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07/08/2020

A namorada


Fotografia de Vlada Prihoda

Heraldo Palmeira
Os tempos ficaram nervosos. Todos deviam ficar recolhidos, era preciso escapar do invisível que pairava por toda parte. A manhã de início de outono seguia modorrenta.
O gato estava esparramado no sofá em sua eterna terapia do sono. De repente, mexeu as orelhas naquele movimento de direcionar a audição a algum ponto para aumentar a acuidade sensorial. Levantou de um pulo e saiu numa tremenda correria em busca da janela da rua.
Fez o trajeto que a preguiça sempre obrigava recusar. Partiu do parapeito da janela do andar do meio, desceu pelos galhos dos arbustos até a calçada e atravessou a rua. Sem miar, como de costume, para que lhe abrissem o portão do andar de baixo – era folgado! Estava em festa.
A casa da frente recebia hóspedes. Há cerca de um ano, uma moça deixara o local para morar em outra cidade. Levara embora a gata de pelo branco com manchas pretas. E aquele gato ficara triste de um tanto de não disfarçar. Agora a moça voltara, para morar novamente, e trouxe sua companheira a tiracolo.
O casal fez o ritual de reconhecimento ali mesmo à beira da calçada, enquanto a moça descarregava o porta-malas do carro. E partiu rápido, escalando muro e árvore frondosa, para o local do telhado onde costumava passar boa parte do dia. Fui espectador privilegiado daquela cena lá do outro lado, sentado diante da minha janela do piso superior.
Fiquei vendo aqueles dois. Tinham sorte, não precisavam de quarentena, de distanciamento social. Também estavam livres da liturgia de máscaras, água e sabão, álcool em gel. Podiam ir onde bem entendessem, sem qualquer restrição. Não havia nenhum novo conjunto de normas e comportamentos estabelecido para felinos.
Melhor de tudo, não estavam obrigados a tomar partido. E nem participar de discussões placebas sobre sexo dos anjos e flexibilidade dos cachimbos de barro, como faziam os humanos sobre todas aquelas drogas terminadas em “ina”, fechar, flexibilizar, salvar economia... Muito menos, ouvir a ladainha da politicagem mais rasteira ou preocupar-se com os incompetentes públicos e as roubalheiras que assaltavam o noticiário cotidiano.
A única preocupação mais evidente continuava sendo os cachorros da vizinhança, incapazes de alcançá-los nas alturas daqueles telhados fartos em cumeeiras e duas águas à sombra do arvoredo da rua.
Ele passou a lambê-la inteira, naquele ritual de limpeza dos gatos. Depois foi a vez dela fazer o mesmo com ele. Era como se estivessem apagando todas as coisas daquele tempo que passaram separados, as inutilidades que deveriam ser esquecidas.
Bastou um pouco tempo e já estavam novamente namorados, cochilando apoiados um no outro, o vento passando suavemente ao longo dos pelos.
A namorada que está na minha vida
Juíza, minha brisa, minha ventania
Tormenta que se recolhe em calmaria
Quando encontra a costa do meu porto
Quando encosta no cais do meu corpo
Com o passo no compasso do meu
Enchendo de fé o meu coração ateu
Chega mansa como a preguiça
Que acorda no último sono
Como uma saudade sussurrada
Do que nunca foi embora
A mágica que enfeitiça
Como o sal que tempera meu mar
O tempo que valeu esperar
Pelo tempo que é meu e seu
Quem ama e insiste
Sabe dos riscos de quem desiste
Quem é chama e resiste
Sente o calor do fogo que existe
Onde nada parecia ter
Tudo que haveria de ser
Talvez ele já tivesse contado a ela que no tempo da ausência nunca deixou de ir àquele telhado. Todos os dias. Ritual. Manteve o território marcado de quem não desistiu, a certeza de que tudo voltaria ao normal.
Não havia entre eles nenhuma ansiedade por um “novo normal”, isso era coisa de humanos perdidos diante de uma situação nova. Ah!, os humanos, que dizem ouvir estrelas, que fantasiaram que bicho tem de ir a psicólogo e inventaram psicólogo de bicho. Coisa doida de gente maluca!
O gato deu uma última olhada sobre o telhado até mirar a rua adiante. Correndo os olhos pelo que enxergava, sequer parou numa placa afixada dentro de um boteco de esquina que havia na primeira esquina da sua mirada: “Em uma sociedade que lucra com a sua dúvida, gostar de si mesmo é um ato rebelde”. (*)
