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Fotografia de Carlos Monteiro |
Carlos
Monteiro
“La
poesia tiene una comunicación secreta con los sufrimientos del hombre. Amar es
breve, olvidar lleva tempo.” – Pablo Neruda
Fico
imaginando a despedida com uma trilha sonora. Aquela sensação de falha, de
perda. A impressão de já ir tarde ou de que não devia ter vindo. Prenúncio de
Odete Lara, de tristeza e falta inevitável e inefável.
Alguns
poetas descreveram, musicalmente, esta vereda desarmoniosa. São canções que, em
algum momento, ‘ouvimos’ num background imaginário, junto com a lágrima fugidia
que disfarçadamente enxugamos, mas que insistiu em permanecer marejando
sofridamente nosso olhar.
Esses
poemas teriam sido escritos para um amor partido? Para um coração
descompassado? Para um adeus quase inexistente, daqueles que não há? Em que pensavam
Noel Rosa, Ivan Lins, Vitor Martins, Adelino Moreira, Enzo Passos, Ataulfo
Alves, Accioly Neto, Lupicínio Rodrigues, Antônio Maria, Tom Jobim e Chico
Buarque, de todos o que melhor poetizou na despedida?
A
separação tem três passos distintos e extremamente marcantes. O impacto do
instante, quando o afastamento é iminente. Naquela hora são ditas juras de
amor, são feitos pedidos de desculpas, promessas de que tudo se ajeitará e
voltará fortalecido, que o amor superará todas as dificuldades, desavenças e
diferenças. Que amor não se joga fora, que a sorte não pode ser entornada, de
forma tão leviana, pelo chão. O olhar é de adeus, de descrença, que se arrasta,
que arranha, porque o amor deixa marcas que não são possíveis ser apagadas.
Ficarão como tatuagens coronárias para sempre.
No
segundo período algumas farpas são trocadas que logo evoluem para acusações
mútuas, passando para ameaças, não físicas, mas morais. Puro Esopo. Nerudas são
cobrados, discos são pedidos de volta – um Pixinguinha não pode ser abandonado,
gêneros musicais são questionados, estilos são criticados, aquela roupa,
comprada num brechó do Soho, passa ser horrorosa e os amados tornam-se quase
inimigos. E o pijama? Nada mais ridículo que um pijama. Tomam a saideira do
licor preferido e há muito bebido. A chave é jogada por debaixo da porta, sim a
porta onde jaz tapete, para nem pensar numa volta. O portão é batido sem fazer
alarde, a medida do Bonfim vai presa à mala deixada no corredor. A carteira de
identidade, tantas vezes esquecida, se confunde com muita saudade. Já vai
tarde!
O amor,
sentimento contíguo ao ódio, passa a caminhar lado a lado do fel, deixando
loucos os amantes noite adentro. Há uma partilha de bens discutida e o pobre
Golden Retriever, que recebeu o adorável nome de ‘gaveta’, se vê, sem nada ter
a ver com a história, numa guarda compartilhada inequívoca; ora vive no antigo
apartamento de Ipanema, ora coabita o conjugado do Bairro de Fátima. A roupa
suja é lavada ali, em plena sala de jantar, não importa se é hora do almoço e
se a garrafa de licor tombou vazia num canto qualquer. Acusações mútuas são
ditas ou, na simplicidade do lugar-comum vem com o “...não é você, o problema
sou eu” e um pano rápido. Há a subfase vingança, absolutamente raivosa, onde os
nomes são jogados na lama moral. Lares são malditos, onde nem a comida paga não
foi merecida, não é só de casa e comida que aquece um coração.
É chegado
o instante Odete Lara, a trilha sonora vira hino, o copo se esvai em whisky com
guaraná; Drurys, é claro. Noites insones. Na vitrola, tocando tudo que lembra
aquele amor, aquela dor de cotovelo e todo o ardor do sofrimento perene,
sensação de fracasso. O apartamento se torna uma caverna profunda, fria e
irrequieta, garrafas de gim, com doses tomadas aos bocados no gargalo, estão
frigidamente depositadas no fundo do armário. O disco, quase penetrado pela
agulha, tem pena de ti. Estás um trapo, teu eu é puro Antônio Maria que habita
os corações esquecidos, carentes e abandonados.
Passados
horas, meses, anos... entra em cena a fase arrependimento, o ciclo olhos nos
olhos das espumas que o vento levou. É a remissão dos pecados e proclamação do
amor eterno, prometido ao pé da Santa Cruz, diante de uma plateia atônita,
misto de embevecimento e esplendor. A rendição ao último desejo do que começou
em festa e que jamais será esquecido. A Lua por testemunha. Os beijos que ainda
ardem e os seios que repousam sob as mãos. Lembranças, nada mais que boas
lembranças. Estão vívidas na playlist criada no Spotify ou no Deezer.
Vem, quem
sabe, a hora da reconciliação, dos olhares trocados, das juras secretas,
tentativas de que tudo pode se ajeitar, que a aliança não foi derretida, muito
menos empenhada, o Neruda foi lido e relido com apontamentos nas bordas, a
lápis, para não danificar as páginas, já que os livros são sagrados, tudo ao
som de boleros e do mestre Pizindin. Que tudo pode se tornar, mais uma vez, um
lar.
“Volta,
vem viver novamente ao meu lado”! Num mea-culpa, a confissão de que errou, mas
jamais ‘sujou o nome’ do ser amado. A sala foi arrumada, o tapete emoldura o
piso, o paletó pode voltar a abraçar o vestido de brechó, e os seios marcar o
amor nos lençóis. Ah, se eu fosse você, ah esse imenso amor que me invade, ah o
voltar ‘pra’ mim novamente, a não negativa do último desejo, desejo ardente,
pegando fogo. Não negar o amor, o carinho. A boca continua marcada pelo beijo,
te adorando pelo avesso, mesmo que tantos homens tenham te amado bem mais e
melhor.
Suportarás
vê-la tão feliz?
*Na
fonte de Noel Rosa em “Último Desejo”; Accioly Neto em “Espumas ao
Vento”; Ataulfo Alves em “Errei Sim”; Adelino Moreira e Enzo de
Almeida Passo em “Negue”; Chico Buarque em “Olhos nos Olhos”,
Chico Buarque e Francis Hime em “Trocando em Miúdos” e “Atrás da
Porta”; Tom Jobim e Chico Buarque em “Eu
Te Amo”; Lupicínio Rodrigues em “Volta” e Vitor Martins e Ivan Lins
em “Bilhete”.