetacular, depois que seu amigo Phil Kaufman roubou o corpo do criador do country
rock – já estava no aeroporto, pronto para ser trasladado até a Flórida para as
cerimônias fúnebres.
Na
verdade, Kaufman apenas atendeu a um pedido do cantor e compositor porque, certa
feita, ele havia dito que quando morresse não gostaria de ser enterrado,
desejava que seu corpo fosse cremado naquele ponto do deserto.
Em razão
da relativa proximidade geográfica com a estrada, a cidade de Las Vegas e o
Grand Canyon terminaram somados às atrações originais do trajeto.
Desde que
jogou suas câmeras sobre a Rota 66, o cinema iniciou o processo de construção
do mito. As vinhas da ira, filme clássico de 1940 do lendário diretor John Ford,
mostra a saga de uma família de agricultores obrigada a abandonar a fazenda onde
vivia. Eles partem de Oklahoma e tomam a estrada para buscar uma prosperidade que
idealizaram como redentora na Califórnia, sob a liderança do filho Tom, que
acabara de sair da prisão e estava em liberdade condicional.
Repetiram
outras tantas famílias que tomaram a estrada durante a Grande Depressão para
deixar a região denominada Dust Bowl (Bolsão de Poeira) que se espalhava por Colorado,
Kansas, Oklahoma e Texas. Esse êxodo pode ter inspirado a canção Route 66, gravada
em 1946 por Nat King Cole e que ajudou a fortalecer o imaginário popular de
liberdade e esperança que a estrada representava.
Em 1960,
uma série de televisão da CBS denominada Route 66 – que ficou no ar até 1964 – pouco
tinha a ver com ela, mas valeu-se da sua mítica. Inteiramente filmada em
ambientes de (outras) estradas trilhadas por um encantador Corvette conversível,
apenas nos três primeiros episódios fez alguma referência à Rota 66.
Exatamente
em 1969, no crepúsculo de uma década espetacular para a cultura pop, dois homens
desarvorados sobem em suas motocicletas Harley-Davidson e seguem gastando o
mesmo asfalto numa representação daqueles tempos de sexo, drogas, rock’n’roll, cabelos
ao vento, liberdade sem lenço e sem documento, no melhor do estilo hippie.
O filme Easy
rider (Sem destino) foi o limiar de uma nova linguagem cinematográfica do que
ficou denominado “Nova Hollywood”.
Apesar do
clima conturbado das filmagens, muito em razão dos ataques de fúria e consumo
cavalar de drogas do diretor e ator Dennis Hopper, a produção resultou num dos road
movies mais icônicos do cinema, levado pelos guidons de Wyatt (Peter Fonda) e Billy
(Dennis Hopper), dois caras comuns cujo estilo de vida era um retrato mais do
que realista daqueles tempos de contracultura. Na verdade, os personagens representavam
muito de perto tipos como os próprios atores naquelas alturas das suas vidas. De
lambuja, a participação soberba de Jack Nicholson (George), outro easy rider da
melhor estirpe.
Esse filme
deu um impulso monumental para transformar a Rota 66 em ícone americano e na
estrada mais famosa do mundo. E comprovando que a ficção pode consolidar o
retrato de identidade de mais e mais pessoas, Tom, o filho que liderou o clã
Joad na saga de 1940 – que iniciou a história cinematográfica da rodovia –, foi
um dos grandes papéis da carreira de Henry Fonda, o pai de Peter Fonda,
produtor, um dos roteiristas e protagonista da aventura sobre duas rodas, cuja
personagem também vivia em desarmonia com a lei.
Se isso
fosse pouco, 1969 também registrou a morte do escritor Jack Kerouac, que traçou
os parâmetros de uma geração sem parâmetros, os beatniks. Não por acaso, autor de
On the road (Pé na estrada), um livro escrito a partir das intermináveis
andanças sem destino em condições miseráveis que ele fez durante sete anos (nos
anos 1940) pela vastidão dos Estados Unidos. Vagou na companhia do amigo Neal
Cassady principalmente pela Rota 66. Nascia ali a idealização de viver na
estrada, a fantasia de encontrar saída fugindo das agruras cotidianas num
cenário sempre em trânsito, que inundou a cultura pop com grande intensidade nos
anos 1960.
