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26/05/2021

Solidariedade

Fotografia Wilson Baptista Junior


Wilson Baptista Junior

Neste domingo vi aqui da minha janela, ao vivo, o que é solidariedade.

Tínhamos terminado de almoçar quando a Ana, indo às janelas olhar suas flores, me chamou a atenção para uma senhora, sentada no patamar da porta fechada de uma papelaria do outro lado da rua.

A senhora, provavelmente sem teto, como atestavam as sacolas ao seu lado que deviam conter todas as suas posses, estava ali há horas, acompanhada de três viralatas deitados ao seu lado no passeio. Aparentemente não tinha comido nada nesse período. Ana pegou no tabuleiro de lasanha de carne moída e presunto, ainda pela metade, que tínhamos comido no almoço, pegou num par de colheres, desceu, atravessou a rua e entregou para a senhora. Ela agradeceu com um gesto de cabeça, e esperou imóvel que a Ana voltasse para o nosso prédio.

Da janela, vi a senhora desembrulhar o tabuleiro, tirar a máscara, pegar numa das colheres e começar a comer. Sentindo o cheiro os cachorros se levantaram, e ela, com todo o cuidado e com a mesma colher, levava um bocado de comida à boca de cada um, depois comia ela mesma uma colherada, e calma e pausadamente repetia o ciclo.

Depois, tirou de sua sacola um vidrinho de álcool, higienizou cuidadosamente as mãos, recolocou a máscara e se recostou novamente contra a porta da loja.

Fiquei parado um bom tempo na janela, pensando no tanto que representava para ela, sozinha, desabrigada e certamente faminta, abrir mão daquela porção de comida para alimentar os seus cachorros, comparado com o pouco ou nada que representava para nós aquele meio tabuleiro de lasanha.

E me senti muito pequeno. Minhas preocupações com a pandemia, com os inevitáveis incômodos da idade e da vida diária simplesmente desapareceram, não significaram mais nada frente ao mudo e compassivo cuidado daquela senhora.

Volto a olhar pela mesma janela e ela não está mais lá. Continuou seu caminho, só Deus sabe para onde, com suas sacolas e seus companheirinhos. E levou comigo um pedaço da minha alma.

Onde estiver, senhora, muito obrigado.

 


22/05/2021

Contas um conto?

 

Fotografia Carlos Monteiro

Carlos Monteiro

Conto tantos, vários engraçados já vividos que eu não esqueci. Quem nunca passou por situações inusitadas, algumas sem pé nem cabeça? Algumas curiosas, outras engraçadas. Aquelas constrangedoras em que o buraco da ema é pequeno para esconder a cara envergonhada. Ficam os vexames, as histórias para os netos e as gargalhadas para as mesas de bares. 

No apartamento, oitavo andar... gritei:

Entrei na casa do vizinho! Entrei de gaiato no apê!

Uma amiga querida comprou uma nova moradia na planta. Obra programada com entrega garantida. Tudo certinho, planejado, pensado, calculado... só que deu errado. Ela devolveu a humilde residência em que, até então, morava, calculando transferir-se diretamente para a nova. Assim economizaria uns trocados com o aluguel. Por sua vez, o proprietário do imóvel aproveitou para acomodar a filha que vinha morar no Rio para realizar um doutorado. Tudo encaixado perfeitamente como num quebra-cabeças, em tempos e movimentos sequenciados milimetricamente. Planilhas complexas e completas, tipo uma sai pela manhã e a mudança, que vem de fora, da outra chega à tarde! A completude estava perfeita apenas com um pequeno detalhe: a construtora não cumpriu a data aprazada.

Encontro-a, dias antes, no Centro do Rio, já em um clima de ‘o que eu faço amanhã...’. Era um misto de assustada, com olhos em brasa e respingos da chuva do relógio que atrasa. Clipe sem nexo, Pierrot retrocesso, que nexo tem, que nexo faz? Havia acabado de me separar, indo viver em um apartamento de dois quartos com cinco utensílios básicos: um colchão, uma arara para as roupas, uma TV mínima, suavemente pousada sobre um caixote de maçãs “Red Indians”, catado na feira-livre da rua paralela, fogão e geladeira. Me compadeci com a situação e ofereci o quarto ‘às moscas’ para que ficasse até a entrega das chaves. Ali mesmo fiz uma cópia da chave, entreguei e apresentei meu novo endereço. Simplesmente esqueci a história.

