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05/04/2025

 

A Árvore Grande 

Papai e Mamãe - fotografia Paulo Baptista

 Wilson Baptista Junior

 

Ontem vendemos a casa de meus pais.

Não, não foi aquela de que já falei aqui no blog, que eles construíram, junto com meus avós paternos, quando se casaram, e onde nasci e cresci.

Aquela meus pais venderam quando nos mudamos para essa de agora, e ainda está lá, no mesmo lugar, sem os jardins de hortênsias e de rosas e com os muros baixos onde a gente se sentava para conversar atravancados por grades altas com concertinas, fruto dos novos usos que os sucessivos donos depois de nós lhe deram e do medo que não existia no nosso tempo.

A que vendemos ontem foi a casa da família durante cinquenta e seis anos. A minha mãe lhe deu o nome de “Vila São José” (que ainda está lá, na parede que dá para a rua, numa linda placa de madeira entalhada por meu pai). Até hoje não tenho muita certeza do porquê do nome, se foi devoção dela, se tem a ver com a data quando nos mudamos, ou, como me fala mais ao coração, pela tradição de marcenaria dos trabalhos de meu pai.

 

fotografia Paulo Baptista

Nessa casa viveram e cresceram meus irmãos e irmãs mais novos. Lá mamãe, minha avó paterna, Vovó Dindinha, minha tia-avó Didida, e finalmente meu pai viveram até o fim de suas vidas. Lá comandou a cozinha a Neném, filha de uma cozinheira da casa anterior, que cresceu conosco na Barbacena, sempre foi uma querida pessoa da família – morria de ciúme de suas receitas, que não ensinava a ninguém - e ficou conosco até a morte de Papai. Eu só morei lá dois anos, me casei com Ana e começamos nossa própria casa. Meus irmãos e irmãs foram também saindo, um a um, e mortas a avó, a tia-avó, a mãe e o pai ficaram apenas o Paulo (Teko) e a Patrícia (Pat), sua mulher, fiéis guardiões da casa e da memória da família, e nossos anfitriões, à velha moda mineira do delicioso cafezinho e broa de fubá sempre que lá voltamos.

O Osias (Zia) depois do seu divórcio voltou a morar lá, dividindo com o Teko e a Pat a companhia do Papai e depois a guarda da casa e das memórias até meados do ano passado.

Mas tenho muitas e muitas lembranças, porque foi sempre a casa da família, o centro de nós todos, onde nos reuníamos nas festas, onde ouvíamos as histórias de nossos velhos queridos, onde procurávamos no carinho dos corações deles o apoio aos nossos nas oscilações da vida.

A casa fica numa subida bem forte, um pouco abaixo do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, onde uma irmã de mamãe, Maria Cândida, tia sábia e querida, era freira beneditina, e que de vez em quando escapava do mosteiro (sua idade, e a ligação da nossa família com o mosteiro lhe davam certos privilégios) e passava um dia com a família. É voltada para dentro, o desnível do terreno dava uma bela vista da cidade, que papai sabiamente, comprando o lote de baixo para evitar que construíssem um prédio, preservou. Depois, quando ele e mamãe dividiram os bens em vida, uma de minhas irmãs, arquiteta, ficou com esse lote e construiu lá sua linda e acolhedora casinha.

Só agora, nos trâmites para a venda, descobrimos que o morro por detrás se chama... Morro de São José. Coincidência ou presságio?

Mas nunca chamamos a casa por esse nome. No jardim para onde abrem as janelas das salas há uma árvore grande, forte e alta, um flamboyant plantado por minha irmã Maria Laura, a Bala, que sombreia o jardim e divide com um breu a paisagem. Primeiro chamávamos a casa simplesmente de “a casa”, e depois quando Papai morreu ela virou a “Árvore Grande”, que era o nome da árvore onde morava a macacada (alegoria da nossa família) no seu livro “O Macaco Juca”.

 

fotografia Wilson Baptista Junior

Depois, com o tempo, as outras árvores, do lado voltado para a rua, um tamarindo, um cinamomo e um ipê roxo, que já estavam lá quando compramos a casa, e um mandacaru que Papai plantou com uma muda do que crescia junto à varanda da nossa casa da Barbacena, cresceram também e hoje sombreiam imponentes a entrada que quase nunca era usada, porque sempre foi mais fácil receber as visitas pela porta da cozinha, que dá para a garagem e a entrada de carros. E, na descida do jardim, uma jabuticabeira, um pé de limão capeta e um pé de romã foram ficar mais abaixo de um grande flamboyant, cujas raízes hoje tornam a descida uma corrida de obstáculos.

Mas a mudança não deixou de ter os seus perrengues. O antigo dono da casa (não vou dizer quem era), que como arquiteto era um bom criador de pássaros, projetou mal os alicerces da parte que dá para o vale, e construiu atabalhoadamente uma piscina (soubemos depois) principalmente com o intuito de valorizar a casa para a venda. Essa piscina em pouco tempo começou a perder água. Em vão refizemos os rejuntes dos azulejos do fundo, até que um dia, retirando uma fieira deles junto à parede que dava para o vale, descobrimos que, por incrível que pareça, as ferragens do fundo de concreto não se conectavam com as da parede, e uma fenda a todo comprimento estava se abrindo entre o fundo e a parede...

Portanto, foi preciso demolir tudo e fazer outra piscina. Nela nós todos nos divertíamos, meus filhos e uma multidão de sobrinhos e sobrinhos netos aprenderam a nadar.

