A Árvore Grande
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Papai e Mamãe - fotografia Paulo Baptista |
Wilson Baptista Junior
Ontem vendemos a casa de meus
pais.
Não, não foi aquela de que já
falei aqui no blog, que eles construíram, junto com meus avós paternos, quando
se casaram, e onde nasci e cresci.
Aquela meus pais venderam quando
nos mudamos para essa de agora, e ainda está lá, no mesmo lugar, sem os jardins
de hortênsias e de rosas e com os muros baixos onde a gente se sentava para
conversar atravancados por grades altas com concertinas, fruto dos novos usos
que os sucessivos donos depois de nós lhe deram e do medo que não existia no
nosso tempo.
A que vendemos ontem foi a casa
da família durante cinquenta e seis anos. A minha mãe lhe deu o nome de “Vila
São José” (que ainda está lá, na parede que dá para a rua, numa linda placa de
madeira entalhada por meu pai). Até hoje não tenho muita certeza do porquê do
nome, se foi devoção dela, se tem a ver com a data quando nos mudamos, ou, como
me fala mais ao coração, pela tradição de marcenaria dos trabalhos de meu pai.
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fotografia Paulo Baptista |
Nessa casa viveram e cresceram meus irmãos e irmãs mais novos. Lá mamãe, minha avó paterna, Vovó Dindinha, minha tia-avó Didida, e finalmente meu pai viveram até o fim de suas vidas. Lá comandou a cozinha a Neném, filha de uma cozinheira da casa anterior, que cresceu conosco na Barbacena, sempre foi uma querida pessoa da família – morria de ciúme de suas receitas, que não ensinava a ninguém - e ficou conosco até a morte de Papai. Eu só morei lá dois anos, me casei com Ana e começamos nossa própria casa. Meus irmãos e irmãs foram também saindo, um a um, e mortas a avó, a tia-avó, a mãe e o pai ficaram apenas o Paulo (Teko) e a Patrícia (Pat), sua mulher, fiéis guardiões da casa e da memória da família, e nossos anfitriões, à velha moda mineira do delicioso cafezinho e broa de fubá sempre que lá voltamos.
O Osias (Zia) depois do seu
divórcio voltou a morar lá, dividindo com o Teko e a Pat a companhia do Papai e
depois a guarda da casa e das memórias até meados do ano passado.
Mas tenho muitas e muitas
lembranças, porque foi sempre a casa da família, o centro de nós todos, onde
nos reuníamos nas festas, onde ouvíamos as histórias de nossos velhos queridos,
onde procurávamos no carinho dos corações deles o apoio aos nossos nas oscilações
da vida.
A casa fica numa subida bem
forte, um pouco abaixo do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, onde uma irmã
de mamãe, Maria Cândida, tia sábia e querida, era freira beneditina, e que de
vez em quando escapava do mosteiro (sua idade, e a ligação da nossa família com
o mosteiro lhe davam certos privilégios) e passava um dia com a família. É
voltada para dentro, o desnível do terreno dava uma bela vista da cidade, que
papai sabiamente, comprando o lote de baixo para evitar que construíssem um
prédio, preservou. Depois, quando ele e mamãe dividiram os bens em vida, uma de
minhas irmãs, arquiteta, ficou com esse lote e construiu lá sua linda e
acolhedora casinha.
Só agora, nos trâmites para a
venda, descobrimos que o morro por detrás se chama... Morro de São José.
Coincidência ou presságio?
Mas nunca chamamos a casa por
esse nome. No jardim para onde abrem as janelas das salas há uma árvore grande,
forte e alta, um flamboyant plantado por minha irmã Maria Laura, a Bala, que sombreia
o jardim e divide com um breu a paisagem. Primeiro chamávamos a casa simplesmente
de “a casa”, e depois quando Papai morreu ela virou a “Árvore Grande”, que era
o nome da árvore onde morava a macacada (alegoria da nossa família) no seu
livro “O Macaco Juca”.
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fotografia Wilson Baptista Junior |
Depois, com o tempo, as outras árvores, do lado voltado para a rua, um tamarindo, um cinamomo e um ipê roxo, que já estavam lá quando compramos a casa, e um mandacaru que Papai plantou com uma muda do que crescia junto à varanda da nossa casa da Barbacena, cresceram também e hoje sombreiam imponentes a entrada que quase nunca era usada, porque sempre foi mais fácil receber as visitas pela porta da cozinha, que dá para a garagem e a entrada de carros. E, na descida do jardim, uma jabuticabeira, um pé de limão capeta e um pé de romã foram ficar mais abaixo de um grande flamboyant, cujas raízes hoje tornam a descida uma corrida de obstáculos.
