Aquarela Ana Nunes |
Ana Nunes
Hoje
comecei celebrando o dia chuvoso cinza e brilhante com uma caneca diferente,
tipo café irlandês ou o que seja: café batizado com whisky. É bom viu gente?!!!
Junto celebro meus mortos amigos, mortos família, completa angústia.
Depois falo disso. Porque quero mesmo é falar da “elegância do ouriço”. E da maravilha do saber!
Meu
filho me impôs uma faxineira. Pobre de mim, descobri que estou velhinha,
velhinha, como a minha querida Laura! Mas minhas dores artríticas melhoraram
tipo metade.
A minha faxineira me assombra cada dia. Tudo bem, é histérica com poeira e
achou aqui, nesse mercado persa que é nossa casa, um ninho fértil. Mas ela me diverte, sem saber, com sua
alegria e eloquência. E bota eloquência nisso! E fiquei animada. E quando fico
animada sou insuportável...e estou introduzindo na cabecinha de cinquenta e
três anos dela o vírus da arte. Tive o primeiro retorno ontem, depois de falar
da Fridinha Kalo e de xilogravura. Quando pendurávamos um quadro de gravura em
metal ela disse- Estou aprendendo tanta coisa de arte! Quase saí rodando e
bailando pela sala.
Em vez disso prometi emprestar livros. Mal sabe ela que tenho planos de para
casa...
Nada
disso importa hoje. É só um pouquinho de partilhamento de blá blá blá.
O fato mesmo é que é um encanto vê-la comer. Delicada, bocados pequenos e uma
paciência do sem fim. Tão diferente de mim! (Até rimou!) parece estar comendo o
doce dos deuses. E pode ser mexerica que já dou descascada (sim, faço isso) ou
um pedaço de bolo ou apenas uma fatia de mamão. E ontem, no meio da manhã, fiz
uma abacatada e fomos comer juntas na cozinha. Eu no banquinho e ela na
escadinha. E fiquei admirando sua educação. E ali sentada, ouvindo, pensando e
partilhando, me lembrei do livro A elegância do Ouriço que curti cada página
como se fosse a última. E depois muitas vezes assisti ao filme. É uma delicada
estória da zeladora (concierge no livro) que mora no prédio onde trabalha e que
nenhum dos esnobes moradores sabe da sua intelectualidade e finesse. Apenas uma
menina diferente que é sua amiga e um senhor japonês mudado há pouco. Só eles a
conhecem na intimidade dos seus livros e desfrutam de sua companhia.
E
fiquei pensando, porque o pensamento vem até mesmo quando não queremos nada com
ele, que é um privilégio essa tal de alegria do saber. A gente vai vivendo e
ajuntando experiências. Vai lendo e colecionando personagens e seus modos de
ser e pensar. Aprendemos com eles como se estivessem vivos. A gente vai
viajando seja mato adentro ou mundo afora e vai guardando imagens e culturas,
bebendo nessa fonte de palavras que nem entendemos bem.... Minha mãe sapeca em
Israel sempre que entrava em um shopping dizia “Shalom!” para o segurança. E eu
pensava: ainda pegam essa velhinha! Tremia de medo esperando a reação do homem!
E quando menina, viajando de jipe com meu pai roça afora , eu ganhava café bem
doce da dona da casa visitada. E conhecia um mundo muito diferente do meu.
Singelo, simples, hospitaleiro. Era tão menina que nem sabia disso. Mas hoje eu
sei que já sabia disso! Se não, como lembrar?
E
nesse aprendizado eclético, que nem é só escola nem família, é a própria vida (como
já disse GGil, “e só por ela ser”), fazemos conexões surpreendentes até mesmo
para nós mesmos! Assim como eu liguei essa pessoa à criatura criada da
personagem do ouriço. Imagino, ou tento, as sinapses dessas criaturas muito lidas
e viajadas, que vão virando googles domésticos, do que são capazes quando
conversam ou veem ou leem! São outros livros, outros filmes, outras vidas.
Seja
conhecer um truque de arrumação, seja saber de um solo especialista em peneirar
água da chuva, o Teko explicou tudinho sobre nosso solo rico e generoso, seja
conhecimento das galáxias, dá-lhe Mochileiro, seja um simples olhar para o
caramujo despojado que leva a casa nas costas ou um tatuzinho que se enrosca e
se esconde em si mesmo para se proteger do ultraje. Para depois continuar
incólume seu caminho desconhecido. E o ouriço que espeta na elegância.
Gente,
é a pura e insubstituível alegria do saber!
Este
post dedico ao Chicão, que para quem não o conheceu foi a nossa querida e
verdadeira “elegância do ouriço”.