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14/08/2021

A velhice das dobradiças

Bico de pena e aquarela

Ana Nunes 

Passados dias talvez anos falei de uma velhice que não vem só nas rugas e no esquecimento, no andar pesado e nas dores do inverno, mas também nos jardins dos envelhecidos. No começo do descuido, na ervinha sem vergonha que invade o espaço das flores, nas folhas murchas que se debruçam no concreto, no desolamento do musgo que sobe na parede e tenta em vão chegar à janela e espiar lá dentro.

A velhice vem em toda a casa do envelhecido.  
Nas casas abonadas ela está no amontoado dos móveis escuros e pesados do passado onde a poeira sorrateira faz cama nas dobras da madeira e nos puxadores vaidosos. No vão trabalho da cera e do aspirador de pó que também sofre as cores do tempo e já nem aspira tanto assim. E aparece também no cheiro de caixas fechadas, de uma antiga alfazema nas roupas que nem servem mais.        
Nas casas menos ricas que lutam dia a dia para permanecerem o que já foram esse tempo passado de presente sem talvez futuro aparece nas almofadas desbotadas, no brilho desgastado da mesa de jantar que traz memórias em sulcos e riscados de desenhos de netos, na sombra de um vinho derramado, no esgarçado de um lençol, no fiapo quase buraco da toalha de mesa.   
Nas casas desfavorecidas da pobreza, esse tempo sem devaneios se instala na parede descascada, no prato branco de beirada lascada, no chão onde o cimento já se faz fino de tanta vassoura e detergente. Entre sofás puídos que se disfarçam com mantas floridas e uma cadeira que faz do apoio na parede sua perna quebrada, a tv nova que agride sem mercê o tempo que passa no caixote da feira.

Tudo isso porque, desde muito, me entristecem e me fazem pensar as marcas inglórias que o envelhecido encontra na sua cozinha. E não importa se abonado ou abandonado! Se com jardins de flores murchas deitadas na calçada ou apenas uma escada para se chegar. Os armários de cozinha são cruéis quando falam de tempo.        
A primeira vez que me dei conta foi quando voltei, depois de um bom tempo, à casa da minha avó que morava em Macondo onde a poeira vermelha tudo cobre e onde parece que o tempo não passa. Mas passou na cozinha onde essa alemã brava e ordeira reinava absoluta entre brilhos e aromas. Os armários então, cansados de servir, já não fechavam direito entre parafusos soltos e trancas emperradas. Vi então o abandono da minha avó envelhecida, seu DNA alemão ou polonês, sei lá, quem se ocupa disso é minha irmã que herdou os genes, desgastado no caminho da vida.       
Um choque de verdades onde a gente percebe ou se questiona o que vale a pena.        
Para onde leva essa exigência descabida no trato com os sabores e o destrato das panelas e a chatice do fogão com o leite derramado. Tudo em vão?

Mais uma vez a realidade me parou no corpo e nos pensamentos quando fui ao velório de uma tia torta, rica de passado, bonita e bem vestida, de olhos azuis curiosos e coração generoso, que teve o luxo de ser velada em casa. E lá, nessa casa ampla e distinta, me deparei com o armário sob a pia da cozinha lamentando a falta de uma porta. Assim como um sorriso lamenta um dente perdido! Muito triste, muito real, muita vida corrida! E a angústia me assola de novo e traz perguntas sem respostas.

Na cozinha da minha querida mãe a história se repete. Mas tomamos providências e agora tem até uma porta camarão, seja lá o que isso for! Pena mesma que ela tenha aproveitado tão pouco dessas portas novas e gavetas ágeis acolhendo seus talheres e panos de prato alvejados! E passados tantos anos ainda me pergunto por quê. Por que a pressa de ir embora e deixar sua cozinha toda renovada. A incerteza do tempo... a vã labuta do dia a dia.

