Retrato (Ana Nunes) |
Wilson Baptista Junior
A pandemia do
coronavírus mudou, claro, as vidas de toda a gente. Em graus diversos, simples
para alguns, mas sempre incômodos e para tantos e tantos outros de modo muito sacrificante
e perigoso.
Cá em casa,
somos os dois aposentados faz alguns anos. Hoje meus trabalhos remunerados são
menos frequentes, mas até a última década eu aliava uma grande quantidade de
viagens a uma grande carga de trabalho de desenvolvimento de software ou de
estudos de consultoria feito, tantas vezes até altas horas, no escritório
doméstico parecido com o que o nosso amigo Chicão chamou, no caso do dele, de
“oficina do pensamento”. Então isso de “home office” já era um hábito antigo. A
Ana faz seus escritos e seus trabalhos de arte no seu ateliê no quarto ao lado,
parede meia com o meu. Um de nossos filhos mora com a mulher no estado de São
Paulo, e o outro, que também morava por lá, estava se mudando para Belo
Horizonte com a mulher e os nossos netinhos mas enquanto reformava o apartamento
para onde viriam estavam morando com nossos consogros, numa cidade vizinha. Então
a gente já não se via tanto quanto queria, e quando se anunciou a necessidade
da quarentena pensamos que nossas vidas não mudariam muito, e pensamos também
como muita gente (ilusão) que essa mudança duraria dois ou três meses.
Mas mudaram
sim. Porque somos os dois dos grupos de risco, por mais razões do que a idade.
Mudanças que só se avaliam quando ocorrem; a boa natação diária da Ana no clube
vizinho substituída pela busca do sol esquivo pelas janelas, a bolsa de
fotografia quieta e sem uso na prateleira à minha frente porque nossa casa fica
num terceiro andar com um lado tampado pelas árvores da rua e pelos prédios que
esconderam a vista linda da Serra do Curral de quando viemos para cá, e o outro
voltado para o prédio vizinho do conjunto – que saudade, não podendo sair de
casa, das grandes varandas e dos jardins
das casas da minha juventude - as caminhadas substituídas por monótonos
quilômetros indo e voltando nos cinquenta metros ao lado da garagem do nosso
prédio, a ida diária às padarias do bairro substituída por encomendas semanais
ao empório de uma de minhas sobrinhas e de seu marido, grande pessoa e
excelente chef de cozinha (aliás pães maravilhosos de fermentação natural
feitos com todo o carinho); as idas frequentes ao sacolão da esquina ou ao
mercado distrital com o prazer de escolher os produtos e encontrar os
conhecidos se transformaram na muitíssimo bem vinda ajuda da irmã caçula da
Ana, que como ainda não está nesses grupos de risco quando faz dessas compras para
ela faz também para nós, deixa na nossa porta, toca a campainha e sai correndo
– aí vem o ritual do álcool nas embalagens antes da lavagem mais cuidadosa do
que antes dos legumes e verduras em água sanitária; a ida ocasional à farmácia
alguns quarteirões para cima quando se precisava de algum medicamento, uma
voltinha a pé até a Savassi quando faltava alguma coisa de papelaria ou de material
de desenho ou material de informática, enfim, qualquer pequena necessidade que
antes significava um passeio e uma solução rápida passou a exigir planejamento,
pesquisa na internet, compra online e tempo de espera; depois ficar atento, a
qualquer hora do dia, a que pudesse tocar o interfone, parar o que estivesse
fazendo, pegar uma máscara e a chave da casa, ver se ainda achava um dinheiro
para dar de gorjeta (como ter dinheiro trocado quando não se sai de casa e se
paga tudo com cartão ou transferência bancária?) trocar depressa os sapatos,
descer correndo as escadas para não atrasar o entregador (nosso prédio é antigo,
sem elevador nem porteiro), e na volta trocar novamente os sapatos, passar
álcool gel nas mãos antes de fechar a porta, limpar a compra e conferir se o
que chegou foi mesmo o que se pediu.
(Por índole
e, não nego, também por razões financeiras, nunca fomos aficionados a compras
desnecessárias, mas gostávamos do passeio tranquilo, da escolha, da despreocupação
e da pouca urgência com que se podia suprir a falta de alguma pequena coisa
quando era percebida...)
Os encontros
de família e amigos transformados em imagens nas telas dos computadores ou dos
telefones (e que bom que temos pelo menos isso).
E mudanças
mais imprevistas – como o retrato de uma das suas irmãs que a Ana terminou de
pintar e, não podendo entregá-lo por enquanto à modelo, na falta total de
espaço de parede (todas cobertas de quadros, fotografias ou estantes) optou por
pendurar dentro do banheiro mais perto do escritório – o que gera compreensível
constrangimento para mim quando preciso usá-lo e me deparo com o olhar
vigilante da cunhada...
E mudanças
piores - um tempo maior do que o de antes assistindo filmes ou séries que
perdem o encanto quando se percebe que esse tempo maior é uma tentativa de
dissipar um pouco o desânimo de ver o festival de intolerância que viraram as
redes sociais, e as notícias diárias dos jornais e dos canais de TV sobre os
muitos erros cometidos no enfrentamento da pandemia que continua a grassar, os
números crescentes de mortes, e a tristeza sem tamanho quando vez ou outra um
desses números vem com o nome de uma pessoa amiga ou conhecida, e não se pode
nem fazer a última despedida a ela nem levar o conforto, ainda que pouco frente
à perda irreparável, do abraço à família.