Anos depois (eu já não morava lá) houve problema de infiltrações no teto e trincas aparecendo do lado da sala. Chamado um engenheiro de solos, especialista filho de um grande amigo do meu pai e meu, verificou que não havia apoio para a viga que delimitava o piso do final das salas, que aparentemente tinham sido uma segunda etapa da construção. Aí, foi preciso escavar enormes buracos e encher de pedras e concreto tudo em baixo das duas salas. E tirar todo o piso do grande terraço superior, instalar mantas de asfalto e refazer o piso. Isso, claro, com a família morando lá. Podem imaginar o que passaram – e o que pensaram.

Quando eu disse que o antigo dono como arquiteto era um bom criador de pássaros, ele realmente era um bom criador de pássaros, registrado, e o terreno e dois cômodos (um no terraço, em cima da garagem, outro construído em cima da oficina que ele tinha feito nos fundos da parte mais baixa) era cheio de gaiolas e cercados. Quando isso tudo foi removido, uma enorme quantidade de ração tinha escorrido para tudo o que era buraco e fenda do terreno. Resultado: uma enorme quantidade de camundongos e diversas ratazanas tinham assumido o lugar.

Passamos um bom tempo com uma carabininha de ar comprimido tentando reduzir a fauna invasora. Muito útil como prática de tiro ao alvo mas um trabalho de Sísifo. A população só foi exterminada quando acabou a ração e afinal com a chegada de dois lindos cães mestiços de pastores belgas e fila, de pelagem negra, um macho e uma fêmea, presenteados a meu pai.

Estes dois (o Gud e a Kichute) tiveram primeiro dois filhotes, que Papai deu de presente ao meu sogro e que foram morar na casa de Governador Valadares, lá batizados de KiSaco e KiFofa, nos quais nossos dois filhos chegaram a montar quando pequeninos, depois o Akela e a Raksha. Depois da família vieram sucessivamente o Hagar, um pastor alemão de pelagem negra, o Cato, um pastor alemão de pelo curto, e a Chachani, uma mestiça de pastor belga, de pelagem negra, que foi a última de Papai e morreu de uma síncope pouco depois dele morrer. A última guardiã da casa foi a Jesse, uma pastora alemã que adorava “morder” a água que saía da torneira do jardim.

Depois, muito depois dos cães, veio uma gata, a Lili, mestiça de siamesa, e por último a Tutuca, uma gatinha preta que morou lá até a venda da casa.

O antigo dono tinha construído, nos fundos do lote da piscina, uma oficina, que Papai ampliou em “L”, primeiro como um quarto para acomodar o Andrade, nosso querido amigo marceneiro que trabalhava para nós, baiano valente filho de um coiteiro do Lampião, com um banheiro para não precisar subir até a casa quando o trabalho fosse demorado, e mais tarde para reposicionar com mais folga seus bancos de trabalho e suas máquinas-ferramentas. Nela teve a alegria de instalar um dos seus sonhos de muito tempo, um torno de bancada da Sanches Blanes para trabalhar metal, que veio se juntar, para trabalhos maiores, ao Unimat com que fez trabalhos maravilhosos e que hoje, restaurado com carinho, está na minha pequena oficina no quarto dos fundos de nosso apartamento.

Me lembro de quando o torno chegou, ele e nós filhos homens levantando com cuidado a pesada máquina para instalá-la em cima do suporte. E da sua alegria de vê-la funcionar.

Em cima da oficina o antigo dono tinha feito um telheiro para criação de pássaros. Papai o converteu num escritório, com estantes de livros, sua coleção de antigas máquinas de escrever compradas e usadas ao longo do tempo, uma escrivaninha e uma mesa para refazer o presépio animado que tinha construído na casa antiga e tinha se danificado ao longo do tempo. Fez de novo todas as figuras e acrescentou outras novas, os mecanismos que as animavam pequenas joias de aço, latão, plástico e madeira, movidos agora por motores elétricos em miniatura em vez do antigo motor único com uma multiplicidade de polias de madeira e correias feitas com barbantes encerados do presépio antigo.

Perto da oficina, do outro lado do portão que limitava o acesso do jardim de cima para o de baixo, aproveitando um ressalto debaixo de uma laje que prolongava o jardim Papai construiu sua câmara escura, menor do que a da casa antiga, mas infiltrações através da junta da laje com o muro de arrimo inutilizaram o cômodo e destruíram muitos dos seus insubstituíveis negativos, para grande desgosto dele e nosso. O Paulo, meu irmão, acabou transformando com sucesso o banheiro grande da casa num laboratório fotográfico.

No andar de baixo, a casa tinha três quartos, um banheiro grande e um pequeno, duas salas (uma menor e outra maior, ambas com grandes portas-janelas para o jardim), copa e cozinha. No andar de cima, um quarto grande de teto em catedral, que dava para um terraço largo, um quarto pequeno e um banheiro. O terraço, que também tinha uma escada externa, levava a um cômodo construído em cima da garagem, originalmente concebido para criar canários, que foi convertido num belo escritório/estúdio mais tarde ocupado pelo material fotográfico do Paulo.

