Ana Nunes
Hoje eu tive um sonho.
Com um personagem da minha estória. Ou devo já
dizer história?
Dele não sei a cor nem os passos. E nem conheço
a voz. Só sei mesmo dos bigodes brancos e da palavra livre.
E nessa estória inventada pela minha mente
oculta, da qual também sei tão pouco, esse personagem remete de longe um livro
para o amigo que vive comigo.
E era um livro que queríamos muito e nunca
compramos, de lombada dourada e papel bem fino. Pequeno e gordo como uma
pequena bíblia. E sobre uma das primeiras folhas descobri a dedicatória para o
amigo. Era em letras finas e douradas que me fez desejar uma caneta assim.
Adoro canetas e lápis (deveria ser lápises, repito porque já disse antes)
pretos macios e de muitos coloridos. Nessa dedicatória de nenhuma lembrança
guardei mesmo foi a assinatura, elegante e espichada quase sem dar para ler.
Assinatura curiosa que fiquei tentando escutar as letras para saber o dono.
O amigo ficou contente. Demais. E para estragar
um pouco essa festa coloquei em dúvida a postagem do pacote: -Não veio de
longe, veio daqui mesmo. Conheço a livraria. Mas como, o personagem esteve aqui
tão perto e não quis nos ver? Procurei a embalagem do correio para configurar
certezas. E nessa incerteza veio a tristeza que acabou com o sonho! Pena mesmo,
o livro era lindo! E o amigo, saudoso!
Esse sonho veio no fio do livro que lia antes de
adormecer. Um livro bonito e mais para pequeno, de lombada vermelha e folha
amarelada, capa macia gostosa de pegar. Tudo bem alaranjado. De um japones que para mim nada tem a ver com as outras estórias
japonesas que já li. Disso se incube um filho que sabe das novidades
literárias, parece uma traça ele, e se incumbe da minha intelectualidade.
Intelec atualidade mesmo, porque da antiga cuidou minha mãe querida. Com ela
fiz desde cedo amizade com Sartre, Dostoiewsky e Stendhal, Jorge Amado que me
levaram pelas vinhas da ira e campos de girassol, pelo recôncavo baiano e pela
neve que nunca vi. Nem peguei para sentir o frio. Mas vivi plena no sertão do
Guimarães.
Esse delicado livro de lombada cor do
mercúriocromo dos cortes da infância, agradável ao toque, tive vontade de
dividir com o querido deitado ao lado mas,por artes do demônio, desisti. Queria
mesmo era falar da maciez ao pegar, das folhas amareladas de fio vermelho, e
das letras bem cuidadas. Tem livros novos que as capas brilhantes me dão gastura
na gastrite atrófica e fico pegando neles com ajuda de papel. E esse de hoje me
dá conforto e gratidão. Além do que, o mais importante, o conto, que descreve
as miudezas e imperfeições dos humanos através do inteligente olhar de uma
robozinha menina de nome Klara, que aos poucos vai colecionando e desenvolvendo
imagens. Não sei se é isso mesmo. Mas com a Klara ou através dela também vou
colecionando e desenvolvendo imagens. E desembrulhando o livro.
Esse livro deixou no seu rastro do quase dormir
o sonho do livro quase dourado e do amigo sumido. Quando, nesses dias de
pandemia, o que mais tenho tido são sonhos no mundo dos mortos.