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18/08/2020

Coisas da quarentena

Retrato (Ana Nunes)


Wilson Baptista Junior
A pandemia do coronavírus mudou, claro, as vidas de toda a gente. Em graus diversos, simples para alguns, mas sempre incômodos e para tantos e tantos outros de modo muito sacrificante e perigoso.
Cá em casa, somos os dois aposentados faz alguns anos. Hoje meus trabalhos remunerados são menos frequentes, mas até a última década eu aliava uma grande quantidade de viagens a uma grande carga de trabalho de desenvolvimento de software ou de estudos de consultoria feito, tantas vezes até altas horas, no escritório doméstico parecido com o que o nosso amigo Chicão chamou, no caso do dele, de “oficina do pensamento”. Então isso de “home office” já era um hábito antigo. A Ana faz seus escritos e seus trabalhos de arte no seu ateliê no quarto ao lado, parede meia com o meu. Um de nossos filhos mora com a mulher no estado de São Paulo, e o outro, que também morava por lá, estava se mudando para Belo Horizonte com a mulher e os nossos netinhos mas enquanto reformava o apartamento para onde viriam estavam morando com nossos consogros, numa cidade vizinha. Então a gente já não se via tanto quanto queria, e quando se anunciou a necessidade da quarentena pensamos que nossas vidas não mudariam muito, e pensamos também como muita gente (ilusão) que essa mudança duraria dois ou três meses.
Mas mudaram sim. Porque somos os dois dos grupos de risco, por mais razões do que a idade. Mudanças que só se avaliam quando ocorrem; a boa natação diária da Ana no clube vizinho substituída pela busca do sol esquivo pelas janelas, a bolsa de fotografia quieta e sem uso na prateleira à minha frente porque nossa casa fica num terceiro andar com um lado tampado pelas árvores da rua e pelos prédios que esconderam a vista linda da Serra do Curral de quando viemos para cá, e o outro voltado para o prédio vizinho do conjunto – que saudade, não podendo sair de casa,  das grandes varandas e dos jardins das casas da minha juventude - as caminhadas substituídas por monótonos quilômetros indo e voltando nos cinquenta metros ao lado da garagem do nosso prédio, a ida diária às padarias do bairro substituída por encomendas semanais ao empório de uma de minhas sobrinhas e de seu marido, grande pessoa e excelente chef de cozinha (aliás pães maravilhosos de fermentação natural feitos com todo o carinho); as idas frequentes ao sacolão da esquina ou ao mercado distrital com o prazer de escolher os produtos e encontrar os conhecidos se transformaram na muitíssimo bem vinda ajuda da irmã caçula da Ana, que como ainda não está nesses grupos de risco quando faz dessas compras para ela faz também para nós, deixa na nossa porta, toca a campainha e sai correndo – aí vem o ritual do álcool nas embalagens antes da lavagem mais cuidadosa do que antes dos legumes e verduras em água sanitária; a ida ocasional à farmácia alguns quarteirões para cima quando se precisava de algum medicamento, uma voltinha a pé até a Savassi quando faltava alguma coisa de papelaria ou de material de desenho ou material de informática, enfim, qualquer pequena necessidade que antes significava um passeio e uma solução rápida passou a exigir planejamento, pesquisa na internet, compra online e tempo de espera; depois ficar atento, a qualquer hora do dia, a que pudesse tocar o interfone, parar o que estivesse fazendo, pegar uma máscara e a chave da casa, ver se ainda achava um dinheiro para dar de gorjeta (como ter dinheiro trocado quando não se sai de casa e se paga tudo com cartão ou transferência bancária?) trocar depressa os sapatos, descer correndo as escadas para não atrasar o entregador (nosso prédio é antigo, sem elevador nem porteiro), e na volta trocar novamente os sapatos, passar álcool gel nas mãos antes de fechar a porta, limpar a compra e conferir se o que chegou foi mesmo o que se pediu.
(Por índole e, não nego, também por razões financeiras, nunca fomos aficionados a compras desnecessárias, mas gostávamos do passeio tranquilo, da escolha, da despreocupação e da pouca urgência com que se podia suprir a falta de alguma pequena coisa quando era percebida...)
Os encontros de família e amigos transformados em imagens nas telas dos computadores ou dos telefones (e que bom que temos pelo menos isso).
E mudanças mais imprevistas – como o retrato de uma das suas irmãs que a Ana terminou de pintar e, não podendo entregá-lo por enquanto à modelo, na falta total de espaço de parede (todas cobertas de quadros, fotografias ou estantes) optou por pendurar dentro do banheiro mais perto do escritório – o que gera compreensível constrangimento para mim quando preciso usá-lo e me deparo com o olhar vigilante da cunhada...
E mudanças piores - um tempo maior do que o de antes assistindo filmes ou séries que perdem o encanto quando se percebe que esse tempo maior é uma tentativa de dissipar um pouco o desânimo de ver o festival de intolerância que viraram as redes sociais, e as notícias diárias dos jornais e dos canais de TV sobre os muitos erros cometidos no enfrentamento da pandemia que continua a grassar, os números crescentes de mortes, e a tristeza sem tamanho quando vez ou outra um desses números vem com o nome de uma pessoa amiga ou conhecida, e não se pode nem fazer a última despedida a ela nem levar o conforto, ainda que pouco frente à perda irreparável, do abraço à família.
E junto com isso tudo a dor de saber que o peso dessas mudanças para nós é incomparavelmente menor do que as mudanças e sacrifícios que a pandemia trouxe para as vidas de tantas e tantas mais pessoas que não têm a sorte de estar, como a gente, no pequeno grupo de brasileiros que sabem que, barrando algum imprevisto mais sério, podem ficar em casa, numa casa segura onde podem se proteger o quanto possível sabendo que vão pelo menos conseguir pagar as contas no final do mês sem aumentar as dívidas.
Vai mudar? Talvez. Quando? Só Deus sabe. E como será depois? Só podemos esperar...



