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24/08/2020

Reflexões numa cama de hospital



Francisco Bendl
O filósofo que disse, “mente sã em corpo são”, tinha lá as suas razões.
Faz tempo que não tenho qualquer inspiração para escrever... nenhuma ideia... nada.
De acordo como a minha doença se agrava, parece que o cérebro se mostra solidário com o coração, e ambos se negam funcionar a contento.
Discordando eu dessa greve dos meus dois órgãos mais importantes, penso sobre o fim da existência, o meu adeus ao planeta, ao mesmo tempo que imagino um tanto preocupado se esta vida tem sequência ou se encerra em definitivo; se existe compensação pelos sofrimentos ou punição pelos bons momentos.
As dúvidas são constantes nesses dias que ainda estou entre os terráqueos.
Por mais que eu tente estabelecer um critério a respeito de como seria essa outra forma de vida além dessa, confesso que o meu limite se restringe à Terra, e sequer meus pensamentos alcançam voos maiores fora dessa órbita.
Por exemplo:
Haveria algum lugar específico para quem se despede desta vida?
Um apartamento ou casa ou escritório ou consultório ou pousada ou hotel ou Spa, onde aguardamos o nosso próximo destino?
Alguém irá nos trazer novas ordens para continuarmos seres humanos através de outros pais, um novo país, outros tempos?
Voltaremos ricos ou pobres ou na mesma situação econômica e financeira de antes?
Casaremos ou ficaremos solteiros?
Morreremos cedo ou seremos longevos?
Teremos filhos ou não?
Nasceremos saudáveis ou com alguma síndrome?
Seremos homem ou mulher?
Ou a vida se apaga em definitivo, e se obtém o tão merecido descanso?
Independente do que se pode ou não acontecer depois da minha partida, os meus questionamentos se referem a essa vida, aquilo que fiz, realizei, e que elaborou uma trajetória que tem seus predicados, defeitos, omissões, irresponsabilidades, ousadias, momentos de coragem, de solidariedade, de egoísmo, de satisfação, alegria, tristeza, felicidade, carinho, afeto, amizades, desempenho profissional, saúde, doenças, obrigações, compromissos, escolaridade, cursos, viagens, prazeres, alimentos, exercícios, vestimentas, experiências, frustrações, relacionamentos, filhos, dedicação, residências, meios de locomoção, confissões, religiões, crenças e... amor.
Levo para a outra vida, se existir, uma boa bagagem desta, um baú daqueles antigos quando se viajava de trem ou navio.
Levo muita tralha adquirida nesses setenta anos de vida.
Servirá para onde vou ou será totalmente desnecessária?
Lá, o “mundo” será diferente, com novas perspectivas, avaliações, princípios, valores... nada conhecido por aqui ou será uma espécie de continuidade dessa existência?
Eu me encontrarei com familiares que se despediram de mim há tempos ou já teriam reencarnado ou tomaram novos rumos?
Irei rever amigos?
As pessoas serão as mesmas como as conhecemos ou se apresentarão diferente?