E agora cabe a mim chorar na cozinha dobradiças que perderam parafusos e portas que se recusam a fechar. Portas exigentes que só obedecem a comandos conhecidos como acomodá-las juntas antes de fechar, um tapinha aqui, um tapinha ali... quem conhece, sabe! Como sabe!  
Uma tira de fórmica rebelde que se solta inteirinha, como pode? Como um breve aviso da brevidade da vida! E as perguntas sem respostas continuam as mesmas mas a crueldade do inútil se faz real.  
Mas já providenciamos consertos. Ou concertos? Porque soa como música aos meus ouvidos!

Bem fez minha querida prima Léa que trocou tudo antes das falências múltiplas de porcas e parafusos e guarda agora sua louça em pompa e circunstância.

E viva a vida! Com armários ou sem! Porque o que vale mesmo é aquele cafezinho na cozinha, encostada na pia ou sentada num banquinho, até serve uma pequena escada, trocando uma conversa fiada e um riso manso com quem a gente gosta!   
E nessas horas não tem essa de armário velho ou panelas que não brilham!


7 comentários:

  1. 1) Oi Ana, vc está se revelando ótima cronista, além da poetisa que já é, parabéns.

    2) O seu texto me fez lembrar que eu tive uma infância e adolescência muito difícil por problemas de saúde e outros casos familiares...

    3) Deste modo, sinto-me cada vez mais feliz curtindo a PVC - Primorosa Velhice Chegando...

    4) Eis a vida !

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    1. Obrigada Antonio.
      Pelos elogios e pela generosidade.
      Generosidade esperada de um homem bom, caminhante budista do caminho do meio.
      Obrigada por estar aqui conosco.
      E viva a vida! Viva a PVC! Quanto mais gloriosa quanto mais vivida.
      Até muitos mais.

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  2. Léa Mello Silva14/08/2021, 14:49

    Ana
    como sempre vc nos faz pensar com seus textos!
    Pensar na finitude das coisas e na renovação que precisa ser constante
    O desgaste do tempo corroendo tudo ... e nos obrigando a renovar
    E como gostei da ilustração, objetos guardados em ordem nas prateleiras
    E vamos tomar um café na cozinha e colocar a prosa em dia
    Um obrigada e um abraço

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    1. Léa, prima do coração
      O desgaste do tempo.
      E a vida passando.
      Vamos...Precisamos já de um café na cozinha! Pode ter até rosca. Ou pão de queijo!
      Beijo


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  3. Francisco Bendl16/08/2021, 06:47

    Minha cara amiga, Aninha,

    Quando perguntaram a um célebre poeta o que seria a vida, ele respondeu sem titubear:
    - A vida é uma metáfora.

    Se me perguntarem qual seria a característica principal dos textos da Aninha, certamente eu responderia que é o domínio que ela tem sobre essa figura de linguagem, deixando de ser um recurso linguístico para se tornar um estilo próprio, e muito bem utilizado nas suas crônicas.
    Ana denota, dessa maneira, um amadurecimento literário que devemos aplaudir e reconhecer. Sabe discernir perfeitamente bem e utiliza-os com muita perspicácia e inteligência, os detalhes de um aposento e misturando-os com as filigranas da vida.

    Os resultados, mais que interessantes - eu diria obtidos com sensibilidade e experiência -, possibilitam a Aninha demonstrar a naturalidade que transita entre o complexo e o simples;
    a emoção com a indiferença; atinge o ápice da mensagem transmitida quando, na mesma crônica, envereda entre o passional e o racional.

    A sua visão de uma existência comparada a uma cozinha e seus armários velhos – a experiência determina aproveitar o que resta para um bom café, lembranças e saudades – é meticulosamente detalhada.

    A cozinha como local de ideias e imaginação, onde gêneros alimentícios se transformam em saborosas refeições e sobremesas, arrisco afirmar que seria a vontade como transformação do sonho em realidade e que seria a cozinha para o pensador, do escritor, do artista, onde ele mistura os ingredientes do passado com o presente, elaborando um apetitoso almoço ou lauto jantar, que servirão como receitas futuras e gostosas, pois devidamente testadas.

    O tempero, inexoravelmente um segredo guardado a sete chaves pelos que nos antecederam, encontra-se nas ... metáforas,
    As dobradiças enferrujadas, que custam a abrir as portas de velhos armários e emitem sons estridentes quando forçadas, seriam exatamente as circunstâncias que nos fizeram redobrar esforços para nos desvencilharmos dos problemas ora nos esgueirando sobre eles, ora contornando-os, ora pulando por cima, ora nos fazendo gritar para que nos deem trégua!

