Heraldo
Palmeira
Os tempos ficaram nervosos. Todos deviam ficar recolhidos, era
preciso escapar do invisível que pairava por toda parte. A manhã de início de
outono seguia modorrenta.
O gato estava esparramado no sofá em sua eterna terapia do sono.
De repente, mexeu as orelhas naquele movimento de direcionar a audição a algum
ponto para aumentar a acuidade sensorial. Levantou de um pulo e saiu numa
tremenda correria em busca da janela da rua.
Fez o trajeto que a preguiça sempre obrigava recusar. Partiu do
parapeito da janela do andar do meio, desceu pelos galhos dos arbustos até a
calçada e atravessou a rua. Sem miar, como de costume, para que lhe abrissem o
portão do andar de baixo – era folgado! Estava em festa.
A casa da frente recebia hóspedes. Há cerca de um ano, uma moça
deixara o local para morar em outra cidade. Levara embora a gata de pelo branco
com manchas pretas. E aquele gato ficara triste de um tanto de não disfarçar. Agora
a moça voltara, para morar novamente, e trouxe sua companheira a tiracolo.
O casal fez o ritual de reconhecimento ali mesmo à beira da
calçada, enquanto a moça descarregava o porta-malas do carro. E partiu rápido,
escalando muro e árvore frondosa, para o local do telhado onde costumava passar
boa parte do dia. Fui espectador privilegiado daquela cena lá do outro lado,
sentado diante da minha janela do piso superior.
Fiquei vendo aqueles dois. Tinham sorte, não precisavam de
quarentena, de distanciamento social. Também estavam livres da liturgia de
máscaras, água e sabão, álcool em gel. Podiam ir onde bem entendessem, sem
qualquer restrição. Não havia nenhum novo conjunto de normas e comportamentos estabelecido
para felinos.
Melhor de tudo, não estavam obrigados a tomar partido. E nem
participar de discussões placebas sobre sexo dos anjos e flexibilidade dos
cachimbos de barro, como faziam os humanos sobre todas aquelas drogas
terminadas em “ina”, fechar, flexibilizar, salvar economia... Muito menos,
ouvir a ladainha da politicagem mais rasteira ou preocupar-se com os incompetentes
públicos e as roubalheiras que assaltavam o noticiário cotidiano.
A única preocupação mais evidente continuava sendo os cachorros da
vizinhança, incapazes de alcançá-los nas alturas daqueles telhados fartos em cumeeiras
e duas águas à sombra do arvoredo da rua.
Ele passou a lambê-la inteira, naquele ritual de limpeza dos gatos.
Depois foi a vez dela fazer o mesmo com ele. Era como se estivessem apagando
todas as coisas daquele tempo que passaram separados, as inutilidades que
deveriam ser esquecidas.
Bastou um pouco tempo e já estavam novamente namorados, cochilando
apoiados um no outro, o vento passando suavemente ao longo dos pelos.
A
namorada que está na minha vida
Juíza,
minha brisa, minha ventania
Tormenta
que se recolhe em calmaria
Quando
encontra a costa do meu porto
Quando
encosta no cais do meu corpo
Com
o passo no compasso do meu
Enchendo
de fé o meu coração ateu
Chega
mansa como a preguiça
Que
acorda no último sono
Como
uma saudade sussurrada
Do
que nunca foi embora
A
mágica que enfeitiça
Como
o sal que tempera meu mar
O
tempo que valeu esperar
Pelo
tempo que é meu e seu
Quem
ama e insiste
Sabe
dos riscos de quem desiste
Quem
é chama e resiste
Sente
o calor do fogo que existe
Onde
nada parecia ter
Tudo
que haveria de ser
Talvez ele
já tivesse contado a ela que no tempo da ausência nunca deixou de ir àquele telhado.
Todos os dias. Ritual. Manteve o território marcado de quem não desistiu, a
certeza de que tudo voltaria ao normal.
Não havia
entre eles nenhuma ansiedade por um “novo normal”, isso era coisa de humanos
perdidos diante de uma situação nova. Ah!, os humanos, que dizem ouvir
estrelas, que fantasiaram que bicho tem de ir a psicólogo e inventaram
psicólogo de bicho. Coisa doida de gente maluca!
O gato deu
uma última olhada sobre o telhado até mirar a rua adiante. Correndo os olhos
pelo que enxergava, sequer parou numa placa afixada dentro de um boteco de
esquina que havia na primeira esquina da sua mirada: “Em uma sociedade que
lucra com a sua dúvida, gostar de si mesmo é um ato rebelde”. (*)
Os gatos dão-se
ao luxo de ignorar a indústria do medo, da manipulação. E as negociatas à média
luz a partir delas. Afinal, uma briga de gatos jamais será silenciosa. É sempre
travada sob gritos, rosnados, quase falas. Até o sexo deles é escandaloso, para
não deixar dúvidas do que está havendo. Nada parece à venda com eles.
Na sociedade
dos gatos não sobrevivem indivíduos inseguros e nem existe século de almas
adoecidas, como já inventaram para explicar a fragilidade humana atual. Não
conheço gatos insatisfeitos, deprimidos, superprotetores ou vitimizados.
Os gatinhos
têm ao redor de noventa dias depois que nascem para caçar rumo na vida e viver
do próprio suor. Espertos, respeitam os ancestrais que desenvolveram a preguiça
congênita da espécie. E vivem nela deliciosamente. Nada de grandes esforços,
nada de suar o pelo. Não é à toa o ditado “malandro é o gato!”. Talvez, por
isso, nenhum idiota resolveu escrever livros de autoajuda para gatos – não
existem gatos idiotas. E provavelmente nunca aparecerão coaches para
ensinar-lhes o pulo do gato que fingem conhecer.