Os gatos dão-se ao luxo de ignorar a indústria do medo, da manipulação. E as negociatas à média luz a partir delas. Afinal, uma briga de gatos jamais será silenciosa. É sempre travada sob gritos, rosnados, quase falas. Até o sexo deles é escandaloso, para não deixar dúvidas do que está havendo. Nada parece à venda com eles.
Na sociedade dos gatos não sobrevivem indivíduos inseguros e nem existe século de almas adoecidas, como já inventaram para explicar a fragilidade humana atual. Não conheço gatos insatisfeitos, deprimidos, superprotetores ou vitimizados.
Os gatinhos têm ao redor de noventa dias depois que nascem para caçar rumo na vida e viver do próprio suor. Espertos, respeitam os ancestrais que desenvolveram a preguiça congênita da espécie. E vivem nela deliciosamente. Nada de grandes esforços, nada de suar o pelo. Não é à toa o ditado “malandro é o gato!”. Talvez, por isso, nenhum idiota resolveu escrever livros de autoajuda para gatos – não existem gatos idiotas. E provavelmente nunca aparecerão coaches para ensinar-lhes o pulo do gato que fingem conhecer.
Ah, os gatos! Não são superficiais, exacerbam na autoestima, desprezam os humanos – apenas usufruem da imaturidade e fragilidade emocional de “papais” e “mamães”, e ainda metem a unha quando cansam de suas frivolidades e vozes infantilizadas.
Gatos não vivem de aparências. Beleza forçada em academias? São os inventores da preguiça. Procedimentos estéticos? Nada como uma boa lambida no pelo e pronto. Consumismo? Não fazem a menor diferença diante de tantas rações cheias de fricotes de araque – comem para sobreviver, inclusive coisas nojentas que não raro substituem aquele “caviar químico” colocado nos pratinhos.
Os tempos andavam esquisitos, mas ainda parecia razoável crer que gatos não sabem o que é ler e escrever, não têm qualquer interesse por frases de efeito em botecos de esquina.
Eu não tinha qualquer dúvida de que ele estava certo e seguro de si mesmo, como é comum aos gatos. É, eles exacerbam na autoestima!
Os dias passaram modorrentos, cercados de medos e falácias. Era tudo que os humanos conseguiam fazer diante daquela falta de chão que havia se instalado sob o modelo de pandemia.
Pensei na gata e no equilíbrio que ela trouxe para a vida do gato. Acho até que ele ria das fragilidades e confusões dos humanos da casa. Tinha teto, comida e água limpa e bastava atravessar a rua para ser feliz. Não havia odisseia, tudo simples. Era o segredo que ele gentilmente dividia comigo, generoso em mostrar sabedoria sem qualquer arrogância e sem cobrar nada.
Na verdade, ele só queria mesmo estar com a namorada. Apenas isso importava.
Na Lua Nova
Irei visitá-la
Nada terei de provar
Irei para vê-la
E cumprir ordem de meu coração
Dê-me vinho
E seus melhores encantos
Mas não esqueça:
Não quero ser imortal
Olhei a felicidade daqueles gatos; senti inveja. E não era inveja branca e nem inveja boa. Senti inveja verdadeira por não poder resolver as coisas com aquela evidente simplicidade que me afrontava diante da minha janela.
Não sabia onde foi parar a minha superioridade humana, que supostamente serviria para menosprezar aqueles bichos metidos a cavalos do cão. Azar o meu, nem pedra aprendi a atirar quando criança e não teria nenhuma à mão naquele ambiente urbano.
Nem quis começar uma reza, não estava com a fé em dia para aqueles dias tão ateus. Não haveria bênção suficiente para um desacerto daquele, que cristão nenhum suporta muito tempo.
Talvez fosse melhor apenas acreditar nos amores, que logo trazem um sopro de renovação, espantam o sopor e a tudo enternecem.
Agora vamos ter os girassóis
Do fim do ano
E o calor vem desumano
Tudo irá se expandir
Crescer com as águas
Quiçá, amores nos corações
E um santeiro
Milagreiro
Prevê a dor
De terceiros
E diz que a vida
É feita de ilusão
Aquela que um dia o fez sonhar
Se foi
Hoje o seu pesar
Cintila nos varais
Usou as sete vidas
E não foi feliz jamais
Toda a imensidão
Passou pela vida
E foi cair na solidão
Mais um santo pra esculpir
É o que lhe vale
Pra evitar que o rancor
Suas ervas espalhe
Acordei com o gato miando baixinho debaixo da janela, como costumava fazer. Ele veio pelas trilhas dos telhados e arvoredo. De mim, queria apenas que eu abrisse as passagens para seus luxos na casa. E logo voltaria para o seu amor renovado. Jamais me convidaria para dividir a ração servida no andar de baixo pelos humanos. Muito menos para usufruir daquele telhado do outro lado da rua. Afinal, eu já tinha mais de noventa dias de vida.

