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05/04/2025

 

A Árvore Grande 

Papai e Mamãe - fotografia Paulo Baptista

 Wilson Baptista Junior

 

Ontem vendemos a casa de meus pais.

Não, não foi aquela de que já falei aqui no blog, que eles construíram, junto com meus avós paternos, quando se casaram, e onde nasci e cresci.

Aquela meus pais venderam quando nos mudamos para essa de agora, e ainda está lá, no mesmo lugar, sem os jardins de hortênsias e de rosas e com os muros baixos onde a gente se sentava para conversar atravancados por grades altas com concertinas, fruto dos novos usos que os sucessivos donos depois de nós lhe deram e do medo que não existia no nosso tempo.

A que vendemos ontem foi a casa da família durante cinquenta e seis anos. A minha mãe lhe deu o nome de “Vila São José” (que ainda está lá, na parede que dá para a rua, numa linda placa de madeira entalhada por meu pai). Até hoje não tenho muita certeza do porquê do nome, se foi devoção dela, se tem a ver com a data quando nos mudamos, ou, como me fala mais ao coração, pela tradição de marcenaria dos trabalhos de meu pai.

 

fotografia Paulo Baptista

Nessa casa viveram e cresceram meus irmãos e irmãs mais novos. Lá mamãe, minha avó paterna, Vovó Dindinha, minha tia-avó Didida, e finalmente meu pai viveram até o fim de suas vidas. Lá comandou a cozinha a Neném, filha de uma cozinheira da casa anterior, que cresceu conosco na Barbacena, sempre foi uma querida pessoa da família – morria de ciúme de suas receitas, que não ensinava a ninguém - e ficou conosco até a morte de Papai. Eu só morei lá dois anos, me casei com Ana e começamos nossa própria casa. Meus irmãos e irmãs foram também saindo, um a um, e mortas a avó, a tia-avó, a mãe e o pai ficaram apenas o Paulo (Teko) e a Patrícia (Pat), sua mulher, fiéis guardiões da casa e da memória da família, e nossos anfitriões, à velha moda mineira do delicioso cafezinho e broa de fubá sempre que lá voltamos.

O Osias (Zia) depois do seu divórcio voltou a morar lá, dividindo com o Teko e a Pat a companhia do Papai e depois a guarda da casa e das memórias até meados do ano passado.

Mas tenho muitas e muitas lembranças, porque foi sempre a casa da família, o centro de nós todos, onde nos reuníamos nas festas, onde ouvíamos as histórias de nossos velhos queridos, onde procurávamos no carinho dos corações deles o apoio aos nossos nas oscilações da vida.

A casa fica numa subida bem forte, um pouco abaixo do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, onde uma irmã de mamãe, Maria Cândida, tia sábia e querida, era freira beneditina, e que de vez em quando escapava do mosteiro (sua idade, e a ligação da nossa família com o mosteiro lhe davam certos privilégios) e passava um dia com a família. É voltada para dentro, o desnível do terreno dava uma bela vista da cidade, que papai sabiamente, comprando o lote de baixo para evitar que construíssem um prédio, preservou. Depois, quando ele e mamãe dividiram os bens em vida, uma de minhas irmãs, arquiteta, ficou com esse lote e construiu lá sua linda e acolhedora casinha.

Só agora, nos trâmites para a venda, descobrimos que o morro por detrás se chama... Morro de São José. Coincidência ou presságio?

Mas nunca chamamos a casa por esse nome. No jardim para onde abrem as janelas das salas há uma árvore grande, forte e alta, um flamboyant plantado por minha irmã Maria Laura, a Bala, que sombreia o jardim e divide com um breu a paisagem. Primeiro chamávamos a casa simplesmente de “a casa”, e depois quando Papai morreu ela virou a “Árvore Grande”, que era o nome da árvore onde morava a macacada (alegoria da nossa família) no seu livro “O Macaco Juca”.

 

fotografia Wilson Baptista Junior

Depois, com o tempo, as outras árvores, do lado voltado para a rua, um tamarindo, um cinamomo e um ipê roxo, que já estavam lá quando compramos a casa, e um mandacaru que Papai plantou com uma muda do que crescia junto à varanda da nossa casa da Barbacena, cresceram também e hoje sombreiam imponentes a entrada que quase nunca era usada, porque sempre foi mais fácil receber as visitas pela porta da cozinha, que dá para a garagem e a entrada de carros. E, na descida do jardim, uma jabuticabeira, um pé de limão capeta e um pé de romã foram ficar mais abaixo de um grande flamboyant, cujas raízes hoje tornam a descida uma corrida de obstáculos.

