-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

14/07/2021

A mãe do Rock

 

Rosetta Thorpe tocando com Muddy Waters na velha estação de trem de Manchester
- fotografia de James J Kriegsmann

Heraldo Palmeira

As artes parecem ter o dom de remediar dores e cicatrizar grandes feridas humanas. A Renascença surgiu em Florença e Siena, em plena Toscana, nos suspiros finais da Idade Média que sufocou diversas sociedades com o obscurantismo e a crueldade da Santa Inquisição.

Já na primeira metade do século 19, a Europa e o norte dos Estados Unidos experimentaram um processo de industrialização que gerou notável desenvolvimento, a partir da mecanização do trabalho como base da produção de bens de consumo em larga escala.

As populações, encantadas, passaram a dispor gradativamente de comidas e roupas manufaturadas, trens, navios a vapor, bondes elétricos, automóveis, telefone, telégrafo, fotografia, fonógrafo, gramofone, cinema... Retratos de um progresso que apontava sem cerimônia e grande ânimo para o século 20.

Tendo Paris como palco mais reluzente, seguida de perto por Berlim, Londres e Viena, a Europa superou o conflito franco-prussiano com a explosão da Belle Époque a partir de 1871, período efusivo onde a fé no progresso científico e nos avanços civilizatórios curou as dores coletivas e carregou a festa até o início da Primeira Guerra Mundial (1914).

Aqueles quatro centros urbanos europeus, todos repletos de inovações tecnológicas, alimentaram a Exposição Universal (Paris, 1900), uma grande feira de demonstração das novidades da criatividade humana.

O pós-guerra trouxe grandes novidades na medicina e microbiologia e testemunhou o nascimento dos impérios jornalísticos e a transformação do cinema numa indústria de grande importância na integração do mundo, capaz de influenciar profundamente o comportamento humano contemporâneo.

A história do rock and roll é bem anterior às grandes estrelas surgidas a partir da década de 1950, quando a mídia norte-americana já estava muito bem estabelecida e pôde criar seus mitos a partir do cinema e da indústria da música – e até estabeleceu uma espécie de grande filial na Grã-Bretanha dos anos 1960.

O princípio de tudo exige uma viagem aos Estados Unidos do início do século 20, para rever vivências da miséria humana impregnada de abandonos, vícios, racismo, violência contra minorias... Componentes indissociáveis do ambiente de uma economia em declínio, que terminou devastada pela Grande Depressão, propícios a gerar uma música de lamentação de muitas dores.

Essa música de lamentação transformou-se numa espécie de bálsamo para tratar tantas cicatrizes profundas, disfarçar a falta de perspectivas e acompanhar os movimentos migratórios.

Começou a soar nua e crua nos espaços marginais das comunidades pobres, nos campos de algodão e em clubes obscuros. Ou vestida a caráter no ambiente litúrgico das suas congregações religiosas. Devagarinho foi desaguando no mar poderoso do blues, majoritariamente pelas mãos e vozes dos negros.

Em 1915, Katie Bell Nubin, multi-instrumentista autodidata, pregadora religiosa e colhedora de algodão da região de Cotton Plant, Arkansas, deu à luz uma menina que parecia condenada a um futuro congelado entre os campos de colheita e as igrejas pentecostais que a mãe frequentava. O pai, Willis Atkins, também missionário e colhedor de algodão, era um cantor notável.

Em 1920, com o fim do casamento, mãe e filha foram tentar a sorte numa Chicago onde havia empregos e melhores condições de vida. O blues e o jazz já flertavam para um casamento que se revelaria poderoso. Katie seguia sua jornada de pregadora. Rosetta Nubin Atkins, sua menininha de apenas seis anos, começou a dar os primeiros sinais prodigiosos nas coisas da música e ficou sensibilizada com aqueles dois ritmos fundamentais da música americana.

Em pouco tempo, já alternava piano e guitarra numa mesma música, enquanto cantava e fazia performances graciosas que encantavam as assembleias dos cultos. Público fiel e notoriedade foram consequências naturais das muitas viagens com a mãe, para cantar em igrejas de diversas cidades.

Já nos anos 1930, Rosetta, também conhecida com um “Sister” religioso antes do nome, era divina na música das liturgias. E profana nos palcos noturnos onde desnudava as pitadas de seus melhores demônios, manifestados numa mistura sem qualquer cerimônia de gospel, blues, jazz, rhythm and blues, country music e rock and roll.

Barbarizava olhos e ouvidos surpresos com sua música frenética, sempre armada de uma guitarra elétrica repleta de efeitos – a distorção pesada, talvez a expressão sonora mais característica do rock, era uma delas.