Dividimo-nos, os três irmãos mais velhos no quarto grande de cima, os dois mais novos no quarto pequeno de cima, as três irmãs no quarto dos fundos, Vovó Dindinha e Didida no quarto do meio. Na sala grande ficou a mobília de sala de visitas e sala de jantar da Vovó e a escrivaninha de Papai que tinha sido do nosso avô, na sala pequena o piano de Mamãe, que de vez em quando recebia a música da Tia Maria Cândida e do Dom Alcuíno, capelão do mosteiro, muito nosso amigo, um suíço grandão, já entrado em anos, músico e antigo alpinista que trabalhou vinte e tantos anos entre os índios no Roraima e que de vez em quando ia visitar Mamãe e aproveitava para tocar o piano que não tinha no mosteiro, um sofá, cadeiras, e uma belíssima arca de pau brasil, herança da casa de Santa Luzia de Mestre Augusto e Dona Cocota, avós de Papai. O piano mais tarde foi para a sala grande, e foi nele que o André, nosso caçula, desenvolveu muito da música que anos mais tarde o fez abandonar a arquitetura para se tornar primeiro um flautista e depois compositor e dono de um estúdio de gravação. Na copa, a mobília de sala de jantar e a cristaleira de Mamãe. Papai mandou fazer uma estante em toda a parede maior da sala grande, contornando a janela com seu parapeito acolchoado para sentar e tirar uma prosa, e os armários da cozinha, pelo Seu Luiz, um mestre marceneiro - os armários foram tão bem feitos que as portas não tocavam a estrutura mas a gente sentia a resistência do ar ao fecha-las.

No quarto de casal, que dava para o jardim, acrescentou um banheiro só para eles (velho sonho dos dois na casa antiga) e uma porta que dava para o jardim, formando um cantinho acolhedor para a escrivaninha onde Mamãe gostava de escrever.

No corredor que ligava a copa aos quartos foi construída uma longa estante para abrigar os livros de Mamãe, junto com uma menor ao lado da entrada da escada que subia para o segundo andar.

Junto dessa estante, um quadro a bico de pena e aquarela retrata a “Árvore Grande”, em formato de árvore genealógica com todos os moradores da época em que foi pintado sentados nos seus galhos. Uma lembrança preciosa, pintada por uma arquiteta amiga, Liana Valle.

Hoje, no quarto grande lá de cima estão o Teko e a Pat, o quarto pequeno foi durante um tempo o quarto do filho deles, o Francisco, que nós todos chamamos de Chico, até que se formou em biologia e foi o inspirador do meu neto Artur, que é apaixonado por bichos, até que deixou a carreira para se tornar um especialista em programação de block-chain.

De Vovó, Didida, Mamãe e Papai e outros dos antigos já falei em outros lugares desse blog. Além das deles, são dezenas, centenas talvez de boas histórias que aconteceram nessa casa, mas como fui quem saiu de lá mais cedo a maior parte delas só são minhas por ouvir dizer, e em vez de tentar conta-las aqui vou deixar isso por conta dos irmãos e irmãs, dos sobrinhos e sobrinhos-netos, como fizemos com a casa da Barbacena, uma narrativa a muitas mãos que foi crescendo e tomando vida à medida em que circulava entre nós. Certamente essa nova narrativa vai tomar vida fora desse blog. Então fica aqui, para vocês, uma tentativa de dividir um pouco do meu agradecimento por tantos anos felizes e pelas saudades grandes que essa casa, que abrigou as vidas felizes de nós todos vai deixar.

 

A família em 1989 - eu sou o segundo da esquerda, atrás, ao lado da Neném
fotografia Paulo Baptista

Uma lembrança, que só nós entenderemos, vai ficar gravada no lugar - o prédio que será construído lá vai se chamar... Vila São José.

22/10/2023

Carta para Gilberto


Carlos Monteiro

 

Fotografia Carlos Monteiro


O Rio de Janeiro continua lindo"...

Ôooo, Seu Gilberto, me perdoe, mas tenho que discordar de você meu querido Imortal...

O Rio de Janeiro tem todas as prerrogativas, todos os encantos naturais e de seu povo que exaltava, isso mesmo exaltava felicidade. No entanto essa cidade está sofrendo e sofrida, anda triste e cabisbaixa. Acho que perdeu o tom, pois literalmente perdeu Tom Jobim. Ele já não senta à sombra da sumaúma que hoje leva seu nome, ele já não anda pela praia até o Leblon, já não há mais Plataforma e Seu Alberico e, como diria Drummond, "...já não há...", aliás,  Gilberto, andam teimando em roubar seus óculos, do Drummond, o poeta já não tem mais sossego, vive aos saltos no banco da praia que, em fotografia imortalizada por Rogério Reis se transformou em imagem, eternizada em bronze, de suas formas e, pois é, as vezes cansado com tantas selfies... Poetas também cansam.

Mesmo sabendo que há inocentes no Leblon ou que “no mar nesta estava escrita uma cidade”.

Pois é, Gilberto, essa cidade que você mandou abraços já não é mais aquela. Já não tem mais aquele elan, diria Claude Amaral Peixoto. Queria, eu poder passear com a minha bike..., "tá" bom, o Ancelmo vai dizer que bike é o cacete, eu sei, tudo bem, com meu camelo, minha magrela, pelas ciclovias da cidade, mas, anda meio complicado.

  

Fotografia Carlos Monteiro

Pela orla até vai, vejo a paisagem, as meninas coloridas pelo sol, que encantavam Vininha, vejo meus amanheceres, meus pôr dos sóis, dou aquela paradinha para o mate gelado, para o Biscoito Globo, mas só chego até o fim do Leblon.

Queria ir até São Conrado, pois essa era ideia da ciclovia da Niemeyer, queria pegar minhas ondas no canto da praia, naquele cantinho democrático, onde todos os surfistas são bem-vindos, onde a galera da Rocinha e os bacanas da Zona Sul se confraternizam à espera da rainha, a onda perfeita para dropar, para o tubo, para se exibirem, para compartilharem a felicidade.

