Fotografia WBJ |
Wilson
Baptista Junior
Quando eu
era garoto, morávamos na casa de nossos pais e avós, já escrevi por aqui alguma
coisa sobre ela.
Era uma
casa grande, dois andares em cima de uma garagem que tinha uma escada interna para
a casa e que, por causa da inclinação do terreno, ficava parcialmente
enterrada.
Ao lado
da garagem, nesse “meio subsolo”, Papai, apaixonado pela fotografia, fez a sua
câmara escura, para nós um laboratório mágico cheio de produtos químicos misteriosos,
vidrarias esquisitas e lâmpadas vermelhas, onde as imagens apareciam
misteriosamente sobre o papel branco mergulhado em bandejas esmaltadas.
Com o
tempo fomos aprendendo os segredos da revelação de filmes e ampliações e muitas
vezes eu ficava, até bem tarde, assistindo Papai produzir suas fotografias
maravilhosas.
A câmara
escura, que chamávamos simplesmente “a câmara”, era um espaço grande, de
aproximadamente quatro por quatro metros, isolada do restante da garagem por
uma cortina de plástico pesado preto, que quando fechada era à prova de luz.
Nossa primeira geladeira (do lado de meus pais, porque do lado de meus avós já
existia uma mais antiga, que até hoje reside, funcionando, na casa para a qual
depois nos mudamos abaixo do mosteiro das Beneditinas) foi entregue num grande
caixote de madeira compensada (naquele tempo não se ouvia falar de isopor nem
de mandar encomendas em caixotes de papelão). Instalada lá em cima a geladeira,
Papai pegou o caixote, deitou-o de lado no meio da câmara, instalou dentro
algumas prateleiras, cobriu o lado que ficou para cima com um plástico
resistente grampeado nas bordas, instalou uma tomada de força e transformou-o
numa bancada de trabalho. Por toda a nossa vida essa bancada ficou se chamando
simplesmente “o caixotão”.
Ganhamos
(os filhos) um brinquedo maravilhoso da época, chamava-se “Poliopticon” e era
fabricado pela D.F Vasconcellos, uma empresa brasileira que fabricava produtos
óticos de grande qualidade. Era um conjunto de tubos, adaptadores e lentes que
permitiam montar lunetas, binóculos, lupas, microscópios, e que ajudou a todos
nós entendermos melhor como funcionavam essas coisas. Um brinquedo que infelizmente
hoje não se fabrica mais e que atinge altos preços no mercado de coisas usadas
pela utilidade e qualidade.
Ganhei de
presente, em algum aniversário, um pequeno microscópio, que me lembro tinha
três objetivas, a mais potente das quais aumentava até trezentas vezes. Foi como descobrir um mundo novo para mim. Coloquei-o
em cima do caixotão, com uma lâmpada posicionada para iluminar seu espelho, e
comecei a ver coisas como, por exemplo, o crescimento mágico dos cristais de
certos produtos químicos dissolvidos em água, como a hidroquinona, que parecia
um filme de animação se desenrolando à frente dos meus olhos. Um dia um amigo
de Papai, que se tornou também um grande amigo de todos nós, levou lá em casa
um microscópio “de verdade”, apanhou gotas d’agua das poças do nosso quintal,
nos mostrou a vida fervilhante que existia naquele mundo tão pequeno. Vendo meu
interesse, e sabendo quer eu tinha o microscopiozinho, me deu de presente um
livro em espanhol sobre microscopia. Aí comecei a entender como se fazia para
preparar espécimes para serem observados, como se coloriam para destacar as
características daqueles seres quase transparentes, e assim por diante.
Montei um
pequeno laboratório em cima do caixotão, com as ferramentas da oficina que Papai
tinha instalado ao longo de uma das paredes da garagem (essa sozinha dá toda
uma outra história) fiz aparelhos como uma estativa de lupa para dissecção, um micrótomo
rudimentar utilizando as lâminas afiadíssimas dos aparelhos de gilete que se
usavam na época, compramos na loja de um amigo de Papai (Orlando Greco) as
plaquinhas de vidro e as plaquinhas, finas como fio de cabelo, entre as quais
se colocavam os espécimes para observar. Alguns dos produtos químicos
utilizados já existiam no laboratório de Papai, como o azul de Metileno, com o
qual eu coloria fatias finíssimas de batatas para observar os grãos de amido.
Quando
terminei o ginásio e comecei o científico (assim se chamavam na época os graus
do ensino médio) Papai encomendou para mim um microscópio de verdade. Olhamos
com muito cuidado o catálogo de uma famosa loja de São Paulo que vendia pelo
correio, a Fotóptica, que depois se transformou numa loja que vendia apenas
óculos. E encontramos um microscópio Meopta, com todos os requisitos, fabricado
na Tchecoslováquia (hoje República Tcheca), mas com preço ao alcance (apertado)
das possibilidades financeiras.
Me lembro
do dia em que, por uma coincidência rara, vi a chegada do tão sonhado microscópio.