E junto com
isso tudo a dor de saber que o peso dessas mudanças para nós é
incomparavelmente menor do que as mudanças e sacrifícios que a pandemia trouxe
para as vidas de tantas e tantas mais pessoas que não têm a sorte de estar,
como a gente, no pequeno grupo de brasileiros que sabem que, barrando algum
imprevisto mais sério, podem ficar em casa, numa casa segura onde podem se
proteger o quanto possível sabendo que vão pelo menos conseguir pagar as contas
no final do mês sem aumentar as dívidas.
Vai mudar?
Talvez. Quando? Só Deus sabe. E como será depois? Só podemos esperar...
1) Parabéns Wilson, crônica realista que está marcando o planeta.
ResponderExcluir2)Algumas partes parecidas comigo, moro em prédio antigo, sem elevador e sem porteiro.
3)No mais, agradecer ao Criador e continuar na minha recuperação pós-ombro, já tirei a tipóia, estou na Fisioterapia, mas aqui e acolá ainda sinto os dores das fisgadas, ainda bem que leves e suportáveis.
4) O homem já foi na Lua, mas a saúde é algo frágil e deve ser muito cuidada, agora aprendi !
3) Atenção aí quando descerem as escadas, Agora eu fico atentíssimo, na recuperação.
Mestre Antonio, obrigado. E você tem toda a razão quanto à saúde, precisamos cuidar dela, ainda mais em tempos difíceis. Que bom saber que a fisdioterapia está dando resultado, fratura de ombro deve ser mesmo muito incômada. E escadas são perigosas se nos descuidamos.
ExcluirUm abraço do Mano
1) desculpem os erros de digitação...
ResponderExcluir2) só com a mão direita.
3) saúde e proteção para todos (as)!
Prezado Autor e nosso Editor/Moderador Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR,
ResponderExcluirBela Crônica "Coisas da Quarentena" em que o senhor nos conta da vida do ilustre casal nestes tempos de isolamento social.
Que bom que os senhores além da atividade profissional são Artistas, pois tanto o senhor, Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR ( Excelente Escritor, Comandante de agradável Blog "Conversas do Mano", Fotógrafo, etc, e a Sra. ANA NUNES ( Também excelente Escritora, Poetisa, grande Artista Plástica, etc), e assim podem usar o tempo livre que agora aumentou, em Trabalhos em Arte.
Só Editar/Moderar um Blog é atividade quase contínua, e o senhor o faz com maestria.
Acredito que a Vacina anti-Covid 19 daqui a dois meses será aplicada na Rússia, e aqui no Brasil, ainda antes do final do ano, quando então o País voltará ao normal, e trabalharemos mais para dar conta da Demanda reprimida.
Como temos +- a mesma idade, temos certas similaridades na "Quarentena" e eu tenho tirado mais tempo para o estudo da Bíblia e seus Comentários.
PS. Queria mandar votos de pronta recuperação do ombro deslocado na queda na escada, de nosso Colega Prof. Dr. ANTONIO ROCHA, que felizmente já está na recuperação fisio-terápica.
Parabéns, com Nossas Saudações.
Caro Flávio, obrigado pelos elogios ao post e a nós (os para a Ana mais merecidos do que os para mim).
ExcluirEstamos acompanhando ansiosamente as notícias sobre as vacinas; Deus queira que venha logo e boa, para que possamos começar o intenso trabalho da volta do país a um estado melhor. E as pessoas possam respirar aliviadas com menos notícias tristes.
Um abraço do Mano
Estamos todos nesta triste situação e sem saber quando vai acabar
ResponderExcluirA gente vai se acostumando com as limitações e começa até a achar natural
E como vcs estamos numa situação privilegiada mas ainda assim a falta de liberdade nos limita
Mano, seus comentários são ótimos e merece os parabéns pela naturalidade da aceitação
Vamos torcer pelo fim de tudo isto e enquanto isto receba um abraço virtual
Pois é, Léa, uma das maiores tristezas é ver as pessoas começando a acharem natural essas mortes e pewssoas doentes. E o pior é que este estado de espírito acaba por fazer as pessoas começarem a tomar menos cuidado com o perigo, que ainda não passou. Sem falar nos inúmeros que não têm como tomar esses cuidados. A aceitação não pode se transformar em complacência.
ExcluirUm abraço para você e o Gilberto, do Mano
Mano,
ResponderExcluirE eu que sempre fui andarilho inveterado tive de aprender a viajar sem tirar os pés do lugar. Pelo menos, aprendi a dar ainda mais valor a pequenas coisas, às "conquistas" mais prosaicas como sentar no hall do prédio e bater um papo com o porteiro e o papagaio do vizinho na hora de tomar sol da manhã, cada um no seu poleiro determinado pelo distanciamento social - por ora, apenas "meu louro" pode ficar sem máscara. Não há destino certo, vale sua recomendação "Só podemos esperar...". Abração!
Heraldo,
Excluirpois é, acabamos descobrindo que as "pequenas coisas" podem, muitas vezes, ser tão ou mais importantes do que as grandes, e que o que realmente importa é se elas deixam ou alimentam um calorzinho em nossos corações.
Esperemos, todos juntos. Parece que alguma vacina já aponta no horizonte. Deus queira.
Um abraço do Mano