(*) Citação de Caroline Caldwell
Trechos de:
A namorada (Heraldo Palmeira)
Circe (Horácio Paiva)
Milagreiro (Djavan)




8 comentários:

  1. Léa Mello Silva09/08/2020, 06:49

    Heraldo
    voltou trazendo a beleza deste texto sobre os gatos, estes malandros ! nos ensinando a viver na simplicidade
    Espreguiçando e usufruindo a vida
    Tive inveja destes felinos
    Como sempre uma delícia sua crônica !
    Assim como o Mano vc não deve sumir
    Um abraço e obrigada

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    1. Heraldo Palmeira11/08/2020, 15:11

      Léa,
      Na verdade, eu não "fui". Apenas, a necessidade de reorganizar tudo diante deste momento esquisito. Ainda bem que temos os gatos nos ensinando truques.
      Fique certa, estarei sempre por aqui. Obrigado, abraço.

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  2. Flávio José Bortolotto09/08/2020, 11:23

    Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,

    Com grande beleza e graça ao escrever, o Sr. HERALDO PALMEIRA nos conta em bela Crônica a volta da "namorada de pelo branco com manchas pretas", depois de um ano afastada por viagem, do seu gato.

    Devido a pandemia de Covid-19, a Ciência mesmo titubeou entre lockdown ( rigorosa internação do Todos dentro de casa com paralisação de +- 80% da Economia), e o distanciamento social (proteção dos Grupos de Riscos, principalmente Idosos e Doentes), e Todos lavando as mãos constantemente com Álcool gel 70% ou água e sabonete, usando máscaras e distância de 2m de cada Ser Humano, possível fonte de contaminação, com parada de +- 20% da Economia, para conter a contaminação exponencial, até que venha a abençoada Vacina anti-Covid-19, lá pelo fim do ano.

    Os gatos não se preocupam com nada disso. Nós Sim. E eles são boas companhias.

    A ilustre Sra. LÉA MELLO SILVA acima diz bem: Que bom que o Sr. HERALDO PALMEIRA voltou, como sempre escrevendo lindas Crônicas. Eu me associo a ela.

    Parabéns e um Abração.

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    1. Heraldo Palmeira11/08/2020, 19:22

      Flávio,
      Obrigado pela leitura e palavras generosas. E pelo acolhimento. Como expliquei a Léa, apenas estive envolvido com as providências profissionais indispensáveis para atravessar este momento. Espero poder ficar mais presente outra vez. Abração.

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  3. Olá Heraldo,
    "Boemia, aqui me tens de regresso"...
    E que regresso!
    Falando das estripulias de um gato Piá que sai à noite para namorar e fazer gatinhos!
    "Nós gatos já nascemos pobres,
    Porém já nascemos livres.."
    E se tornam nossos donos e donos da nossa casa, tomam conta de certas cadeiras,
    selecionam nossos amigos e se aninham em nós quando querem carinho ou apenas um quentinho. E se formos espertos vão nos ensinar a viver melhor.
    Desenhei, para um sobrinho neto,uma série de gatinhos brincando com flores, caçando borboletas e aranhas, espreitando ratos ou apenas descansando e escrevi no final : O que um gatinho nos ensina?
    Nos ensina a ser feliz!
    Como jå disse o Samuel Rosa do Skank, " como ver um bichano pelo chão e não sorrir"!
    Adoro gatos.
    Por isso e muito mais, gratíssima pelo post, pela sua escrita e pela bela
    "A namorada que está na minha vida"!
    Até breve, espero.

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    1. Heraldo Palmeira12/08/2020, 14:55

      Ana,
      Embora eu não tenha ido, nada como um regresso quando o destino é bom e especial como esta "boemia" do Conversas.

      Você é especialista em gatos e já conhece o Piá de outras letras minhas. Tanto que devo a ele e sua namorada, elegantérrima em preto e branco, esse "A namorada" que escrevi vendo os dois cochilando no telhado da casa da frente. Só me faltava o Samuel danar música e virar Skank!

      Depois do tempo de cuidar dos negócios neste momento esquisito, abri a gaveta e botei papel e tinta sobre a mesa novamente. Hora de rabiscar e rabiscar. Até mais.

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  4. 1) Uma bela crônica, Heraldo escreve bem. Também aprecio muito os gatos.

    2) E como eu sou um místico, lembrei de algumas dicas Rosacruzes que informam, lá no antigo Egito, no tempo de construção das Pirâmides, os sacerdotes Herméticos usavam os gatos para identificar a presença de Espíritos (Energias).

    3) Abraços da Filosofia Hermética !

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    1. Heraldo Palmeira12/08/2020, 14:56

      Antonio,
      Obrigado pela leitura. Es vivas aos gatos!

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