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Rosetta Thorpe tocando com Muddy Waters na velha estação de trem de Manchester - fotografia de James J Kriegsmann |
Heraldo Palmeira
As artes parecem ter o dom de remediar dores e
cicatrizar grandes feridas humanas. A Renascença surgiu em Florença e Siena, em
plena Toscana, nos suspiros finais da Idade Média que sufocou diversas
sociedades com o obscurantismo e a crueldade da Santa Inquisição.
Já na primeira metade do século 19, a Europa e o
norte dos Estados Unidos experimentaram um processo de industrialização que gerou
notável desenvolvimento, a partir da mecanização do trabalho como base da
produção de bens de consumo em larga escala.
As populações, encantadas, passaram a dispor gradativamente
de comidas e roupas manufaturadas, trens, navios a vapor, bondes elétricos, automóveis,
telefone, telégrafo, fotografia, fonógrafo, gramofone, cinema... Retratos de um
progresso que apontava sem cerimônia e grande ânimo para o século 20.
Tendo Paris como palco mais reluzente, seguida de
perto por Berlim, Londres e Viena, a Europa superou o conflito franco-prussiano
com a explosão da Belle Époque a partir de 1871, período efusivo onde a fé no
progresso científico e nos avanços civilizatórios curou as dores coletivas e carregou
a festa até o início da Primeira Guerra Mundial (1914).
Aqueles quatro centros urbanos europeus, todos
repletos de inovações tecnológicas, alimentaram a Exposição Universal (Paris, 1900),
uma grande feira de demonstração das novidades da criatividade humana.
O pós-guerra trouxe grandes novidades na medicina
e microbiologia e testemunhou o nascimento dos impérios jornalísticos e a
transformação do cinema numa indústria de grande importância na integração do
mundo, capaz de influenciar profundamente o comportamento humano contemporâneo.
A
história do rock and roll é bem anterior às grandes estrelas surgidas a
partir da década de 1950, quando a mídia norte-americana já estava muito bem
estabelecida e pôde criar seus mitos a partir do cinema e da indústria da
música – e até estabeleceu uma espécie de grande filial na Grã-Bretanha dos
anos 1960.
O princípio
de tudo exige uma viagem aos Estados Unidos do início do século 20, para rever vivências
da miséria humana impregnada de abandonos, vícios, racismo, violência contra
minorias... Componentes indissociáveis do ambiente de uma economia em declínio,
que terminou devastada pela Grande Depressão, propícios a gerar uma música de
lamentação de muitas dores.
Essa
música de lamentação transformou-se numa espécie de bálsamo para tratar tantas
cicatrizes profundas, disfarçar a falta de perspectivas e acompanhar os
movimentos migratórios.
Começou a
soar nua e crua nos espaços marginais das comunidades pobres, nos campos de algodão
e em clubes obscuros. Ou vestida a caráter no ambiente litúrgico das suas congregações
religiosas. Devagarinho foi desaguando no mar poderoso do blues,
majoritariamente pelas mãos e vozes dos negros.
Em 1915,
Katie Bell Nubin, multi-instrumentista autodidata, pregadora religiosa e colhedora
de algodão da região de Cotton Plant, Arkansas, deu à luz uma menina que
parecia condenada a um futuro congelado entre os campos de colheita e as
igrejas pentecostais que a mãe frequentava. O pai, Willis Atkins, também missionário
e colhedor de algodão, era um cantor notável.
Em 1920, com
o fim do casamento, mãe e filha foram tentar a sorte numa Chicago onde havia
empregos e melhores condições de vida. O blues e o jazz já
flertavam para um casamento que se revelaria poderoso. Katie seguia sua jornada
de pregadora. Rosetta Nubin Atkins, sua menininha de apenas seis anos, começou
a dar os primeiros sinais prodigiosos nas coisas da música e ficou sensibilizada
com aqueles dois ritmos fundamentais da música americana.
Em pouco
tempo, já alternava piano e guitarra numa mesma música, enquanto cantava e
fazia performances graciosas que encantavam as assembleias dos cultos. Público fiel
e notoriedade foram consequências naturais das muitas viagens com a mãe, para
cantar em igrejas de diversas cidades.
Já nos
anos 1930, Rosetta, também conhecida com um “Sister” religioso antes do nome,
era divina na música das liturgias. E profana nos palcos noturnos onde
desnudava as pitadas de seus melhores demônios, manifestados numa mistura sem
qualquer cerimônia de gospel, blues, jazz, rhythm and
blues, country music e rock and roll.
Barbarizava
olhos e ouvidos surpresos com sua música frenética, sempre armada de uma
guitarra elétrica repleta de efeitos – a distorção pesada, talvez a expressão
sonora mais característica do rock, era uma delas.
Trocou de
igreja e casou com o pastor Thomas J. Thorpe, que não aceitava atividade artística
da esposa. Em 1938, ela caiu fora do casamento infeliz, manteve o sobrenome
dele trocando a grafia para Tharpe, mudou para Nova York e foi morar no Harlem.