Mas Gilberto, agora não dá, a ciclovia, batizada de Tim Maia, caiu, desmoronou, desabou, tombou, desintegrou, matou seres humanos. A ciclovia foi derrubada por uma ressaca, não uma vez, mas algumas vezes. Fiquei imaginando o Tim, deve ter se revirado no túmulo, deve estar rogando pragas, por ter seu nome atrelado a esta obra até hoje e o fará por toda eternidade. Não tiro sua razão, afinal o que era belo, o que era nobre, o que era para ser do Leme ao Pontal, foi interrompido por umas ressacas, logo umas ressacas que nunca derrubaram o Tim que adorava ver o “azul da cor do mar”.

Pois é, Seu Gilberto, a coisa aqui anda feia, já cantava o Francisco, agora, também, anda difícil.

Sabe Gilberto, ando, ultimamente, meio triste, queria tanto ver “essa gente bronzeada mostrar seu valor...”, queria sair às ruas com minha magrela e circular toda cidade, queria poder sair lá da Penha, do Meier, de Madureira ou, quem sabe, de Ramos e pedalar até o Pontal e vice-versa.

Sabe Gilberto, queria muito voltar a ser feliz, queria muito dizer que é FelizCidade, queria muito receber novamente ‘aquele abraço’.


Fotografia Carlos Monteiro


 

24/04/2023

Luz vermelha

Ana Nunes - aquarela


Heraldo Palmeira

A cidadezinha de Cacimba Seca ficava num fim de mundo perdido, parte de uma mesorregião onde a vizinha Serra Verde, distante oito léguas, era o centro político e econômico. O lugarejo era tão pequeno em sua dúzia de ruas que tudo estava praticamente ao alcance da visão.

A energia elétrica era fornecida por um velho motor movido a diesel, o motor da luz, ligado às seis da manhã e desligado às oito da noite de segunda a sábado. No domingo, parava um pouco mais cedo, ao redor das sete da noite, logo depois que a missa das seis terminava.

A escuridão do domingo dependia do tamanho do sermão do padre. Olegário, o velho homem de pele oleosa e cheiro de nicotina, católico fervoroso que comandava o equipamento, dava uma margem de quinze minutos depois da bênção final para que todos tivessem tempo de chegar em casa sob luz firme. Luz firme era uma figura de linguagem. Pela força do hábito, ninguém mais percebia as pequenas falhas de corrente que provocavam piscadelas o tempo todo.

Olegário morava por detrás da igreja e o motor ficava instalado num pequeno galpão pouco mais adiante, no fim da rua. Depois que ele apertava o botão vermelho do painel, virava a chave para a esquerda e dava descanso à máquina, os lampiões, candeeiros e lamparinas eram acesos nas ruelas e casas. Até hoje permanece a dúvida se o bruxulear das chamas da luz movida a querosene não seria um capricho insondável para combinar com as piscadelas da outra luz.

O ar noturno tinha aquele cheiro característico do querosene Jacaré trazido em galões de Serra Verde e revendido em garrafas na bodega da praça. O negócio era monopólio antigo de Miudinho, o bodegueiro gorducho e sempre suado, e já tinha até dado briga quando o mecânico Zé Onça quis entrar na jogada depois de acusar o outro de batizar o produto. Foi o falecido padre Ademar quem negociou a paz entre os dois, por recomendação direta do coronel Balbino, o quase dono da região.

A economia local era composta por pequenos comércios, agricultura e pecuária pouco além da subsistência e serviços simples. Exceção de dois ou três “ricos”, o alcance financeiro de todos era limitado e isso moldava costumes. Jantava-se cedo e as noites eram curtas para economizar querosene. Depois que o motor descansava, as pessoas ainda conversavam um pouco nas calçadas iluminadas por alguns lampiões instalados nos postes, as casas completamente às escuras.

Ao redor das nove da noite, instalava-se um deserto em que o silêncio só era quebrado aqui e ali pelo vento agitando as árvores, latidos de alerta ou algazarra de gatos tentando domar gatas no cio. Às vezes, o zurrado distante de algum jerico ou um mugido bovino. Os galos ficavam encarregados de acordar todo mundo pouco antes dos primeiros sinais da aurora, enquanto as galinhas poedeiras, fiofós em brasa, se preparavam para dar início ao alarido que anunciava ovos fresquinhos.

O bordel ficava nos cafundós daquele fim de mundo. Saindo da cidade pelo lado do açude, era tirada de quase légua até uma grande curva, onde estava a casa simples no meio do nada, na parte da frente de uma gleba de quatro hectares. Caminho poeirento, o vento se espalhando pelo descampado num açoite quase constante, deixando tudo e todos com aquele tom de terra seca. Tanto que havia um chiste quando alguém sumia das vistas: “Fulano foi buscar terra”.

O bordel sempre desempenhou um papel importante na vida do interior, palco e esconderijo de amores e mistérios humanos. Aquele de Cacimba Seca era também um ponto estratégico na beira do arremedo de estrada de chão batido, ponto de passagem de viajantes. Muitos deles usavam o lugar como entreposto para fazer refeições e dormir durante seus trajetos naqueles rincões. Não faltava quem preferisse a animação, a cama limpinha e a cozinha reconhecida. Ainda tinha as meninas… Algo bem melhor do que a pensão calorenta da cidade.

Os mais abastados faziam o trajeto montados. Havia uma hierarquia econômica ascendente definida pelo meio de transporte utilizado: jerico, mula e cavalo.