Também se encontrarão no mesmo local aguardando novas funções, reencarnações, ordens, determinações... ou silêncio total, o nada?
Sinto que a diferença dessa existência para essa que vou não me responde nenhum dos meus questionamentos.
Somente dúvidas se apossam do que resta dos meus dias.
Deverei deixá-las de lado?
Afinal das contas, o “outro lado” pode ser tão diferente desse, que minhas perguntas de nada servirão para sequer eu ter uma ideia sobre como será, e como serei recebido, se for o caso.
Curiosamente, do mesmo jeito que nasci neste mundo, em que eu não tinha a mínima ideia do que seria, do quanto tempo de vida eu teria, como seria a minha trajetória, percebo que o fim desta vida me remete para o mesmo momento quando surgi nesse planeta:
Só perguntas e dúvidas!
A nossa vida será, então, neste planeta ou fora dele ou em algum lugar especial, e somente questionamentos, dúvidas, perguntas, sempre sem saber o que nos acontecerá até mesmo no minuto seguinte?
Ou a morte será o fim em definitivo do que nos assalta a mente, nos perturba, nos deixa confuso e sem saber como agir, a não ser aguardar?
Meu último suspiro será de dúvida?
Ou saberei de onde vim, por que fiquei aqui por sete décadas e para onde vou, finalmente?
Se me faltavam ideias para uma de minhas últimas crônicas, sobraram perguntas, questionamentos, incertezas.
A espécie humana é mesmo uma incógnita?
Seríamos feitos somente de incertezas?
Tanto neste planeta como para onde se vai depois ou não, só nos restam dúvidas?
Sem base alguma que me sirva para eu afirmar ou definir uma vida, posso até mesmo elaborar uma ideia que não existimos, que estamos de passagem de um mundo para outro, saltando de planeta para planeta, e que a vida terrena é um sonho.
Ou uma ilusão?
A nossa morte será acordar em outro local, que seria o verdadeiro?
Pensando bem, o ser humano é movido pelo que é abstrato, invisível, até mesmo indescritível:
Vontade, determinação, ambição, emoção, desejos, ideal, fé, angústia, frustração, sofrimento, satisfação...nada do que citei tem cor ou formato, que pode ser visto de perto ou não.
Na razão direta que, apesar de termos corpo, aparência, altura... somos movidos pelo que não vemos e não sabemos como definir, sabe-se lá se a vida também não é nada disso que sentimos ou imaginamos?
Nessas alturas, também não sei se valerá a pena eu saber como será o outro “lado”.
Se não é melhor viver de incertezas, dúvidas e confusões, que uma existência à base de certezas, definições e inquestionável.
Enfim, se eu puder avisá-los de “lá” o que descobri, contem comigo.
Caso não recebam informações da minha parte, por favor, sigam com as dúvidas porque procedentes, e pelo fato de que jamais serão respondidas.
Logo, eis a certeza da vida, a incerteza;
Eis a definição da existência, a inexistência;
Eis quem somos, nada somos.
Tais conclusões seriam boas ou ruins?


