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12/09/2021

Um sonho no fio da folha

 


Ana Nunes


Hoje eu tive um sonho.

Com um personagem da minha estória. Ou devo já dizer história?

Dele não sei a cor nem os passos. E nem conheço a voz. Só sei mesmo dos bigodes brancos e da palavra livre.

E nessa estória inventada pela minha mente oculta, da qual também sei tão pouco, esse personagem remete de longe um livro para o amigo que vive comigo.

 

E era um livro que queríamos muito e nunca compramos, de lombada dourada e papel bem fino. Pequeno e gordo como uma pequena bíblia. E sobre uma das primeiras folhas descobri a dedicatória para o amigo. Era em letras finas e douradas que me fez desejar uma caneta assim. Adoro canetas e lápis (deveria ser lápises, repito porque já disse antes) pretos macios e de muitos coloridos. Nessa dedicatória de nenhuma lembrança guardei mesmo foi a assinatura, elegante e espichada quase sem dar para ler. Assinatura curiosa que fiquei tentando escutar as letras para saber o dono.

O amigo ficou contente. Demais. E para estragar um pouco essa festa coloquei em dúvida a postagem do pacote: -Não veio de longe, veio daqui mesmo. Conheço a livraria. Mas como, o personagem esteve aqui tão perto e não quis nos ver? Procurei a embalagem do correio para configurar certezas. E nessa incerteza veio a tristeza que acabou com o sonho! Pena mesmo, o livro era lindo! E o amigo, saudoso!

 

Esse sonho veio no fio do livro que lia antes de adormecer. Um livro bonito e mais para pequeno, de lombada vermelha e folha amarelada, capa macia gostosa de pegar. Tudo bem alaranjado.  De um japones que para mim nada tem a ver com as outras estórias japonesas que já li. Disso se incube um filho que sabe das novidades literárias, parece uma traça ele, e se incumbe da minha intelectualidade. Intelec atualidade mesmo, porque da antiga cuidou minha mãe querida. Com ela fiz desde cedo amizade com Sartre, Dostoiewsky e Stendhal, Jorge Amado que me levaram pelas vinhas da ira e campos de girassol, pelo recôncavo baiano e pela neve que nunca vi. Nem peguei para sentir o frio. Mas vivi plena no sertão do Guimarães.

 

Esse delicado livro de lombada cor do mercúriocromo dos cortes da infância, agradável ao toque, tive vontade de dividir com o querido deitado ao lado mas,por artes do demônio, desisti. Queria mesmo era falar da maciez ao pegar, das folhas amareladas de fio vermelho, e das letras bem cuidadas. Tem livros novos que as capas brilhantes me dão gastura na gastrite atrófica e fico pegando neles com ajuda de papel. E esse de hoje me dá conforto e gratidão. Além do que, o mais importante, o conto, que descreve as miudezas e imperfeições dos humanos através do inteligente olhar de uma robozinha menina de nome Klara, que aos poucos vai colecionando e desenvolvendo imagens. Não sei se é isso mesmo. Mas com a Klara ou através dela também vou colecionando e desenvolvendo imagens. E desembrulhando o livro.

 

Esse livro deixou no seu rastro do quase dormir o sonho do livro quase dourado e do amigo sumido. Quando, nesses dias de pandemia, o que mais tenho tido são sonhos no mundo dos mortos.

7 comentários:

  1. Léa Mello Silva12/09/2021, 14:43

    Mano esqueceu de colocar o nome da autora mas só pode ser vc Ana
    Sonhar um sonho bom é ótimo !! Fiquei curiosa de saber quem é este amigo
    Vc como sempre nos dando de presente um texto muito bom
    Sensível e delicado
    Já estava com saudades de vc
    Um abraço bem apertado nem que seja só na memória
    Como é bom abraçar !!!

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    1. Querida Léa,
      Acho que estou virando lua nova, levo uma quinzena para aparecer.
      O certo é que acabo aparecendo!
      Para você,minha querida prima, muitos sonhos dourados como o meu. E também um abraço bem apertado de muita saudade. O último foi no seu aniversário não foi? Abraço escondido em plena rua!
      Gratidão.

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  2. Francisco Bendl16/09/2021, 07:49

    A frase não é minha mas, comenta-se, volta e meia, que a vida de algumas pessoas é um livro aberto.

    No entanto - uma particularidade curiosa e interessante -, é que mesmo tendo as suas folhas escancaradas para quem quiser lê-las, muitas vezes o texto não é compreendido; não está ao alcance mental de interpretações rasas, pois quem irá se deleitar com o conteúdo precisa, antes de mais nada, conhecer e entender o autor.