    Lá pelas tantas, até mesmo o nosso corpo clama por menor velocidade diária; precisa de um ritmo mais calmo; a mente, da mesma forma, já não acompanha o frenesi dos dias de hoje, então busca soluções que podem estar ainda guardadas nas velhas prateleiras de dobradiças que não mais as sustentam, porém durante muito tempo, sabe-se lá quanto, preservaram várias existências e foram testemunhas de um período que sempre queremos resgatar porque exclusivo, por ser meramente interpretativo, por ser a nossa metáfora entre o que não volta mais e quais serão as situações que ainda viveremos?

    As doces lembranças continuarão guardadas nos mesmos armários e com as velhas dobradiças ou a experiência, as décadas já vividas, exigem que não sejam mais presos nas paredes, mas sobre pés firmes e no chão, de modo que resistam às amarguras do tempo que seremos obrigados a conviver, e onde o peso da saudade aumenta a cada minuto.

    A vida é uma metáfora ou metáfora é a vida que imaginamos viver?

    Meu aplauso e reconhecimento pela crônica brilhante, Aninha.
    Sagaz, inteligente, perspicaz, sensível, poética, romântica ... comprovando a tua ampla visão tanto da realidade que te cerca quanto à imaginação que tens, que te leva às alturas de pensamentos e situações tão versáteis quanto limitada é a mente masculina, que não tem essa propriedade feminina de desfilar seus conhecimentos e recordações como se fosse uma cozinha com seus velhos armários e com dobradiças nas portas que o tempo enferrujou.

    A mente masculina não tem compartimentos, Aninha, logo, jamais saberemos ir e voltar entre a fantasia e a realidade, muito menos que uma cozinha seja esta máquina do tempo!

    Abração.
    Saúde e paz junto aos teus amados.









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    1. Chicão querido
      Já lhe disse, como conviver com essa carga de elogios? Como cuidar de mantê-los?
      Ou fico metida à beça ou viro cuidadora de mim mesma!(rsrs)
      Queria ter esse amadurecimento literário de que fala mas tenho mesmo é o amadurecimento da vivência. Um recuo histórico de uma vida. E bota recuo nisso. Ufa!
      E sem dobradiças para trocar! Que pelo menos tenhamos as dos armários.
      E viva a diferença! Ou seria uma chatice. Mas vocês homens podem abrir esses compartimentos e também fazer comunicar realidade e fantasia, "razão e sensibilidade". E dá-lhes exercício e uso! Contínuo!!!
      Abraço camarada. Ou abraço, camarada?
      Até muitos mais.

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  4. Heraldo Palmeira28/08/2021, 09:10

    Ana,
    Ontem éramos jovens, tudo que nos dizia respeito cheirava a juventude e leveza. Hoje, nossos ambientes parecem ter acompanhado o passar do nosso tempo, envelheceram em seus artigos de utilidade. As portas rangem como as articulações, aqui e ali algum bolor aparece como o cansaço que nos faz ter preguiça de caminhar sob o sol. Quadros e fotos amarelados traduzem a palidez das relações que vão sendo postas, comprometidas pela desculpa da correria cotidiana.

    Bem fez a Léa na sua reforma de atualização, claro sinal de rejuvenescimento. Eu fui mais radical, acomodei minha vida em duas malas, uma para o inverno outra para o verão, e já não tenho casa fixa em nenhum lugar. E todos os dias, esteja onde estiver, namoro com as letras - lendo e escrevendo quase o tempo todo. Pouco importa a qualidade dos rascunhos, importante é que sempre posso refazê-los para mais ou para menos - Mano que o diga! (rsrs). Tudo isso com o auxílio luxuoso de músicas e filmes.

    Não sei até quando vai/vou, mas estou pelo menos tentando que o espírito siga leve e jovem. O resto é rir de tudo, inclusive de mim, e olhar para a frente. Até muito mais.

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