As bicicletas talvez ficassem posicionadas abaixo dos cavalos, ainda mais se carregassem alguns enfeites e acessórios – campainha, forro acolchoado na sela, bagageiro traseiro, espelhos retrovisores, fitas plásticas coloridas penduradas nos extremos do guidão, bolsões laterais traseiros, pneus faixa branca, bomba de encher pneus presa no quadro, jogo de farol, lanterna traseira e dínamo para garantir iluminação noturna.

Não raro, carroças de tração animal passavam carregadas de mercadorias para abastecer as feiras semanais das redondezas.

Carro por ali era item de grande luxo e até juntava gente para ver de perto quando aparecia algum vindo da capital. O trânsito motorizado sobre rodas ficava mesmo por conta dos caminhões que serviam ao comércio, alguns com espaço também para passageiros – o famoso pau de arara. E da motocicleta Triumph de um jovem médico que se instalara em Serra Verde, e se desdobrava caridosamente para cobrir tanto chão árido. Felizmente, havia a ajuda providencial dos farmacêuticos locais, os quase médicos que encaravam as queixas mais simples do dia a dia.

No bordel havia a luz vermelha “de lei”. Instalada na cumeeira, pouco acima da fachada principal sem letreiro, sinalizava que “era ali”. Na verdade, um lampião a querosene protegido por uma manga de vidro pintada de esmalte vermelho. A pintura foi obra de Gerusa. Era o farol para guiar os navegantes em busca de perdição e outros amparos.

Cabia a Neno a tarefa de acendê-lo todos os dias, um tiquinho de tempo antes de o Sol liberar a escuridão para invadir o fim de tarde e tudo virar noite. Era a hora em que todos os gatos ficavam pardos. O rapaz decidira pelo lampião, mais adequado do que instalar uma lâmpada elétrica que se apagaria com o desligar do motor da cidade.

Ele montou uma trapizonga que lhe permitia, sem sair do chão, colocar e tirar todos os dias o lampião da base de madeira e do gancho de fixação instalados na cumeeira da casa. E a partir das oito da noite, quando o motor da luz descansava lá longe, o bordel seguia aceso enfeitado pelas labaredas alimentadas por querosene e outros combustíveis.

Dentre os fregueses assíduos estava seu João do Motor, responsável pela manutenção de diversos motores de energia da região, que nunca deixava de bater o ponto quando passava pelo lugar. Velho amigo de Olegário, o homem mantinha a família na capital, mas vivia na estrada porque os equipamentos das cidades eram antigos e cumpriam grandes jornadas de funcionamento diário. Não raro, tinha de improvisar peças, fazer arranjos engenhosos. Virou craque das gambiarras por pura necessidade.

Neno – alguns diziam que se chamava Nazareno –, muito além de acendedor do lampião da cumeeira, era o faz-tudo do bordel. Fora encontrado recém-nascido e quase morto numa beira da estrada por um viajante, na metade do caminho de Serra Verde. Mariquinha, a proprietária, mesmo muito jovem não pensou duas vezes e pegou o menino para criar com a ajuda das outras mulheres. O tempo passou, ele já era um galalau e nunca se soube quem era a mãe, imagine o pai!

Habilidoso, resolvia tudo. Desde o abastecimento da casa, cuidados de saúde – sempre precária – das meninas, brigas enciumadas e outras broncas que pudessem aparecer sem avisar. Figura querida, embaixador do bordel nas relações cotidianas com o resto do mundo.

O local era muito simples, mas extremamente limpo e organizado. Os quartos não tinham portas, apenas cortinas feitas naqueles panos leves, estampados e baratos. Aqui e ali, o vento criava frestas que permitiam ver sombras e movimentos do interior sempre em penumbra, embora o rígido código de ética desses lugares desanimasse olhares compridos para o que não era da conta de cada um.

Havia um baixio nas cercanias, que se vestia de verde na época das chuvas. Era onde Neno mantinha as vazantes de feijão, milho, batata e melancia para abastecer a despensa. Tinha por lá até umas laranjeiras, limoeiros, mamoeiros e bananeiras. Nos tempos das águas, a cantoria dos sapos se espalhava pelas noites.

No quintal, um chiqueiro repleto de galinhas, um pequeno curral com duas vaquinhas de leite e uma área considerável para cultivo de hortaliças, legumes e frutas. Caçote era o vira-lata magro e ágil, caçadorzinho danado! E seu grande amigo Mimoso, o gato preto macio, garantia ratos e pequenos insetos bem longe. Os dois tinham trânsito livre pelos cômodos e jamais se soube de qualquer comentário inconveniente deles a respeito do que viam e ouviam.

Os casais começavam os amassos na sala, um ambiente que vivia sempre à meia-luz e tinha algumas mesas e o bar. Um velho rádio servia de trilha sonora enquanto havia energia. Para garantir bebidas geladas por mais tempo, Neno mantinha o interior da velha geladeira protegido por uma cortina de plástico grosso transparente, que impedia a entrada de ar quente quando a porta era aberta.

Sobre a porta que dava acesso ao corredor dos quartos havia um aviso imponente: “Favor não limpar o pau nas cortinas”. Nada mais justo, para isso havia em cada aposento um conjunto de jarra e bacia de ágata, água fresca, sabonete e uma pequena toalha, instalados num móvel de madeira feito sob medida por Nicanor, o carpinteiro mais afamado da região – também frequentador e sempre usuário dos serviços de Dinara. E ainda havia o banheiro coletivo, na parte final que dava acesso ao quintal, com direito a privada, tanque e caneco de lata para os banhos com água fria de bater queixo.