Vários dias depois chego tarde da noite, momento exaustivo de trabalho, abro a porta e me deparo com um Frajola me olhando sério, cara de quem caiu do caminhão de mudança, em volta vejo uma sala com sofá, poltronas, mesa e cadeiras, luminárias e quadros. Até tapete e cortina tinha. Assustado, fecho vagarosamente a porta para não dar sinal que havia ‘invadido’ o apartamento alheio. Estaria ficando louco? Olhei o número na porta. Conferia com o meu; estava lá: ‘802’, mas ‘peraí’ eu não tenho móveis, muito menos gato. Teriam invadido meu imóvel? Me enchi de coragem, chave na porta e novamente o Frajola agora com cara de poucos amigos, tinha alguma coisa de cão de guarda ali, não sei se era poliglota, mas que ele rosnou, ah, ele rosnou e alto. Resolvi não encarar. Essa história de “gato que mia não arranha”... vai que ele não conhece o aforismo. Essa agonia levou uns cinco ou seis minutos. O prédio não tinha vigia, era tarde para bater no apartamento da síndica, talvez chamar Buscas e Salvamentos fosse uma solução. Preferi descer e tomar uns chopes no boteco da esquina. Horas tantas, como sempre expressa meu querido Carlos Leonam, com sono, cansado e meio bêbado, supus duas soluções: a redundância de encarar de frente o problema ou dormir no carro na garagem do prédio. Vai que era só uma alucinação de estresse. Vai que não tinha nada em casa.

Subi, abri a porta e lá estava o Frajola. Os chopes transformaram-no. Agora era o Lion-O dos Thundercats. De alvinegro ficou azulado com os cabelos em fogo. Tomei a pouca coragem que ainda me restava e fui em direção a cozinha de onde vinha um saboroso aroma de carne assada. Ignorei o ‘Gato The Cat’, deveria ser uma alucinação, no caso, uma alucinagato. O chope do ‘bunda de fora’ não era lá muito confiável, as sardinhas mumificadas, as moelas ao molho juntamente com os ovos coloridos da vitrine... praticamente um ácido psicodélico. Vagarosamente me aproximei do espaço gourmet e, silenciosamente, acompanhado pelo Frajola-Lion-O dou de cara com a minha amiga de avental, travessa na mão e a pergunta olho de qualquer entrevista:

—Pô cara, tu demorou hein?! Tá trabalhando demais! Fiz um jantar para gente em comemoração à minha estada por cá.

Ficou por seis meses. Fiquei amigo do Frajola que na verdade se chamava ‘Gaveta’, vai saber o porquê. Preferia dormir nos meus pés do que com ela. Devia ser a preguiça insana que tinha. Imagina escalar aquela cama. Pular no colchão, ao rés do chão, era bem mais prático.

Zero hora no relógio. A vida tem dessas coisas...

 

01/05/2021

A despedida tem trilha sonora?

 

Fotografia de Carlos Monteiro

Carlos Monteiro

“La poesia tiene una comunicación secreta con los sufrimientos del hombre. Amar es breve, olvidar lleva tempo.” – Pablo Neruda

Fico imaginando a despedida com uma trilha sonora. Aquela sensação de falha, de perda. A impressão de já ir tarde ou de que não devia ter vindo. Prenúncio de Odete Lara, de tristeza e falta inevitável e inefável.

Alguns poetas descreveram, musicalmente, esta vereda desarmoniosa. São canções que, em algum momento, ‘ouvimos’ num background imaginário, junto com a lágrima fugidia que disfarçadamente enxugamos, mas que insistiu em permanecer marejando sofridamente nosso olhar.

Esses poemas teriam sido escritos para um amor partido? Para um coração descompassado? Para um adeus quase inexistente, daqueles que não há? Em que pensavam Noel Rosa, Ivan Lins, Vitor Martins, Adelino Moreira, Enzo Passos, Ataulfo Alves, Accioly Neto, Lupicínio Rodrigues, Antônio Maria, Tom Jobim e Chico Buarque, de todos o que melhor poetizou na despedida?

A separação tem três passos distintos e extremamente marcantes. O impacto do instante, quando o afastamento é iminente. Naquela hora são ditas juras de amor, são feitos pedidos de desculpas, promessas de que tudo se ajeitará e voltará fortalecido, que o amor superará todas as dificuldades, desavenças e diferenças. Que amor não se joga fora, que a sorte não pode ser entornada, de forma tão leviana, pelo chão. O olhar é de adeus, de descrença, que se arrasta, que arranha, porque o amor deixa marcas que não são possíveis ser apagadas. Ficarão como tatuagens coronárias para sempre.