Mas a mudança não deixou de ter os seus perrengues. O antigo dono da casa (não vou dizer quem era), que como arquiteto era um bom criador de pássaros, projetou mal os alicerces da parte que dá para o vale, e construiu atabalhoadamente uma piscina (soubemos depois) principalmente com o intuito de valorizar a casa para a venda. Essa piscina em pouco tempo começou a perder água. Em vão refizemos os rejuntes dos azulejos do fundo, até que um dia, retirando uma fieira deles junto à parede que dava para o vale, descobrimos que, por incrível que pareça, as ferragens do fundo de concreto não se conectavam com as da parede, e uma fenda a todo comprimento estava se abrindo entre o fundo e a parede...

Portanto, foi preciso demolir tudo e fazer outra piscina. Nela nós todos nos divertíamos, meus filhos e uma multidão de sobrinhos e sobrinhos netos aprenderam a nadar.

Anos depois (eu já não morava lá) houve problema de infiltrações no teto e trincas aparecendo do lado da sala. Chamado um engenheiro de solos, especialista filho de um grande amigo do meu pai e meu, verificou que não havia apoio para a viga que delimitava o piso do final das salas, que aparentemente tinham sido uma segunda etapa da construção. Aí, foi preciso escavar enormes buracos e encher de pedras e concreto tudo em baixo das duas salas. E tirar todo o piso do grande terraço superior, instalar mantas de asfalto e refazer o piso. Isso, claro, com a família morando lá. Podem imaginar o que passaram – e o que pensaram.

Quando eu disse que o antigo dono como arquiteto era um bom criador de pássaros, ele realmente era um bom criador de pássaros, registrado, e o terreno e dois cômodos (um no terraço, em cima da garagem, outro construído em cima da oficina que ele tinha feito nos fundos da parte mais baixa) era cheio de gaiolas e cercados. Quando isso tudo foi removido, uma enorme quantidade de ração tinha escorrido para tudo o que era buraco e fenda do terreno. Resultado: uma enorme quantidade de camundongos e diversas ratazanas tinham assumido o lugar.

Passamos um bom tempo com uma carabininha de ar comprimido tentando reduzir a fauna invasora. Muito útil como prática de tiro ao alvo mas um trabalho de Sísifo. A população só foi exterminada quando acabou a ração e afinal com a chegada de dois lindos cães mestiços de pastores belgas e fila, de pelagem negra, um macho e uma fêmea, presenteados a meu pai.

Estes dois (o Gud e a Kichute) tiveram primeiro dois filhotes, que Papai deu de presente ao meu sogro e que foram morar na casa de Governador Valadares, lá batizados de KiSaco e KiFofa, nos quais nossos dois filhos chegaram a montar quando pequeninos, depois o Akela e a Raksha. Depois da família vieram sucessivamente o Hagar, um pastor alemão de pelagem negra, o Cato, um pastor alemão de pelo curto, e a Chachani, uma mestiça de pastor belga, de pelagem negra, que foi a última de Papai e morreu de uma síncope pouco depois dele morrer. A última guardiã da casa foi a Jesse, uma pastora alemã que adorava “morder” a água que saía da torneira do jardim.

Depois, muito depois dos cães, veio uma gata, a Lili, mestiça de siamesa, e por último a Tutuca, uma gatinha preta que morou lá até a venda da casa.

O antigo dono tinha construído, nos fundos do lote da piscina, uma oficina, que Papai ampliou em “L”, primeiro como um quarto para acomodar o Andrade, nosso querido amigo marceneiro que trabalhava para nós, baiano valente filho de um coiteiro do Lampião, com um banheiro para não precisar subir até a casa quando o trabalho fosse demorado, e mais tarde para reposicionar com mais folga seus bancos de trabalho e suas máquinas-ferramentas. Nela teve a alegria de instalar um dos seus sonhos de muito tempo, um torno de bancada da Sanches Blanes para trabalhar metal, que veio se juntar, para trabalhos maiores, ao Unimat com que fez trabalhos maravilhosos e que hoje, restaurado com carinho, está na minha pequena oficina no quarto dos fundos de nosso apartamento.

Me lembro de quando o torno chegou, ele e nós filhos homens levantando com cuidado a pesada máquina para instalá-la em cima do suporte. E da sua alegria de vê-la funcionar.

Em cima da oficina o antigo dono tinha feito um telheiro para criação de pássaros. Papai o converteu num escritório, com estantes de livros, sua coleção de antigas máquinas de escrever compradas e usadas ao longo do tempo, uma escrivaninha e uma mesa para refazer o presépio animado que tinha construído na casa antiga e tinha se danificado ao longo do tempo. Fez de novo todas as figuras e acrescentou outras novas, os mecanismos que as animavam pequenas joias de aço, latão, plástico e madeira, movidos agora por motores elétricos em miniatura em vez do antigo motor único com uma multiplicidade de polias de madeira e correias feitas com barbantes encerados do presépio antigo.