18/08/2020

Coisas da quarentena

Retrato (Ana Nunes)


Wilson Baptista Junior
A pandemia do coronavírus mudou, claro, as vidas de toda a gente. Em graus diversos, simples para alguns, mas sempre incômodos e para tantos e tantos outros de modo muito sacrificante e perigoso.
Cá em casa, somos os dois aposentados faz alguns anos. Hoje meus trabalhos remunerados são menos frequentes, mas até a última década eu aliava uma grande quantidade de viagens a uma grande carga de trabalho de desenvolvimento de software ou de estudos de consultoria feito, tantas vezes até altas horas, no escritório doméstico parecido com o que o nosso amigo Chicão chamou, no caso do dele, de “oficina do pensamento”. Então isso de “home office” já era um hábito antigo. A Ana faz seus escritos e seus trabalhos de arte no seu ateliê no quarto ao lado, parede meia com o meu. Um de nossos filhos mora com a mulher no estado de São Paulo, e o outro, que também morava por lá, estava se mudando para Belo Horizonte com a mulher e os nossos netinhos mas enquanto reformava o apartamento para onde viriam estavam morando com nossos consogros, numa cidade vizinha. Então a gente já não se via tanto quanto queria, e quando se anunciou a necessidade da quarentena pensamos que nossas vidas não mudariam muito, e pensamos também como muita gente (ilusão) que essa mudança duraria dois ou três meses.
Mas mudaram sim. Porque somos os dois dos grupos de risco, por mais razões do que a idade. Mudanças que só se avaliam quando ocorrem; a boa natação diária da Ana no clube vizinho substituída pela busca do sol esquivo pelas janelas, a bolsa de fotografia quieta e sem uso na prateleira à minha frente porque nossa casa fica num terceiro andar com um lado tampado pelas árvores da rua e pelos prédios que esconderam a vista linda da Serra do Curral de quando viemos para cá, e o outro voltado para o prédio vizinho do conjunto – que saudade, não podendo sair de casa,  das grandes varandas e dos jardins das casas da minha juventude - as caminhadas substituídas por monótonos quilômetros indo e voltando nos cinquenta metros ao lado da garagem do nosso prédio, a ida diária às padarias do bairro substituída por encomendas semanais ao empório de uma de minhas sobrinhas e de seu marido, grande pessoa e excelente chef de cozinha (aliás pães maravilhosos de fermentação natural feitos com todo o carinho); as idas frequentes ao sacolão da esquina ou ao mercado distrital com o prazer de escolher os produtos e encontrar os conhecidos se transformaram na muitíssimo bem vinda ajuda da irmã caçula da Ana, que como ainda não está nesses grupos de risco quando faz dessas compras para ela faz também para nós, deixa na nossa porta, toca a campainha e sai correndo – aí vem o ritual do álcool nas embalagens antes da lavagem mais cuidadosa do que antes dos legumes e verduras em água sanitária; a ida ocasional à farmácia alguns quarteirões para cima quando se precisava de algum medicamento, uma voltinha a pé até a Savassi quando faltava alguma coisa de papelaria ou de material de desenho ou material de informática, enfim, qualquer pequena necessidade que antes significava um passeio e uma solução rápida passou a exigir planejamento, pesquisa na internet, compra online e tempo de espera; depois ficar atento, a qualquer hora do dia, a que pudesse tocar o interfone, parar o que estivesse fazendo, pegar uma máscara e a chave da casa, ver se ainda achava um dinheiro para dar de gorjeta (como ter dinheiro trocado quando não se sai de casa e se paga tudo com cartão ou transferência bancária?) trocar depressa os sapatos, descer correndo as escadas para não atrasar o entregador (nosso prédio é antigo, sem elevador nem porteiro), e na volta trocar novamente os sapatos, passar álcool gel nas mãos antes de fechar a porta, limpar a compra e conferir se o que chegou foi mesmo o que se pediu.
(Por índole e, não nego, também por razões financeiras, nunca fomos aficionados a compras desnecessárias, mas gostávamos do passeio tranquilo, da escolha, da despreocupação e da pouca urgência com que se podia suprir a falta de alguma pequena coisa quando era percebida...)
Os encontros de família e amigos transformados em imagens nas telas dos computadores ou dos telefones (e que bom que temos pelo menos isso).
E mudanças mais imprevistas – como o retrato de uma das suas irmãs que a Ana terminou de pintar e, não podendo entregá-lo por enquanto à modelo, na falta total de espaço de parede (todas cobertas de quadros, fotografias ou estantes) optou por pendurar dentro do banheiro mais perto do escritório – o que gera compreensível constrangimento para mim quando preciso usá-lo e me deparo com o olhar vigilante da cunhada...
E mudanças piores - um tempo maior do que o de antes assistindo filmes ou séries que perdem o encanto quando se percebe que esse tempo maior é uma tentativa de dissipar um pouco o desânimo de ver o festival de intolerância que viraram as redes sociais, e as notícias diárias dos jornais e dos canais de TV sobre os muitos erros cometidos no enfrentamento da pandemia que continua a grassar, os números crescentes de mortes, e a tristeza sem tamanho quando vez ou outra um desses números vem com o nome de uma pessoa amiga ou conhecida, e não se pode nem fazer a última despedida a ela nem levar o conforto, ainda que pouco frente à perda irreparável, do abraço à família.
E junto com isso tudo a dor de saber que o peso dessas mudanças para nós é incomparavelmente menor do que as mudanças e sacrifícios que a pandemia trouxe para as vidas de tantas e tantas mais pessoas que não têm a sorte de estar, como a gente, no pequeno grupo de brasileiros que sabem que, barrando algum imprevisto mais sério, podem ficar em casa, numa casa segura onde podem se proteger o quanto possível sabendo que vão pelo menos conseguir pagar as contas no final do mês sem aumentar as dívidas.
Vai mudar? Talvez. Quando? Só Deus sabe. E como será depois? Só podemos esperar...