Mas a mudança não deixou de ter
os seus perrengues. O antigo dono da casa (não vou dizer quem era), que como
arquiteto era um bom criador de pássaros, projetou mal os alicerces da parte
que dá para o vale, e construiu atabalhoadamente uma piscina (soubemos depois)
principalmente com o intuito de valorizar a casa para a venda. Essa piscina em
pouco tempo começou a perder água. Em vão refizemos os rejuntes dos azulejos do
fundo, até que um dia, retirando uma fieira deles junto à parede que dava para
o vale, descobrimos que, por incrível que pareça, as ferragens do fundo de
concreto não se conectavam com as da parede, e uma fenda a todo comprimento
estava se abrindo entre o fundo e a parede...
Portanto, foi preciso demolir
tudo e fazer outra piscina. Nela nós todos nos divertíamos, meus filhos e uma
multidão de sobrinhos e sobrinhos netos aprenderam a nadar.
Anos depois (eu já não morava lá)
houve problema de infiltrações no teto e trincas aparecendo do lado da sala.
Chamado um engenheiro de solos, especialista filho de um grande amigo do meu
pai e meu, verificou que não havia apoio para a viga que delimitava o piso do final
das salas, que aparentemente tinham sido uma segunda etapa da construção. Aí,
foi preciso escavar enormes buracos e encher de pedras e concreto tudo em baixo
das duas salas. E tirar todo o piso do grande terraço superior, instalar mantas
de asfalto e refazer o piso. Isso, claro, com a família morando lá. Podem
imaginar o que passaram – e o que pensaram.
Quando eu disse que o antigo dono
como arquiteto era um bom criador de pássaros, ele realmente era um bom criador
de pássaros, registrado, e o terreno e dois cômodos (um no terraço, em cima da
garagem, outro construído em cima da oficina que ele tinha feito nos fundos da
parte mais baixa) era cheio de gaiolas e cercados. Quando isso tudo foi
removido, uma enorme quantidade de ração tinha escorrido para tudo o que era
buraco e fenda do terreno. Resultado: uma enorme quantidade de camundongos e
diversas ratazanas tinham assumido o lugar.
Passamos um bom tempo com uma
carabininha de ar comprimido tentando reduzir a fauna invasora. Muito útil como
prática de tiro ao alvo mas um trabalho de Sísifo. A população só foi
exterminada quando acabou a ração e afinal com a chegada de dois lindos cães mestiços
de pastores belgas e fila, de pelagem negra, um macho e uma fêmea, presenteados
a meu pai.
Estes dois (o Gud e a Kichute)
tiveram primeiro dois filhotes, que Papai deu de presente ao meu sogro e que
foram morar na casa de Governador Valadares, lá batizados de KiSaco e KiFofa,
nos quais nossos dois filhos chegaram a montar quando pequeninos, depois o
Akela e a Raksha. Depois da família vieram sucessivamente o Hagar, um pastor
alemão de pelagem negra, o Cato, um pastor alemão de pelo curto, e a Chachani,
uma mestiça de pastor belga, de pelagem negra, que foi a última de Papai e
morreu de uma síncope pouco depois dele morrer. A última guardiã da casa foi a
Jesse, uma pastora alemã que adorava “morder” a água que saía da torneira do
jardim.
Depois, muito depois dos cães,
veio uma gata, a Lili, mestiça de siamesa, e por último a Tutuca, uma gatinha
preta que morou lá até a venda da casa.
O antigo dono tinha construído,
nos fundos do lote da piscina, uma oficina, que Papai ampliou em “L”, primeiro como
um quarto para acomodar o Andrade, nosso querido amigo marceneiro que
trabalhava para nós, baiano valente filho de um coiteiro do Lampião, com um
banheiro para não precisar subir até a casa quando o trabalho fosse demorado, e
mais tarde para reposicionar com mais folga seus bancos de trabalho e suas
máquinas-ferramentas. Nela teve a alegria de instalar um dos seus sonhos de
muito tempo, um torno de bancada da Sanches Blanes para trabalhar metal, que
veio se juntar, para trabalhos maiores, ao Unimat com que fez trabalhos
maravilhosos e que hoje, restaurado com carinho, está na minha pequena oficina
no quarto dos fundos de nosso apartamento.
Me lembro de quando o torno
chegou, ele e nós filhos homens levantando com cuidado a pesada máquina para
instalá-la em cima do suporte. E da sua alegria de vê-la funcionar.
Em cima da oficina o antigo dono
tinha feito um telheiro para criação de pássaros. Papai o converteu num
escritório, com estantes de livros, sua coleção de antigas máquinas de escrever
compradas e usadas ao longo do tempo, uma escrivaninha e uma mesa para refazer
o presépio animado que tinha construído na casa antiga e tinha se danificado ao
longo do tempo. Fez de novo todas as figuras e acrescentou outras novas, os
mecanismos que as animavam pequenas joias de aço, latão, plástico e madeira,
movidos agora por motores elétricos em miniatura em vez do antigo motor único
com uma multiplicidade de polias de madeira e correias feitas com barbantes
encerados do presépio antigo.