9 comentários:

  1. 1) Parabéns Wilson, crônica realista que está marcando o planeta.

    2)Algumas partes parecidas comigo, moro em prédio antigo, sem elevador e sem porteiro.

    3)No mais, agradecer ao Criador e continuar na minha recuperação pós-ombro, já tirei a tipóia, estou na Fisioterapia, mas aqui e acolá ainda sinto os dores das fisgadas, ainda bem que leves e suportáveis.

    4) O homem já foi na Lua, mas a saúde é algo frágil e deve ser muito cuidada, agora aprendi !


    3) Atenção aí quando descerem as escadas, Agora eu fico atentíssimo, na recuperação.

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    1. Wilson Baptista Junior24/08/2020, 18:08

      Mestre Antonio, obrigado. E você tem toda a razão quanto à saúde, precisamos cuidar dela, ainda mais em tempos difíceis. Que bom saber que a fisdioterapia está dando resultado, fratura de ombro deve ser mesmo muito incômada. E escadas são perigosas se nos descuidamos.
      Um abraço do Mano

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  2. 1) desculpem os erros de digitação...

    2) só com a mão direita.

    3) saúde e proteção para todos (as)!

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  3. Flávio José Bortolotto19/08/2020, 21:38

    Prezado Autor e nosso Editor/Moderador Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR,

    Bela Crônica "Coisas da Quarentena" em que o senhor nos conta da vida do ilustre casal nestes tempos de isolamento social.
    Que bom que os senhores além da atividade profissional são Artistas, pois tanto o senhor, Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR ( Excelente Escritor, Comandante de agradável Blog "Conversas do Mano", Fotógrafo, etc, e a Sra. ANA NUNES ( Também excelente Escritora, Poetisa, grande Artista Plástica, etc), e assim podem usar o tempo livre que agora aumentou, em Trabalhos em Arte.

    Só Editar/Moderar um Blog é atividade quase contínua, e o senhor o faz com maestria.

    Acredito que a Vacina anti-Covid 19 daqui a dois meses será aplicada na Rússia, e aqui no Brasil, ainda antes do final do ano, quando então o País voltará ao normal, e trabalharemos mais para dar conta da Demanda reprimida.

    Como temos +- a mesma idade, temos certas similaridades na "Quarentena" e eu tenho tirado mais tempo para o estudo da Bíblia e seus Comentários.

    PS. Queria mandar votos de pronta recuperação do ombro deslocado na queda na escada, de nosso Colega Prof. Dr. ANTONIO ROCHA, que felizmente já está na recuperação fisio-terápica.

    Parabéns, com Nossas Saudações.

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    1. Wilson Baptista Junior24/08/2020, 18:09

      Caro Flávio, obrigado pelos elogios ao post e a nós (os para a Ana mais merecidos do que os para mim).
      Estamos acompanhando ansiosamente as notícias sobre as vacinas; Deus queira que venha logo e boa, para que possamos começar o intenso trabalho da volta do país a um estado melhor. E as pessoas possam respirar aliviadas com menos notícias tristes.
      Um abraço do Mano

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  4. Léa Mello Silva21/08/2020, 12:07

    Estamos todos nesta triste situação e sem saber quando vai acabar
    A gente vai se acostumando com as limitações e começa até a achar natural
    E como vcs estamos numa situação privilegiada mas ainda assim a falta de liberdade nos limita
    Mano, seus comentários são ótimos e merece os parabéns pela naturalidade da aceitação
    Vamos torcer pelo fim de tudo isto e enquanto isto receba um abraço virtual

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    1. Wilson Baptista Junior24/08/2020, 18:11

      Pois é, Léa, uma das maiores tristezas é ver as pessoas começando a acharem natural essas mortes e pewssoas doentes. E o pior é que este estado de espírito acaba por fazer as pessoas começarem a tomar menos cuidado com o perigo, que ainda não passou. Sem falar nos inúmeros que não têm como tomar esses cuidados. A aceitação não pode se transformar em complacência.
      Um abraço para você e o Gilberto, do Mano

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  5. Heraldo Palmeira03/09/2020, 16:44

    Mano,
    E eu que sempre fui andarilho inveterado tive de aprender a viajar sem tirar os pés do lugar. Pelo menos, aprendi a dar ainda mais valor a pequenas coisas, às "conquistas" mais prosaicas como sentar no hall do prédio e bater um papo com o porteiro e o papagaio do vizinho na hora de tomar sol da manhã, cada um no seu poleiro determinado pelo distanciamento social - por ora, apenas "meu louro" pode ficar sem máscara. Não há destino certo, vale sua recomendação "Só podemos esperar...". Abração!

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    1. Wilson Baptista Junior03/09/2020, 19:02

      Heraldo,
      pois é, acabamos descobrindo que as "pequenas coisas" podem, muitas vezes, ser tão ou mais importantes do que as grandes, e que o que realmente importa é se elas deixam ou alimentam um calorzinho em nossos corações.
      Esperemos, todos juntos. Parece que alguma vacina já aponta no horizonte. Deus queira.
      Um abraço do Mano

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