Trocou de igreja e casou com o pastor Thomas J. Thorpe, que não aceitava atividade artística da esposa. Em 1938, ela caiu fora do casamento infeliz, manteve o sobrenome dele trocando a grafia para Tharpe, mudou para Nova York e foi morar no Harlem.

Logo foi descoberta pelo grande caçador de talentos John Hammond, que produzia o famoso espetáculo From Spirituals to Swing no palco do Carnegie Hall, onde ela foi parar ao lado de artistas famosos.

Não demorou, estava atuando nos lendários Cotton Club e Café Society, onde se apresentavam Cab Calloway, Count Basie, Benny Goodman, Billie Holliday e o resto da constelação da música.

De contrato assinado com a Decca Records, gravou naquele mesmo 1938 quatro músicas e o primeiro single foi Rock me, sucesso imediato. Basta ouvir com atenção para ver que o título antecipava o futuro.

Sua gravação de Strange things happening every day, de 1944, é considerada a gravação precursora do rock and roll e já reunia a formação clássica de voz, guitarra, piano, baixo e bateria. Não deve ter sido à toa que um ainda adolescente Little Richard abriu seus shows. Ou que ela também tenha tocado com The Jordanaires, antes que a banda passasse a trabalhar com Elvis Presley.

Bill Haley, Carl Perkins, Chuck Berry, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis, Johnny Cash, Little Richard e tantos outros nomes míticos estão registrados na primeira infância do rock. Mas é impossível ignorar que Sister Rosetta Tharpe influenciou – como todos reconheceram ao longo da vida – esses ilustres senhores. Bem como o blues britânico dos mais jovens Eric Clapton, Keith Richards e Jeff Beck. Sem contar gente como Isaac Hayes, BB King, Bob Dylan, Aretha Franklin e Rod Stewart.

Numa entrevista concedida no fim dos anos 1960, ela disse “Oh, essas crianças e o rock and roll! Isso apenas acelerou o rhythm and blues. Eu venho fazendo isso desde sempre”. O próprio Elvis declarou diversas vezes “O que eu faço não é nada novo, os negros cantam e dançam dessa forma há muito tempo”. Também é bom não esquecer que, desde sua origem, a expressão rock and roll significava “dançar”, “balançar” ou “transar”, dependendo do momento.

De forma ainda mais ampla, é possível supor que a expressão era associada a movimento. Tanto que, em 1934, o filme Folias transatlânticas trouxe a participação das Boswell Sisters (trio formado pelas irmãs Martha, Connee e Helvetia Boswell) cantando seu grande sucesso Rock and roll. A música não tinha nada a ver com o ritmo que hoje conhecemos, apenas fazia referência ao balanço de um transatlântico cruzando o mar. Mesmo assim, parece ser a primeira vez que a expressão aparece relacionada ao mundo da música.

Totalmente rock and roll, Rosetta Tharpe fez fortuna e não se cansou de quebrar barreiras. Numa época de virulenta segregação racial, ela gostava de dividir o palco com artistas brancos e passou a reunir pessoas negras e brancas em grande comunhão nas suas plateias. Teve romances com homens e mulheres. Divulgou os perigos das doenças venéreas. O terceiro casamento, com seu empresário Russel Morrison, foi realizado no Griffith Stadium, em Washington, para 25 mil pessoas que pagaram ingressos para assistir à cerimônia e a um concerto em seguida, que restou gravado.

Também venceu as muitas resistências do conservadorismo religioso e continuou cantando nas igrejas, ao mesmo tempo em que enchia clubes e teatros. Terminou levando o gospel para o grande mercado da música comercial e inventou o pop gospel.

Mesmo tendo utilizado diversos modelos de guitarra, a Gibson SG ficou associada à sua imagem negra, forte, decidida e foi companheira de grande parte da carreira, inclusive na última apresentação, realizada em Copenhague, Dinamarca (1970).

Estava vivendo na perigosa companhia da depressão desde a morte da mãe, no ano anterior, e o quadro da saúde piorou com o avanço da diabetes. As complicações da doença levaram a dois derrames, o primeiro logo depois da apresentação na Dinamarca, que terminou provocando a amputação de uma das pernas. O segundo, fatal, em 1973. Tinha 58 anos, vivia completamente falida na Filadélfia e foi enterrada numa cova sem identificação.

A lápide erguida em seu túmulo décadas depois – com recursos obtidos num concerto para esse fim –, traduz o legado musical: “Ela cantava até você chorar e então cantava até que você dançasse de alegria. Ela manteve a igreja viva e os santos se regozijando”. Desde 2008, por decreto do governo da Pensilvânia, 11 de janeiro (dia do concerto para a lápide) é o Sister Rosetta Tharpe’s Day.