O cinema
continuou transitando com suas câmeras pela estrada. Golpe de Mestre (1973), Bagdad
Cafe (1987), Thelma & Louise (1991), Forrest Gump – O contador de histórias
(1994) e o filme de animação Carros, com personagens e cenários inspirados em
partes da estrada.
Mesmo conhecida
como “Estrada Mãe” e “Rua Principal da América”, começou a dar sinais de
envelhecimento a partir de 1950, quando as autoestradas interestaduais apareceram
nos mapas com mais funcionalidade, simplificando trajetos e cheias de avanços
tecnológicos. Essa novidade provocou o desaparecimento dos viajantes e do
dinheiro que movia todos os negócios e pequenas cidades nos oito estados por
onde ela se estendia.
Apesar de
resumir a cultura e a contracultura norte-americanas, de ter sido fonte e rota
de fuga de diversos paradigmas, em 1985 deixou de fazer parte do US Highway
System, o sistema de autoestradas do governo dos Estados Unidos. Desde então ganhou
um daqueles títulos eméritos que soam como um consolo mal disfarçado: “Histórica
Rota 66”. Passou a viver do passado mantendo alguns prédios, monumentos e uma boa
indústria de souvenires.
Ao ser retirada
do sistema viário, pedaços do seu trecho original terminaram incorporados por
outras vias expressas mais novas, largas, rápidas, seguras e modernas. Diversas
partes que ficaram inúteis à malha rodoviária oficial foram abandonadas, mas continuam
disponíveis para os aventureiros.
Teve
início um grande trabalho de marketing e investimentos privados de restauração.
Tudo para convencer as pessoas a reviverem o apogeu da estrada, cujo espírito
parecia transitar em motos Harley-Davidson e Indian, triciclos, motorhomes, Mustang,
Camaro e Corvette conversíveis...
Cada vez
mais turistas chegam para fazer uma espécie de viagem no tempo por pontos lendários.
Há trechos que levam a lugar nenhum, cidades fantasmas no meio do nada e centros
urbanos nervosos que aparecem tentando quebrar o encanto com semáforos e
engarrafamentos.
A velha
estrada é um enorme portal de acesso para as diferenças culturais e costumes
particulares de cada região – indígenas, velhos caubóis, outsiders e urbanoides
tecnológicos. Se algo parecer meio empoeirado, basta pisar no acelerador e
seguir adiante ouvindo o ronco do motor, o vento e a trilha sonora.
Viajar
pela Rota 66 revela o retrato do mundo que se pretende reino das diversidades, mas
segue repetindo muito do que já foi um dia, emperrado numa espécie de museu de
grandes novidades. E a velha estrada corroída pelo tempo parece rir entrementes,
ciente de que permanece no mesmo papel de eixo de ligação entre sensações que
nunca envelhecem. É certo que o desgaste dos pneus levará apenas ao território
de um passado idealizado como se fosse melhor do que tudo que veio depois; nada
além de nostalgia. O calor, o frio, o vento, três fusos horários, a poeira, as
sucatas do abandono, a tristeza, o desencanto, a solidão, os motociclistas seguem
todos zanzando ali. Implacáveis. Sem destino.
Conhecer
ou rever aquele mundo de faz de conta movido a gasolina é uma comprovação de
que um ícone foi sendo formado pelas histórias que se repetem ao longo do tempo.
Quando se percebe, virou retrato de identidade de mais e mais pessoas que
parecem as mesmas, apenas deslocadas no tempo. É assim que sempre foi; deverá
continuar sendo por muito tempo.
Embarcar na rota do tempo pela Rota 66 será sempre uma aventura inesquecível. Boa viagem!