Neuza estava aposentada das funções amorosas do salão há uns dez anos, mas continuava trabalhando no bordel. Assumiu o comando da cozinha e era afamada nos quitutes e nas refeições – nas festas do padroeiro São Ladislau, sua barraca no oitão da igreja era a mais concorrida. Não era à toa que Neno pensava, no futuro, montar um restaurante separado da casa, para atender no almoço viajantes dos paus de arara, inclusive mulheres e crianças. Andara fazendo uns rabiscos onde a cozinha seria ampliada para atender aos dois locais e facilitar o trabalho da amiga.

A cozinheira ainda cobria de afetos um único cliente, o carteiro Pontaria – todo mundo dizia que aquilo era amor antigo e verdadeiro. O homem ganhou o apelido porque tinha a pálpebra do olho esquerdo caída, como se estivesse fazendo mira para atirar. Lotado em Serra Verde, ele aparecia uma vez por semana quando vinha fazer o serviço postal em Cacimba Seca. Sempre ficava para dormir, o trabalho lhe dava álibi perfeito para apresentar em casa.

Coronel Balbino era o homem mais rico da região. Vivia dedicado à pecuária numa grande fazenda nos arredores de Serra Verde, onde estava a serra que dava nome à cidade e diziam ter minério. Controlava as principais atividades econômicas da região, incluída a distribuição de alimentos, bebidas e todos os combustíveis. Também era o dono das bancas de jogo e cobrava participação nos bordéis a troco de proteção.

Costumava pagar a conta em todos os lugares que frequentava, mesmo nos seus estabelecimentos. Dizia que não era bom misturar as coisas. Nada mal, o dinheiro apenas trocava de bolso na calça. Na verdade, sua palavra era lei. Para fechar o cerco completo, era grande benemérito da Igreja em todas as paróquias. E escolhia os delegados de polícia, que mantinha submissos e amedrontados por seus jagunços.

Quando vinha ao bordel era festa grande e faturamento garantido. Generoso, costumava pagar rodadas de bebidas a quem estivesse por perto. Circulava o boato de que ele havia desonrado Mariquinha, filha de um vaqueiro seu, quando ela tinha apenas catorze anos. A menina engravidou tempos depois e, quando o menino nasceu, reza a história contada em tom baixo que ele obrigou Jerônimo, o avô, a criá-lo como filho. Foi motivo para que ela fosse expulsa de casa e caísse no mundo e na vida.

Havia quem dissesse que foi o coronel quem montou o bordel para ela, com a condição de que não deitasse com nenhum homem além dele. O diabo atentou e ela apaixonou-se por Valdevino, viajante que negociava couros. Até que Balbino chegou de surpresa exatamente numa noite em que o rapaz estava na casa. Foi a última vez que foi visto na região. Um dos jagunços da comitiva de viagem do patrão andou soltando entre cachaças que até queimaram o corpo depois dos corretivos aplicados.

O tempo passou e até hoje o vento e a poeira sussurram pelo descampado que “colocaram coisa” na bebida dos cabras. A própria Mariquinha teria dado a facada no coração do velho enquanto ele dormia, tingindo seu paletó de linho branco com o carmim do próprio sangue. E Neno fez queimada fora de época no mato do baixio preparando a terra para plantação.

O desaparecimento por encanto do coronel e seus jagunços? Não era a primeira vez. Eles haviam saído de Serra Verde para mais uma jornada ao Oeste, no prumo da fronteira com Bolívia e Paraguai, viagem de mais de mês para comprar boiada grande. Tem quem jure que viu os quatro no destino, onde o patrão se apaixonou por uma cabrocha novinha com cara de índia e resolveu esticar a temporada. Ficaram todos, sabe-se lá quando voltariam.

Ainda tinha um resto de história que dava conta que Neno era o filho de Mariquinha, providencialmente encontrado na beira da estrada pelo viajante Valdevino. O avô Jerônimo queria entregar o neto à filha, mas não teve coragem de chegar perto dela e largou a criança ao relento. O povo fala demais, Ave-Maria!

O delegado Saldanha andou investigando o sumiço dos homens só porque foi obrigado pela lei. Seu amor por Mariquinha era muito maior do que as humilhações que sofria do coronel Balbino. E se pudesse, ele mesmo mataria aquela jagunçada desgraçada. Ainda por cima, tinha Neno como filho.

Era uma investigação difícil. Que vestígios? Ninguém viu ou ouviu nada de anormal. Na verdade, ninguém lembrava de Balbino e seus jagunços terem passado por lá antes de seguirem para o Oeste, até porque nem era caminho. Aliás, faz tempo que não se sabe deles, as notícias pararam de chegar. O coronelzinho até já assumiu os negócios.

Como assim, peixeira? Aquela que Neuza usa somente para cortar carnes na cozinha? Quem é doido de mexer nos apetrechos de Neuza? Cinzas no meio daquele vento e poeira? Se alguém encontrar…

Os sacos de cal que Neno comprou na bodega de Miudinho? A casa foi toda caiada, ficou branquinha como algodão com a nova pintura, e o delegado até convidou o bodegueiro para uma noitada. O suarento, especialista em obras, ficou impressionado com a qualidade do serviço.

Como alguém pode dizer que um mato verdejante daquele no baixio tinha sido queimado? Nem era época de queimada. Quem disse que a autoridade levou mais de seis meses para empreender as primeiras diligências? Além disso, para que a pressa? Ora, era quase certeza que o coronel e seus jagunços estavam aproveitando a vida na casa de chapéu. O povo fala demais, Ave-Maria!