Perto da oficina, do outro lado do portão que limitava o acesso do jardim de cima para o de baixo, aproveitando um ressalto debaixo de uma laje que prolongava o jardim Papai construiu sua câmara escura, menor do que a da casa antiga, mas infiltrações através da junta da laje com o muro de arrimo inutilizaram o cômodo e destruíram muitos dos seus insubstituíveis negativos, para grande desgosto dele e nosso. O Paulo, meu irmão, acabou transformando com sucesso o banheiro grande da casa num laboratório fotográfico.

No andar de baixo, a casa tinha três quartos, um banheiro grande e um pequeno, duas salas (uma menor e outra maior, ambas com grandes portas-janelas para o jardim), copa e cozinha. No andar de cima, um quarto grande de teto em catedral, que dava para um terraço largo, um quarto pequeno e um banheiro. O terraço, que também tinha uma escada externa, levava a um cômodo construído em cima da garagem, originalmente concebido para criar canários, que foi convertido num belo escritório/estúdio mais tarde ocupado pelo material fotográfico do Paulo.

Dividimo-nos, os três irmãos mais velhos no quarto grande de cima, os dois mais novos no quarto pequeno de cima, as três irmãs no quarto dos fundos, Vovó Dindinha e Didida no quarto do meio. Na sala grande ficou a mobília de sala de visitas e sala de jantar da Vovó e a escrivaninha de Papai que tinha sido do nosso avô, na sala pequena o piano de Mamãe, que de vez em quando recebia a música da Tia Maria Cândida e do Dom Alcuíno, capelão do mosteiro, muito nosso amigo, um suíço grandão, já entrado em anos, músico e antigo alpinista que trabalhou vinte e tantos anos entre os índios no Roraima e que de vez em quando ia visitar Mamãe e aproveitava para tocar o piano que não tinha no mosteiro, um sofá, cadeiras, e uma belíssima arca de pau brasil, herança da casa de Santa Luzia de Mestre Augusto e Dona Cocota, avós de Papai. O piano mais tarde foi para a sala grande, e foi nele que o André, nosso caçula, desenvolveu muito da música que anos mais tarde o fez abandonar a arquitetura para se tornar primeiro um flautista e depois compositor e dono de um estúdio de gravação. Na copa, a mobília de sala de jantar e a cristaleira de Mamãe. Papai mandou fazer uma estante em toda a parede maior da sala grande, contornando a janela com seu parapeito acolchoado para sentar e tirar uma prosa, e os armários da cozinha, pelo Seu Luiz, um mestre marceneiro - os armários foram tão bem feitos que as portas não tocavam a estrutura mas a gente sentia a resistência do ar ao fecha-las.

No quarto de casal, que dava para o jardim, acrescentou um banheiro só para eles (velho sonho dos dois na casa antiga) e uma porta que dava para o jardim, formando um cantinho acolhedor para a escrivaninha onde Mamãe gostava de escrever.

No corredor que ligava a copa aos quartos foi construída uma longa estante para abrigar os livros de Mamãe, junto com uma menor ao lado da entrada da escada que subia para o segundo andar.

Junto dessa estante, um quadro a bico de pena e aquarela retrata a “Árvore Grande”, em formato de árvore genealógica com todos os moradores da época em que foi pintado sentados nos seus galhos. Uma lembrança preciosa, pintada por uma arquiteta amiga, Liana Valle.

Hoje, no quarto grande lá de cima estão o Teko e a Pat, o quarto pequeno foi durante um tempo o quarto do filho deles, o Francisco, que nós todos chamamos de Chico, até que se formou em biologia e foi o inspirador do meu neto Artur, que é apaixonado por bichos, até que deixou a carreira para se tornar um especialista em programação de block-chain.

De Vovó, Didida, Mamãe e Papai e outros dos antigos já falei em outros lugares desse blog. Além das deles, são dezenas, centenas talvez de boas histórias que aconteceram nessa casa, mas como fui quem saiu de lá mais cedo a maior parte delas só são minhas por ouvir dizer, e em vez de tentar conta-las aqui vou deixar isso por conta dos irmãos e irmãs, dos sobrinhos e sobrinhos-netos, como fizemos com a casa da Barbacena, uma narrativa a muitas mãos que foi crescendo e tomando vida à medida em que circulava entre nós. Certamente essa nova narrativa vai tomar vida fora desse blog. Então fica aqui, para vocês, uma tentativa de dividir um pouco do meu agradecimento por tantos anos felizes e pelas saudades grandes que essa casa, que abrigou as vidas felizes de nós todos vai deixar.

 

A família em 1989 - eu sou o segundo da esquerda, atrás, ao lado da Neném
fotografia Paulo Baptista

Uma lembrança, que só nós entenderemos, vai ficar gravada no lugar - o prédio que será construído lá vai se chamar... Vila São José.