07/08/2020

A namorada


Fotografia de Vlada Prihoda

Heraldo Palmeira
Os tempos ficaram nervosos. Todos deviam ficar recolhidos, era preciso escapar do invisível que pairava por toda parte. A manhã de início de outono seguia modorrenta.
O gato estava esparramado no sofá em sua eterna terapia do sono. De repente, mexeu as orelhas naquele movimento de direcionar a audição a algum ponto para aumentar a acuidade sensorial. Levantou de um pulo e saiu numa tremenda correria em busca da janela da rua.
Fez o trajeto que a preguiça sempre obrigava recusar. Partiu do parapeito da janela do andar do meio, desceu pelos galhos dos arbustos até a calçada e atravessou a rua. Sem miar, como de costume, para que lhe abrissem o portão do andar de baixo – era folgado! Estava em festa.
A casa da frente recebia hóspedes. Há cerca de um ano, uma moça deixara o local para morar em outra cidade. Levara embora a gata de pelo branco com manchas pretas. E aquele gato ficara triste de um tanto de não disfarçar. Agora a moça voltara, para morar novamente, e trouxe sua companheira a tiracolo.
O casal fez o ritual de reconhecimento ali mesmo à beira da calçada, enquanto a moça descarregava o porta-malas do carro. E partiu rápido, escalando muro e árvore frondosa, para o local do telhado onde costumava passar boa parte do dia. Fui espectador privilegiado daquela cena lá do outro lado, sentado diante da minha janela do piso superior.
Fiquei vendo aqueles dois. Tinham sorte, não precisavam de quarentena, de distanciamento social. Também estavam livres da liturgia de máscaras, água e sabão, álcool em gel. Podiam ir onde bem entendessem, sem qualquer restrição. Não havia nenhum novo conjunto de normas e comportamentos estabelecido para felinos.
Melhor de tudo, não estavam obrigados a tomar partido. E nem participar de discussões placebas sobre sexo dos anjos e flexibilidade dos cachimbos de barro, como faziam os humanos sobre todas aquelas drogas terminadas em “ina”, fechar, flexibilizar, salvar economia... Muito menos, ouvir a ladainha da politicagem mais rasteira ou preocupar-se com os incompetentes públicos e as roubalheiras que assaltavam o noticiário cotidiano.
A única preocupação mais evidente continuava sendo os cachorros da vizinhança, incapazes de alcançá-los nas alturas daqueles telhados fartos em cumeeiras e duas águas à sombra do arvoredo da rua.
Ele passou a lambê-la inteira, naquele ritual de limpeza dos gatos. Depois foi a vez dela fazer o mesmo com ele. Era como se estivessem apagando todas as coisas daquele tempo que passaram separados, as inutilidades que deveriam ser esquecidas.
Bastou um pouco tempo e já estavam novamente namorados, cochilando apoiados um no outro, o vento passando suavemente ao longo dos pelos.
A namorada que está na minha vida
Juíza, minha brisa, minha ventania
Tormenta que se recolhe em calmaria
Quando encontra a costa do meu porto
Quando encosta no cais do meu corpo
Com o passo no compasso do meu
Enchendo de fé o meu coração ateu
Chega mansa como a preguiça
Que acorda no último sono
Como uma saudade sussurrada
Do que nunca foi embora
A mágica que enfeitiça
Como o sal que tempera meu mar
O tempo que valeu esperar
Pelo tempo que é meu e seu
Quem ama e insiste
Sabe dos riscos de quem desiste
Quem é chama e resiste
Sente o calor do fogo que existe
Onde nada parecia ter
Tudo que haveria de ser
Talvez ele já tivesse contado a ela que no tempo da ausência nunca deixou de ir àquele telhado. Todos os dias. Ritual. Manteve o território marcado de quem não desistiu, a certeza de que tudo voltaria ao normal.
Não havia entre eles nenhuma ansiedade por um “novo normal”, isso era coisa de humanos perdidos diante de uma situação nova. Ah!, os humanos, que dizem ouvir estrelas, que fantasiaram que bicho tem de ir a psicólogo e inventaram psicólogo de bicho. Coisa doida de gente maluca!
O gato deu uma última olhada sobre o telhado até mirar a rua adiante. Correndo os olhos pelo que enxergava, sequer parou numa placa afixada dentro de um boteco de esquina que havia na primeira esquina da sua mirada: “Em uma sociedade que lucra com a sua dúvida, gostar de si mesmo é um ato rebelde”. (*)
Os gatos dão-se ao luxo de ignorar a indústria do medo, da manipulação. E as negociatas à média luz a partir delas. Afinal, uma briga de gatos jamais será silenciosa. É sempre travada sob gritos, rosnados, quase falas. Até o sexo deles é escandaloso, para não deixar dúvidas do que está havendo. Nada parece à venda com eles.