Padre Diego, que viera do estrangeiro para assumir a paróquia em razão da doença do vigário, garantiu durante um sermão da missa de domingo que havia conversado muito com padre Ademar em seus últimos momentos de vida. A respeito do sumiço do amigo coronel e seus cabras, o velho sacerdote foi profético: “O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano”.

Dias depois, noite de Lua cheia, a roda de conversa da praça estava animada. Biró, o homem do leite, lembrou daquela pregação do padre e disse que as palavras eram bonitas demais, mas não tinha entendido direito. Ramiro, o sacristão ladino, adorava repetir frases alheias com solenidade e explicou que era um pensamento de um tal de Newton, homem sabido do estrangeiro. E que padre Ademar tinha perdido a fala bem um mês antes da chegada de padre Diego.

No dia seguinte, o delegado Saldanha desembarcou do pau de arara que vinha de Serra Verde e foi direto à sacristia, onde Ramiro estava dando polimento nos cálices e patenas da liturgia.

– Você andou chamando padre Diego de mentiroso, Ramiro?!

– Deus me defenda, seu delegado! Sou doido, não! Deve ter sido problema do sotaque do padre Diego. Até porque, já dizia o poeta Antônio Mesquita, “Sotaque é o rebolado da voz”.

– Ah, bom! Deve ter sido isso. Esse negócio de língua solta e sotaque estrangeiro é complicado de misturar, né não? Você bem que podia explicar isso melhor lá na praça. A gente não precisa de mais confusão do que já tem.

– Sim, senhor! – o sacristão estava apavorado.

O delegado ajustou o coldre deixando o revolvão à mostra e foi saindo em busca da praça, enquanto Ramiro andou apressado na direção do banheiro. Ainda na calçada da igreja, o homem da lei acendeu um cigarro de palha e deu uma tragada profunda como quem busca um bálsamo de paciência.

Saldanha desceu a ladeirinha cumprimentando as pessoas com cordialidade e parou na bodega de Miudinho. Achou de bom tom verificar se a pintura do bordel continuava como peça de propaganda da qualidade da cal. Também gostava da vista da praça. Colocou o chapéu panamá de abas largas que ganhara do coronel em cima do balcão e tomou um refresco para espantar o calor.

Chamou Punhetinha, o menino de recados do comércio, e pediu que fosse buscar Ventania, o alazão da polícia que ficava guardado aos cuidados do amigo Olegário. Daqui a pouco, lá se vem o menino todo fagueiro, montado no cavalão bonito, o rifle enfiado no coldre ao lado da sela. Era a autoridade em pessoa!

Saldanha deu umas moedas com um sorriso maroto no canto da boca, enquanto o menino batia-lhe continência. Montou e seguiu na direção do bordel. Cavalgou em ritmo rápido pois a tarde já ia começar a cair e estava bonito para chover. Dobrou a curva da chegada a tempo de avistar Neno já tratando de colocar a luz vermelha na cumeeira.

– Eita menino que eu quero bem! – murmurou numa distância segura para não ser ouvido.

O delegado resolvera pernoitar. Não precisava de álibi em casa quando estava em diligência. Tomou banho, jantou com gosto, bebeu umas cervejas geladas e foi dormir nos braços de Mariquinha. Ficar tinha sido mais prudente do que se arriscar naquelas estradas noite adentro.

Era noite de segunda-feira, dia de pouco movimento. Os poucos clientes tinham ido embora e Neno fechou o bordel, armando sua rede na sala, onde gostava de dormir. As meninas se recolheram aos aposentos. A chuva batia nas telhas e a temperatura ficou muito agradável. Ventania estava protegido dentro da parte coberta do pequeno curral dos fundos da propriedade. Caçote se acomodou no chão, do lado que o delegado ocupava na cama. Mimoso esticou-se na prateleira do móvel, embaixo da bacia de lavar pau, quase tocando os pés de Mariquinha. O revolvão repousava sob o travesseiro, o rifle debaixo do colchão. Todos dormiram o sono dos justos até os galos anunciarem um novo dia. 


01/04/2023

Água para quem tem sede

 

fotografia Carlos Monteiro

 Carlos Monteiro

O Dia Mundial da Água, ‘comemorado’ em 22 de março, foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 1993, juntamente com a "Declaração Universal dos Direitos da Água". A data tem fundamental importância na conscientização das populações mundiais quanto a manutenção de florestas, nascentes, rios e lagos.

Água é essência, recurso fundamental para a sobrevivência dos seres vivos que habitam o planeta. Quantos clamam, como Gilberto Gil, por um copo d’água, diante da sede que sentem, um simples copo d’água para ‘completar’ os 70% dos quais somos compostos.

O Nordeste brasileiro, sofre abrasado pela seca que assola o solo, o povo, o agreste, a fauna e a flora. O sol inclemente, faz a asa-branca bater asas rumo ao infinito e murcha a palma.

Os indígenas choram pelas águas, que hoje contaminadas, foram criadas pelo pranto da lua em planger dolorido pela perda do Astro-Rei.

A Terra-Mãe clama, ardendo em lume, por ‘hidratação’, vê seus filhos em sofrimento buscarem gotas orvalhais, para alimentarem seus corpos já tão sofridos com a desnutrição e a estiagem.

No entanto o descaso, o egoísmo e a mais-valia sobrepõem-se ao bem-comum, ao pensar no semelhante. 

fotografia Carlos Monteiro

Água, que não seja o fundo da cacimba, o fim do caminho pedregoso, seja esperança vívida e viva o coração. 