No segundo período algumas farpas são trocadas que logo evoluem para acusações mútuas, passando para ameaças, não físicas, mas morais. Puro Esopo. Nerudas são cobrados, discos são pedidos de volta – um Pixinguinha não pode ser abandonado, gêneros musicais são questionados, estilos são criticados, aquela roupa, comprada num brechó do Soho, passa ser horrorosa e os amados tornam-se quase inimigos. E o pijama? Nada mais ridículo que um pijama. Tomam a saideira do licor preferido e há muito bebido. A chave é jogada por debaixo da porta, sim a porta onde jaz tapete, para nem pensar numa volta. O portão é batido sem fazer alarde, a medida do Bonfim vai presa à mala deixada no corredor. A carteira de identidade, tantas vezes esquecida, se confunde com muita saudade. Já vai tarde!

O amor, sentimento contíguo ao ódio, passa a caminhar lado a lado do fel, deixando loucos os amantes noite adentro. Há uma partilha de bens discutida e o pobre Golden Retriever, que recebeu o adorável nome de ‘gaveta’, se vê, sem nada ter a ver com a história, numa guarda compartilhada inequívoca; ora vive no antigo apartamento de Ipanema, ora coabita o conjugado do Bairro de Fátima. A roupa suja é lavada ali, em plena sala de jantar, não importa se é hora do almoço e se a garrafa de licor tombou vazia num canto qualquer. Acusações mútuas são ditas ou, na simplicidade do lugar-comum vem com o “...não é você, o problema sou eu” e um pano rápido. Há a subfase vingança, absolutamente raivosa, onde os nomes são jogados na lama moral. Lares são malditos, onde nem a comida paga não foi merecida, não é só de casa e comida que aquece um coração.

É chegado o instante Odete Lara, a trilha sonora vira hino, o copo se esvai em whisky com guaraná; Drurys, é claro. Noites insones. Na vitrola, tocando tudo que lembra aquele amor, aquela dor de cotovelo e todo o ardor do sofrimento perene, sensação de fracasso. O apartamento se torna uma caverna profunda, fria e irrequieta, garrafas de gim, com doses tomadas aos bocados no gargalo, estão frigidamente depositadas no fundo do armário. O disco, quase penetrado pela agulha, tem pena de ti. Estás um trapo, teu eu é puro Antônio Maria que habita os corações esquecidos, carentes e abandonados.

Passados horas, meses, anos... entra em cena a fase arrependimento, o ciclo olhos nos olhos das espumas que o vento levou. É a remissão dos pecados e proclamação do amor eterno, prometido ao pé da Santa Cruz, diante de uma plateia atônita, misto de embevecimento e esplendor. A rendição ao último desejo do que começou em festa e que jamais será esquecido. A Lua por testemunha. Os beijos que ainda ardem e os seios que repousam sob as mãos. Lembranças, nada mais que boas lembranças. Estão vívidas na playlist criada no Spotify ou no Deezer.

Vem, quem sabe, a hora da reconciliação, dos olhares trocados, das juras secretas, tentativas de que tudo pode se ajeitar, que a aliança não foi derretida, muito menos empenhada, o Neruda foi lido e relido com apontamentos nas bordas, a lápis, para não danificar as páginas, já que os livros são sagrados, tudo ao som de boleros e do mestre Pizindin. Que tudo pode se tornar, mais uma vez, um lar.

“Volta, vem viver novamente ao meu lado”! Num mea-culpa, a confissão de que errou, mas jamais ‘sujou o nome’ do ser amado. A sala foi arrumada, o tapete emoldura o piso, o paletó pode voltar a abraçar o vestido de brechó, e os seios marcar o amor nos lençóis. Ah, se eu fosse você, ah esse imenso amor que me invade, ah o voltar ‘pra’ mim novamente, a não negativa do último desejo, desejo ardente, pegando fogo. Não negar o amor, o carinho. A boca continua marcada pelo beijo, te adorando pelo avesso, mesmo que tantos homens tenham te amado bem mais e melhor.

Suportarás vê-la tão feliz?

 

*Na fonte de Noel Rosa em “Último Desejo”; Accioly Neto em “Espumas ao Vento”; Ataulfo Alves em “Errei Sim”; Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passo em “Negue”; Chico Buarque em “Olhos nos Olhos”, Chico Buarque e Francis Hime em “Trocando em Miúdos” e “Atrás da Porta”; Tom Jobim e Chico Buarque em “Eu Te Amo”; Lupicínio Rodrigues em “Volta” e Vitor Martins e Ivan Lins em “Bilhete”.