Sister Rosetta Tharpe foi uma artista que encarnou o rock and roll muito antes que alguém tivesse qualquer noção a respeito. Por um desses mistérios que seguem incompreensíveis, o nome dela nunca foi reconhecido na maternidade do rock como deveria, no ambiente de gestação. A glória ficou com os “filhos” que viraram estrelas a partir da mistura de talento e força colossal da mídia. Mas, é impossível haver filho sem existir uma mãe. Hey, mama!

 

4 comentários:

  1. 1) Bela aula musical, parabéns e obrigado.

    2) Certa feita, assisti um documentário falando que a Bossa Nova brasileira inspirou o Jazz norte-americano. É verdade?

    3) Por favor, continue com estas ótimas informações musicais.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira18/07/2021, 22:49

      Antonio,
      Esses rascunhos não passam nem perto de aula, apenas fica mais facilitado abordar temas que estão entre os preferidos.

      Quanto ao jazz ter sido inspirado pela bossa nova, é preciso esclarecer o sentido da palavra "inspiração" no seu texto. Afinal, o jazz surgiu em 1890, em New Orleans, e já nos primeiros 20 anos (até 1910) estava devidamente estabelecido na cultura musical norte-americana, começando daí a ganhar o mundo e transformando a França em sua segunda pátria, a partir de Paris.

      Esse movinento de internacionalização teve início em 1917, quando o 369º Regimento de Infantaria, também conhecido como Harlem Hellfighters, saiu de New York e desembarcou em Paris como parte do esforço de guerra norte-americano na Primeira Guerra Mundial.

      Aquele destacamento militar era composto apenas por soldados negros e sua banda de música foi responsável por apresentar ao Velho Mundo o ragtime, considerado o primeiro gênero musical autêntico e original dos EUA e uma das matrizes formadoras do jazz.

      Com a chegada dos anos anos 20 - ainda sob domínio do espírito alucinante da Belle Époque encerrada em 1914, com o início da guerra -, aquela música afro-americana incendiou Paris. Bastou uma década para vir à luz a primeira geração de jazzistas franceses, que incluía Django Reinhardt (belga de nascimento, francês de adoção), considerado um dos maiores e mais influentes guitarristas de todos os tempos.

      Portanto, levando em consideração que a bossa nova surgiu quase 70 anos depois do jazz, como uma renovação rítmica do samba tradicional, posso, no máximo, dizer que o jazz teve um grande flerte com ela pelas mãos de alguns músicos brasileiros que se estabeleceram nos EUA. Claro que, como em qualquer troca de conhecimento deste tipo, ambos provocaram inspiração.

      Continuarei gastando papel e tinta sempre que possível. Obrigado.

      Excluir
  2. Querido Heraldo,
    Um texto surpresa para mim. Nunca imaginei do rock essas origens negras e gospel tão antigas. E a história fantástica da menina Rosetta...como dizia um velho anúncio, acho que do FNM, quem é bom já nasce pronto.
    Deu pano pra manga dos" ilustres senhores". E reconhecer rock nos cultos é uma curiosidade!
    Sempre pensei, e devo estar errada, que na grande maioria as quebras nas artes, principalmente na música, tivessem sido obras masculinas.
    Que bom conhecer Sister Rosetta Tharpe!
    Parabéns pelo texto.
    E obrigada pela aula.
    Até mais.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira24/07/2021, 11:21

      Ana,
      Pois é, muita gente termina escrevendo uma nova história a respeito da história. Tanto na América quanto cá no Brasil, a música africana está na matriz. E em outro texto recente já falamos dela também presente nas bases do tango.

      Sim, Rosetta Tharpe quebrou paradigmas aos montes desde o momento que chegou ao mundo, sobreviver naquelas condições insalubres impostas aos pobres do início do século 20 já foi uma grande conquista. Por isso, ela está certamente representada no velho anúncio publicitário que você citou.

      Temos um mundo costumeiramente masculino. Mas o que seria da maioria dos grandes pintores, poetas, músicos, cineastas sem suas musas? Não duvido que a arte seria bem mais feia. Por isso, é preciso concordar que as mulheres estiveram fortemente presentes em todas as quebras nas artes, mesmo que raramente assinassem as obras famosas.

      Monalisa está aí mesmo para não me deixar sem argumentos. E, em tempos mais próximos, uma inglesinha chamada Patricia Anne "Pattie" Boyd inspirou nada menos do que três canções definitivas no rock mundial: "Layla", "Something" e "Wonderful tonight". Todas românticas! Ou seja, ela tirou os demônios de roqueiros de primeira grandeza, fê-los falar com delicadeza, tudo porque ocupou sem piedade os corações de George Harrison e Eric Clapton. Que homem teria tal força?

      Mesmo nestes tempos de desesperança, acredite, a arte sempre nos salvará. Até muito mais.

      Excluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.