    O enigma de uma leitura ser devidamente compreendida e aceita ou rejeitada mesmo que inteligível, reside na intenção do escritor ou poeta ou cronista ou quem gosta de escrever.
    Se o conhecemos, saberemos que as suas intenções sempre serão as melhores possíveis, então acreditamos naquilo que nos oferece, pois terá o nosso crédito, admiração, e a certeza de que se trata de outra grande obra.

    Aninha faz isso conosco.

    Não importa o que escreve e como escreve; não vem ao caso a sua inspiração ou não; pouco importa o tema abordado.
    As postagens da Ana nos obrigam a lê-las porque possuem densidade, recado a ser transmitido, mensagens que, se aparentemente enigmáticas, na verdade são de fácil compreensão, pois a mulher se comunica conosco através da sua sensibilidade, da sua agudeza de espírito, atualidade, visão deste mundo, inteligência superior e capacidade de nos fazer pensar, refletir, questionar.

    Um livro – só leio no seu estado físico, pois não consigo usar a Internet para esta finalidade – deve ser agradável ao tato; a encadernação deve chamar à atenção pelo bom gosto; as folhas devem ser gostosas de manusear; o livro deve ser tratado como se fosse o autor pessoalmente, então devemos respeitá-lo, e deixar-lhe à vontade no convívio conosco, e devidamente protegido numa prateleira com portas.

    Pois o livro que a Ana sonhou e não quis compartilhar com o companheiro Mano – sem qualquer alusão política -, diz respeito somente a ela. Trata-se do seu entendimento, interpretação, da sua satisfação em folhear o volume que está em suas mãos, e tão bonito quanto foi a sua imaginação sobre este volume.
    Certamente o seu amigo, que deveria estar roncando ao seu lado (hehehehehehehehehehehehehe) não fosse gostar de ser acordado por um simples livro ou poderia maravilhar-se com ele ou poderia agradecer à sua companheira a satisfação compartilhada, poderia.
    Mas, certos momentos devem ser exclusivos, e não se trata de egoísmo, não.

    Na verdade, queremos pensar para nós mesmos; queremos que a nossa vida seja um belo livro aberto, porém somos impedidos porque corremos o risco de ser mal interpretado ou criticado veementemente pelos relatos contidos neste volume, então virá a tristeza, a decepção como companhia e a frustração empurrando ambas para cima do pensamento idílico, entre o livro e quem o está lendo.

    Agora, vamos e venhamos:
    A frase lapidar que a Aninha usou, que no fio de uma folha podemos narrar um sonho, é digna de enaltecimento, reconhecimento e aplauso pela grandiosidade do seu significado.

    Parabéns, Ana, por mais esta crônica saborosa, sensível, inteligente, que tanto nos impulsiona à reflexão.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz, extensivo aos teus amados.


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    1. Querido Chicão,
      Mais um post seu sobre o escrito e a escritora. Daria um livro se ajuntasse todos.
      Já pensou se um de nós, ou ambos, ficássemos celebridade e aí, depois de mortos, fizessem um livro de nossa correspondência? Como o livro belo do Saramago e Jorge Amado, Van Gogh e o irmão Teo e muitos outros....
      Tambēm gosto de ler no estado físico da capa e das folhas. Além do que, o livro é um objeto do desejo, bonito, misterioso porque não sabemos o que leva dento, e sedutor. Nisso leva jeito o mistério.
      E que assim seja.
      Para você um livro bem palpável e um sonho no fio da folha.
      Ainda bem que ainda sonhamos!
      Atē mais.

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  3. Antonio Rocha19/09/2021, 22:37

    Bons sonhos literários Ana, boas palavras, boas imagens, bons desenhos, bons bicos de pena.

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  4. Heraldo Palmeira05/10/2021, 18:11

    Ana,
    O mundo da fantasia que a arte nos dá. A literatura e seus artifícios que se oferecem para que você possa criar suas fantasias cheias de artimanhas, que viram arte. É quando chega naquele ponto de duvidar se a mente é mesmo oculta ou se estamos nos ocultando dela aqui neste plano tão plano.

    Adorei o "lápises", muito mais elegante e representantiva dos tantos que colecionamos ao redor. Se todos têm cores próprias, por que não num plural que ainda não foi inventado?

    Estou começando a duvidar desse tal mundo dos mortos, talvez seja um mundo só com uma cortina grossa no meio, que a gente só ultrapassa quando termina a peça que pregamos nos outros aqui nesta cena cotidiana. Esse parece ser o rastro do seu bendito livro dourado de páginas finas e capa macia, contando da arte que poucos enxergam a tempo. Até mais!

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    1. Querido Heraldo,
      Seu comentário foi melodia para meus olhos e calorzinho no coração. Sem falar nas letras mágicas que me deram alegrias!
      Muito, muito grata.
      Até mais onde der.

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