Na sociedade dos gatos não sobrevivem indivíduos inseguros e nem existe século de almas adoecidas, como já inventaram para explicar a fragilidade humana atual. Não conheço gatos insatisfeitos, deprimidos, superprotetores ou vitimizados.
Os gatinhos têm ao redor de noventa dias depois que nascem para caçar rumo na vida e viver do próprio suor. Espertos, respeitam os ancestrais que desenvolveram a preguiça congênita da espécie. E vivem nela deliciosamente. Nada de grandes esforços, nada de suar o pelo. Não é à toa o ditado “malandro é o gato!”. Talvez, por isso, nenhum idiota resolveu escrever livros de autoajuda para gatos – não existem gatos idiotas. E provavelmente nunca aparecerão coaches para ensinar-lhes o pulo do gato que fingem conhecer.
Ah, os gatos! Não são superficiais, exacerbam na autoestima, desprezam os humanos – apenas usufruem da imaturidade e fragilidade emocional de “papais” e “mamães”, e ainda metem a unha quando cansam de suas frivolidades e vozes infantilizadas.
Gatos não vivem de aparências. Beleza forçada em academias? São os inventores da preguiça. Procedimentos estéticos? Nada como uma boa lambida no pelo e pronto. Consumismo? Não fazem a menor diferença diante de tantas rações cheias de fricotes de araque – comem para sobreviver, inclusive coisas nojentas que não raro substituem aquele “caviar químico” colocado nos pratinhos.
Os tempos andavam esquisitos, mas ainda parecia razoável crer que gatos não sabem o que é ler e escrever, não têm qualquer interesse por frases de efeito em botecos de esquina.
Eu não tinha qualquer dúvida de que ele estava certo e seguro de si mesmo, como é comum aos gatos. É, eles exacerbam na autoestima!
Os dias passaram modorrentos, cercados de medos e falácias. Era tudo que os humanos conseguiam fazer diante daquela falta de chão que havia se instalado sob o modelo de pandemia.
Pensei na gata e no equilíbrio que ela trouxe para a vida do gato. Acho até que ele ria das fragilidades e confusões dos humanos da casa. Tinha teto, comida e água limpa e bastava atravessar a rua para ser feliz. Não havia odisseia, tudo simples. Era o segredo que ele gentilmente dividia comigo, generoso em mostrar sabedoria sem qualquer arrogância e sem cobrar nada.
Na verdade, ele só queria mesmo estar com a namorada. Apenas isso importava.
Na Lua Nova
Irei visitá-la
Nada terei de provar
Irei para vê-la
E cumprir ordem de meu coração
Dê-me vinho
E seus melhores encantos
Mas não esqueça:
Não quero ser imortal
Olhei a felicidade daqueles gatos; senti inveja. E não era inveja branca e nem inveja boa. Senti inveja verdadeira por não poder resolver as coisas com aquela evidente simplicidade que me afrontava diante da minha janela.
Não sabia onde foi parar a minha superioridade humana, que supostamente serviria para menosprezar aqueles bichos metidos a cavalos do cão. Azar o meu, nem pedra aprendi a atirar quando criança e não teria nenhuma à mão naquele ambiente urbano.
Nem quis começar uma reza, não estava com a fé em dia para aqueles dias tão ateus. Não haveria bênção suficiente para um desacerto daquele, que cristão nenhum suporta muito tempo.
Talvez fosse melhor apenas acreditar nos amores, que logo trazem um sopro de renovação, espantam o sopor e a tudo enternecem.
Agora vamos ter os girassóis
Do fim do ano
E o calor vem desumano
Tudo irá se expandir
Crescer com as águas
Quiçá, amores nos corações
E um santeiro
Milagreiro
Prevê a dor
De terceiros
E diz que a vida
É feita de ilusão
Aquela que um dia o fez sonhar
Se foi
Hoje o seu pesar
Cintila nos varais
Usou as sete vidas
E não foi feliz jamais
Toda a imensidão
Passou pela vida
E foi cair na solidão
Mais um santo pra esculpir
É o que lhe vale
Pra evitar que o rancor
Suas ervas espalhe
Acordei com o gato miando baixinho debaixo da janela, como costumava fazer. Ele veio pelas trilhas dos telhados e arvoredo. De mim, queria apenas que eu abrisse as passagens para seus luxos na casa. E logo voltaria para o seu amor renovado. Jamais me convidaria para dividir a ração servida no andar de baixo pelos humanos. Muito menos para usufruir daquele telhado do outro lado da rua. Afinal, eu já tinha mais de noventa dias de vida.

(*) Citação de Caroline Caldwell
Trechos de:
A namorada (Heraldo Palmeira)
Circe (Horácio Paiva)
Milagreiro (Djavan)