Estava na varanda de cima de nossa casa, dois andares e meio acima da rua,
mexendo nos livros de uma estante que ficava lá, quando ouvi o barulho de um
caminhão (bons tempos em que o tráfego da avenida Barbacena era leve) e olhei
para baixo. Um grande caminhão de carroceria aberta vinha subindo pelo outro
lado da rua, contornou o retorno que ficava pouco acima de nossa casa, e parou
em frente a ela. Lá de cima eu via a carroceria como de uma vista aérea.
Completamente vazia exceto por, exatamente no meio, uma caixa amarrada com
correias para não se deslocar. Era a encomenda da Fotóptica. Até hoje não sei
se era simplesmente a última entrega que faltava fazer ou por que outro motivo
mandaram aquele enorme caminhão levar aquela pequena caixa até lá em casa. De
qualquer maneira essa imagem está viva, até hoje, na minha lembrança.
Usei
muito esse microscópio nos três anos do científico, replicando em casa muitas
das experiências da cadeira de biologia do colégio, e descobrindo muitas outras
coisas interessantes. Mas, saindo do colégio, fui cursar engenharia, e cada vez
o usava menos. Quando me casei trouxe-o para casa, e, já sem o laboratório, morando
em apartamento, usava-o esporadicamente para coisas como examinar com grande
aumento se havia desgaste nas agulhas das cápsulas de toca discos do
equipamento de som de alta fidelidade (assim se chamava naquela época) que
tinha montado (um desses toca discos também foi personagem de um post no
Conversas, faz bastante tempo)
Nossos
dois filhos cresceram e foram cursar engenharia, fizeram aí suas carreiras, e o
microscópio ficou encostado em sua caixa até que Papai me pediu que o levasse
para um de meus sobrinhos, que ia cursar (e cursou) Biologia. Esse sobrinho se
formou e foi trabalhar longe de Belo Horizonte, e dei o microscópio por muito
bem empregado na sua carreira.
Aí vieram
nossos dois netos, todos os dois maravilhosos (sou um avô babão confesso). O
mais velho desde pequeno era apaixonado por todo o tipo de vida animal, e seu sonho
era cursar e trabalhar com biologia. Quando chegou à idade em que podia
aproveitar, demos para ele de presente um microscópio que era a versão moderna
do meu de menino – hoje perdido nas sombras do tempo - junto com o livro que
nosso amigo há tantos anos me tinha dado, e nosso outro filho, tio dele, lhe deu
de presente uma coleção de lâminas preparadas com todo o tipo de espécimes.
O netinho
foi crescendo, e seu interesse pela vida animal não foi diminuindo, agora com
dezessete anos se dedica, nas horas vagas, à fotografia de pássaros (principalmente)
e outros bichos, fotografias muito boas que posta em sua página do Instagram.
Enquanto
isso, o sobrinho biólogo mudou de carreira (pressões de mercado) e se tornou um
especialista em TI trabalhando com as novas tecnologias de block chain e suas
aplicações em entidades financeiras. Então pedi ao pai dele, meu irmão, que lhe
perguntasse se ainda usava o microscópio, porque se não tivesse mais utilidade
para ele eu gostaria de passá-lo para o neto mais velho.
Para
minha surpresa, o sobrinho respondeu que não tinha levado o aparelho quando se
mudou de Belo Horizonte, e estava guardado até hoje (há tantos anos) no armário
de meu falecido pai.
Fui
buscá-lo e o trouxe para casa. Abrindo a caixa (a fechadura girou com
dificuldade e a chave estava meio enferrujada) vi que alguns danos inevitáveis
pelo longo armazenamento sem uso tinham ocorrido: As almofadas de feltro do
lado de dentro da caixa tinham se ressecado e se desfaziam em pó ao serem
tocadas, os delicados mecanismos de movimento da platina (que permitem mover o
espécime em deslocamentos muito pequenos) estavam emperrados, o mecanismo que
trocava de posição as objetivas também. Mas tudo provavelmente porque os
lubrificantes tivessem secado e agarrado.
Desmontei
o microscópio, limpei e lubrifiquei os mecanismos, limpei a parte externa das
lentes do condensador, das oculares e objetivas, o meu netinho mais novo, apaixonado
por máquinas e mecanismos, que estava agitando novamente nossa casa passando
uns dias conosco, raspou e limpou cuidadosamente os locais das almofadas de
feltro de dentro da caixa, lubrifiquei a fechadura e tirei a ferrugem da chave.
Quando montei de novo o aparelho, o encantamento do netinho ao ver, pela
primeira vez, a rugosidade e as falhas da tinta de uma impressora laser numa
folha de papel aparentemente tão lisa e tão bem impressa, a composição e as
escamas de um fio do seu cabelo, ou descobrir que as finas nervuras das asas de
uma abelhinha que tinha morrido porque não encontrou a saída da janela tinham
também cabelos microscópicos, fez valer a pena todo o trabalho.
O neto
mais velho está viajando, ainda não viu o microscópio, mas ele agora está à sua
espera, pronto para voltar a ser útil e ajudar a desvendar para ele os
mistérios dos mundos tão pequenos. E quem sabe quererá agora passar para o
irmão mais novo o microscopiozinho que também ganhou quando era menor?