Perto da oficina, do outro lado
do portão que limitava o acesso do jardim de cima para o de baixo, aproveitando
um ressalto debaixo de uma laje que prolongava o jardim Papai construiu sua
câmara escura, menor do que a da casa antiga, mas infiltrações através da junta
da laje com o muro de arrimo inutilizaram o cômodo e destruíram muitos dos seus
insubstituíveis negativos, para grande desgosto dele e nosso. O Paulo, meu
irmão, acabou transformando com sucesso o banheiro grande da casa num
laboratório fotográfico.
No andar de baixo, a casa tinha
três quartos, um banheiro grande e um pequeno, duas salas (uma menor e outra
maior, ambas com grandes portas-janelas para o jardim), copa e cozinha. No
andar de cima, um quarto grande de teto em catedral, que dava para um terraço
largo, um quarto pequeno e um banheiro. O terraço, que também tinha uma escada
externa, levava a um cômodo construído em cima da garagem, originalmente
concebido para criar canários, que foi convertido num belo escritório/estúdio mais
tarde ocupado pelo material fotográfico do Paulo.
Dividimo-nos, os três irmãos mais
velhos no quarto grande de cima, os dois mais novos no quarto pequeno de cima, as
três irmãs no quarto dos fundos, Vovó Dindinha e Didida no quarto do meio. Na
sala grande ficou a mobília de sala de visitas e sala de jantar da Vovó e a
escrivaninha de Papai que tinha sido do nosso avô, na sala pequena o piano de
Mamãe, que de vez em quando recebia a música da Tia Maria Cândida e do Dom
Alcuíno, capelão do mosteiro, muito nosso amigo, um suíço grandão, já entrado
em anos, músico e antigo alpinista que trabalhou vinte e tantos anos entre os
índios no Roraima e que de vez em quando ia visitar Mamãe e aproveitava para
tocar o piano que não tinha no mosteiro, um sofá, cadeiras, e uma belíssima
arca de pau brasil, herança da casa de Santa Luzia de Mestre Augusto e Dona
Cocota, avós de Papai. O piano mais tarde foi para a sala grande, e foi nele
que o André, nosso caçula, desenvolveu muito da música que anos mais tarde o
fez abandonar a arquitetura para se tornar primeiro um flautista e depois
compositor e dono de um estúdio de gravação. Na copa, a mobília de sala de
jantar e a cristaleira de Mamãe. Papai mandou fazer uma estante em toda a
parede maior da sala grande, contornando a janela com seu parapeito acolchoado
para sentar e tirar uma prosa, e os armários da cozinha, pelo Seu Luiz, um
mestre marceneiro - os armários foram tão bem feitos que as portas não tocavam a
estrutura mas a gente sentia a resistência do ar ao fecha-las.
No quarto de casal, que dava para
o jardim, acrescentou um banheiro só para eles (velho sonho dos dois na casa
antiga) e uma porta que dava para o jardim, formando um cantinho acolhedor para
a escrivaninha onde Mamãe gostava de escrever.
No corredor que ligava a copa aos
quartos foi construída uma longa estante para abrigar os livros de Mamãe, junto
com uma menor ao lado da entrada da escada que subia para o segundo andar.
Junto dessa estante, um quadro a
bico de pena e aquarela retrata a “Árvore Grande”, em formato de árvore
genealógica com todos os moradores da época em que foi pintado sentados nos
seus galhos. Uma lembrança preciosa, pintada por uma arquiteta amiga, Liana Valle.
Hoje, no quarto grande lá de cima estão o Teko e a Pat, o quarto pequeno foi durante um tempo o quarto do filho deles, o Francisco, que nós todos chamamos de Chico, até que se formou em biologia e foi o inspirador do meu neto Artur, que é apaixonado por bichos, até que deixou a carreira para se tornar um especialista em programação de block-chain.
De Vovó, Didida, Mamãe e Papai e
outros dos antigos já falei em outros lugares desse blog. Além das deles, são
dezenas, centenas talvez de boas histórias que aconteceram nessa casa, mas como
fui quem saiu de lá mais cedo a maior parte delas só são minhas por ouvir
dizer, e em vez de tentar conta-las aqui vou deixar isso por conta dos irmãos e
irmãs, dos sobrinhos e sobrinhos-netos, como fizemos com a casa da Barbacena,
uma narrativa a muitas mãos que foi crescendo e tomando vida à medida em que
circulava entre nós. Certamente essa nova narrativa vai tomar vida fora desse
blog. Então fica aqui, para vocês, uma tentativa de dividir um pouco do meu
agradecimento por tantos anos felizes e pelas saudades grandes que essa casa,
que abrigou as vidas felizes de nós todos vai deixar.
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A família em 1989 - eu sou o segundo da esquerda, atrás, ao lado da Neném fotografia Paulo Baptista |