Logo foi descoberta
pelo grande caçador de talentos John Hammond, que produzia o famoso espetáculo From
Spirituals to Swing no palco do Carnegie Hall, onde ela foi parar ao lado
de artistas famosos.
Não demorou,
estava atuando nos lendários Cotton Club e Café Society, onde se apresentavam
Cab Calloway, Count Basie, Benny Goodman, Billie Holliday e o resto da constelação
da música.
De
contrato assinado com a Decca Records, gravou naquele mesmo 1938 quatro músicas
e o primeiro single foi Rock me, sucesso imediato. Basta ouvir
com atenção para ver que o título antecipava o futuro.
Sua
gravação de Strange things happening every day, de 1944, é considerada a
gravação precursora do rock and roll e já reunia a formação clássica de
voz, guitarra, piano, baixo e bateria. Não deve ter sido à toa que um ainda
adolescente Little Richard abriu seus shows. Ou que ela também tenha tocado com
The Jordanaires, antes que a banda passasse a trabalhar com Elvis Presley.
Bill
Haley, Carl Perkins, Chuck Berry, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis, Johnny Cash, Little
Richard e tantos outros nomes míticos estão registrados na primeira infância do
rock. Mas é impossível ignorar que Sister Rosetta Tharpe influenciou –
como todos reconheceram ao longo da vida – esses ilustres senhores. Bem como o
blues britânico dos mais jovens Eric Clapton, Keith Richards e Jeff Beck. Sem contar
gente como Isaac Hayes, BB King, Bob Dylan, Aretha Franklin e Rod Stewart.
Numa
entrevista concedida no fim dos anos 1960, ela disse “Oh, essas crianças e o rock
and roll! Isso apenas acelerou o rhythm and blues. Eu venho fazendo
isso desde sempre”. O próprio Elvis declarou diversas vezes “O que eu faço não
é nada novo, os negros cantam e dançam dessa forma há muito tempo”. Também é
bom não esquecer que, desde sua origem, a expressão rock and roll
significava “dançar”, “balançar” ou “transar”, dependendo do momento.
De forma ainda
mais ampla, é possível supor que a expressão era associada a movimento. Tanto que,
em 1934, o filme Folias transatlânticas trouxe a participação das Boswell
Sisters (trio formado pelas irmãs Martha, Connee e Helvetia Boswell) cantando
seu grande sucesso Rock and roll. A música não tinha nada a ver com o
ritmo que hoje conhecemos, apenas fazia referência ao balanço de um
transatlântico cruzando o mar. Mesmo assim, parece ser a primeira vez que a
expressão aparece relacionada ao mundo da música.
Totalmente
rock and roll, Rosetta Tharpe fez fortuna e não se cansou de quebrar
barreiras. Numa época de virulenta segregação racial, ela gostava de dividir o
palco com artistas brancos e passou a reunir pessoas negras e brancas em grande
comunhão nas suas plateias. Teve romances com homens e mulheres. Divulgou os
perigos das doenças venéreas. O terceiro casamento, com seu empresário Russel
Morrison, foi realizado no Griffith Stadium, em Washington, para 25 mil pessoas
que pagaram ingressos para assistir à cerimônia e a um concerto em seguida, que
restou gravado.
Também
venceu as muitas resistências do conservadorismo religioso e continuou cantando
nas igrejas, ao mesmo tempo em que enchia clubes e teatros. Terminou levando o gospel
para o grande mercado da música comercial e inventou o pop gospel.
Mesmo tendo
utilizado diversos modelos de guitarra, a Gibson SG ficou associada à sua
imagem negra, forte, decidida e foi companheira de grande parte da carreira,
inclusive na última apresentação, realizada em Copenhague, Dinamarca (1970).
Estava vivendo
na perigosa companhia da depressão desde a morte da mãe, no ano anterior, e o quadro
da saúde piorou com o avanço da diabetes. As complicações da doença levaram a
dois derrames, o primeiro logo depois da apresentação na Dinamarca, que
terminou provocando a amputação de uma das pernas. O segundo, fatal, em 1973. Tinha
58 anos, vivia completamente falida na Filadélfia e foi enterrada numa cova sem
identificação.
A lápide erguida
em seu túmulo décadas depois – com recursos obtidos num concerto para esse fim –,
traduz o legado musical: “Ela cantava até você chorar e então cantava até que
você dançasse de alegria. Ela manteve a igreja viva e os santos se regozijando”.
Desde 2008, por decreto do governo da Pensilvânia, 11 de janeiro (dia do
concerto para a lápide) é o Sister Rosetta Tharpe’s Day.
Sister Rosetta
Tharpe foi uma artista que encarnou o rock and roll muito antes que
alguém tivesse qualquer noção a respeito. Por um desses mistérios que seguem
incompreensíveis, o nome dela nunca foi reconhecido na maternidade do rock
como deveria, no ambiente de gestação. A glória ficou com os “filhos” que
viraram estrelas a partir da mistura de talento e força colossal da mídia. Mas,
é impossível haver filho sem existir uma mãe. Hey, mama!