 

16/03/2023

Marx desperta no Astral

 

As filhas de Marx e Jenny que chegaram à idade adulta (Wikimedia Commons)

Antonio Carlos Rocha

Marx dormiu cinquenta anos. Aqui no Astral onde ele se encontra, uma colônia no plano invisível, os espíritos – almas – precisam ficar um longo tempo em recuperação. Para que cessem os liames, apegos do mundo terrestre e, por mais que tentem, sempre ficam resquícios da última vida.

Ao abrir os olhos, já recuperado energeticamente viu que a esposa Jenny estava a seu lado.

- A minha Jenny, você sempre do meu lado, minha protetora.

- De longa data, há muitas reencarnações tem sido assim querido. – falou sorrindo.

-Sabe, eu tenho vontade de ver nossos filhos e pedir perdão a eles.

- Mas você sempre foi um bom pai, amoroso, afetuoso, o que aconteceu de uns morrerem quando crianças e jovens não é culpa nossa. É do carma deles e, claro, carma nosso, que sofremos com a passagem deles. Mas aprendi aqui que cada um só vai na sua hora, ninguém vai antes, exceto quando é suicídio.

- Mas então...

- Pois é, isso que ainda dizem até hoje, que as nossas crianças morreram de inanição, são os nossos adversários políticos, “fake news” como se fala hoje por lá...

- Tem razão, a bem da verdade tínhamos São Engels para nos ajudar.

- É Mesmo, um verdadeiro santo, nos ajudou de diversas formas...

- Por fala nele, por onde anda o Engels amado.

- Mais adiante nós vamos vê-lo. Em uma reencarnação bem anterior vocês foram irmãos gêmeos, ele gosta até muito de você, e bota muito nisso.

- E agora, qual o próximo passo, morri, dormi bastante, relaxei, descansei, agora estou pronto para os novos estudos, novos conhecimentos, eis a evolução...

- Falou certo – disse o Preceptor que ia entrando, os três sorriram amigos – Jenny, você já deu o primeiro toque, agora prossiga a primeira aula, que é a Lei do Karma que rege o Universo. Inclusive antigos hindus, no Vedas, os textos sagrados de lá afirmam que Deus, o Criador é a própria Lei do Carma.

- Como sempre gostei de estudar – disse o Espírito-Alma Marx – vamos lá professora querida Jenny.

- Ah! meu amor, se você soubesse, mas vai ficar sabendo mais adiante, nós estamos juntos há muitas vidas e vidas.

- Eu posso não saber, mas sinto, pressinto...

(  continua ...).

27/02/2023

Marx reencontra Jenny

 

Karl Marx e Jenny Von Westphalen

Antonio Carlos Rocha

Assim que Karl Marx faleceu o espírito de sua esposa Jenny o recepcionou do outro lado:

- Oi meu querido, seja bem-vindo – abraçaram-se enquanto almas, espíritos

- Oi Jenny amada, no fundo eu sabia que existia vida desse lado

- Ué, foi isso que você aprendeu quando criança lá na Igreja Luterana, quando ia aos domingos com o seu pai

- E os nossos filhos?

- Estão bem, na condição de espíritos estudiosos das verdades eternas, mas tem uma que reencarnou no Brasil e hoje é parlamentar, deputada federal

- Mas por que, Brasil?

- Ah! vai entender querido... coisas do carma que ela adquiriu nessas décadas

- E qual a sua função aqui? Desse lado da vida ou pós-vida?

- Continuo sendo a mãe de vocês, cuidando e aprendendo muito. Venha, vou lhe apresentar o nosso preceptor. Ele é um espírito de muita luz, uma espécie de diretor do plano espiritual onde vivo

- Salve Mestre ! – cumprimentou Jenny

- Muito prazer, o sr. tem Mestrado? – perguntou Marx

- É um tipo de liderança espiritual que temos por aqui. Aos poucos você vai entender

- Venha querido, sua cama já está pronta, você vai ter que descansar muito, dessa longa travessia – declarou Jenny para o esposo alma.

 

15/02/2023

A Chave

Guache seco - Ana Nunes


Ana Nunes

Que

abre a porta

sem volta

ou largada na mesa

no toque sutil

da perda irreparável

do fim

Que

levada na bolsa

traz de tarde

o sentido do descanso

o abrir a porta

o sentir o cheiro

do conforto carinho

de se ter a casa

Que

traz nessa mesma tarde

numa outra porta

o desânimo das panelas

da pilha de roupa

dos brinquedos por guardar.

Que

pressente a cama

na volta da madrugada intensa

molhada do beber.

Que

aguarda vigilante

pelo caminho escuro

de poucas janelas acesas

a saudade breve do que é um lar

e a lembrança ainda quente

da conversa amena

dos sorrisos claros

dos amigos queridos

partilhado o pão e o vinho.

Que

a liberdade

da primeira chave adolescente

do sentimento adulto

ainda que não.

Que

dada no dividir vida

sal sonhos e fantasia

para agora ou para sempre

quem diria.

Que

da volta do futebol

jogado suado e fedido

traz no rosto cansado

o soco merecido

na briga pelo gol

Que

abre a porta

depois do enterro

do desterro

do terror da casa vazia

da dor maior

do medo de encontrar

aquele pedaço que falta

Que

a grávida barriguda feliz

carregou por meses

junto à barriga amarrada na cordinha

essa chave antiga da porta azul de duas folhas

e pariu a criança forte

marcada de nascença vermelho escuro

de uma chave antiga

no final das costas.

Era meu Bro.