Ah, os
gatos! Não são superficiais, exacerbam na autoestima, desprezam os humanos –
apenas usufruem da imaturidade e fragilidade emocional de “papais” e “mamães”,
e ainda metem a unha quando cansam de suas frivolidades e vozes infantilizadas.
Gatos não
vivem de aparências. Beleza forçada em academias? São os inventores da
preguiça. Procedimentos estéticos? Nada como uma boa lambida no pelo e pronto.
Consumismo? Não fazem a menor diferença diante de tantas rações cheias de
fricotes de araque – comem para sobreviver, inclusive coisas nojentas que não
raro substituem aquele “caviar químico” colocado nos pratinhos.
Os tempos
andavam esquisitos, mas ainda parecia razoável crer que gatos não sabem o que é
ler e escrever, não têm qualquer interesse por frases de efeito em botecos de
esquina.
Eu não tinha
qualquer dúvida de que ele estava certo e seguro de si mesmo, como é comum aos
gatos. É, eles exacerbam na autoestima!
Os dias
passaram modorrentos, cercados de medos e falácias. Era tudo que os humanos
conseguiam fazer diante daquela falta de chão que havia se instalado sob o
modelo de pandemia.
Pensei na
gata e no equilíbrio que ela trouxe para a vida do gato. Acho até que ele ria das
fragilidades e confusões dos humanos da casa. Tinha teto, comida e água limpa e
bastava atravessar a rua para ser feliz. Não havia odisseia, tudo simples. Era
o segredo que ele gentilmente dividia comigo, generoso em mostrar sabedoria sem
qualquer arrogância e sem cobrar nada.
Na verdade,
ele só queria mesmo estar com a namorada. Apenas isso importava.
Na
Lua Nova
Irei
visitá-la
Nada
terei de provar
Irei
para vê-la
E
cumprir ordem de meu coração
Dê-me
vinho
E
seus melhores encantos
Mas
não esqueça:
Não
quero ser imortal
Olhei a felicidade daqueles gatos; senti inveja. E não era inveja
branca e nem inveja boa. Senti inveja verdadeira por não poder resolver as
coisas com aquela evidente simplicidade que me afrontava diante da minha
janela.
Não sabia onde foi parar a minha superioridade humana, que supostamente
serviria para menosprezar aqueles bichos metidos a cavalos do cão. Azar o meu,
nem pedra aprendi a atirar quando criança e não teria nenhuma à mão naquele
ambiente urbano.
Nem quis começar uma reza, não estava com a fé em dia para aqueles
dias tão ateus. Não haveria bênção suficiente para um desacerto daquele, que
cristão nenhum suporta muito tempo.
Talvez fosse melhor apenas acreditar nos amores, que logo trazem
um sopro de renovação, espantam o sopor e a tudo enternecem.
Agora
vamos ter os girassóis
Do
fim do ano
E
o calor vem desumano
Tudo
irá se expandir
Crescer
com as águas
Quiçá,
amores nos corações
E
um santeiro
Milagreiro
Prevê
a dor
De
terceiros
E
diz que a vida
É
feita de ilusão
Aquela
que um dia o fez sonhar
Se
foi
Hoje
o seu pesar
Cintila
nos varais
Usou
as sete vidas
E
não foi feliz jamais
Toda
a imensidão
Passou
pela vida
E
foi cair na solidão
Mais
um santo pra esculpir
É
o que lhe vale
Pra
evitar que o rancor
Suas
ervas espalhe
Acordei com
o gato miando baixinho debaixo da janela, como costumava fazer. Ele veio pelas trilhas
dos telhados e arvoredo. De mim, queria apenas que eu abrisse as passagens para
seus luxos na casa. E logo voltaria para o seu amor renovado. Jamais me convidaria
para dividir a ração servida no andar de baixo pelos humanos. Muito menos para
usufruir daquele telhado do outro lado da rua. Afinal, eu já tinha mais de noventa
dias de vida.
(*) Citação de Caroline Caldwell
Trechos de:
A namorada (Heraldo Palmeira)
Circe (Horácio Paiva)
Milagreiro (Djavan)
Heraldo
ResponderExcluirvoltou trazendo a beleza deste texto sobre os gatos, estes malandros ! nos ensinando a viver na simplicidade
Espreguiçando e usufruindo a vida
Tive inveja destes felinos
Como sempre uma delícia sua crônica !
Assim como o Mano vc não deve sumir
Um abraço e obrigada
Léa,
ExcluirNa verdade, eu não "fui". Apenas, a necessidade de reorganizar tudo diante deste momento esquisito. Ainda bem que temos os gatos nos ensinando truques.
Fique certa, estarei sempre por aqui. Obrigado, abraço.
Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,
ResponderExcluirCom grande beleza e graça ao escrever, o Sr. HERALDO PALMEIRA nos conta em bela Crônica a volta da "namorada de pelo branco com manchas pretas", depois de um ano afastada por viagem, do seu gato.
Devido a pandemia de Covid-19, a Ciência mesmo titubeou entre lockdown ( rigorosa internação do Todos dentro de casa com paralisação de +- 80% da Economia), e o distanciamento social (proteção dos Grupos de Riscos, principalmente Idosos e Doentes), e Todos lavando as mãos constantemente com Álcool gel 70% ou água e sabonete, usando máscaras e distância de 2m de cada Ser Humano, possível fonte de contaminação, com parada de +- 20% da Economia, para conter a contaminação exponencial, até que venha a abençoada Vacina anti-Covid-19, lá pelo fim do ano.
Os gatos não se preocupam com nada disso. Nós Sim. E eles são boas companhias.
A ilustre Sra. LÉA MELLO SILVA acima diz bem: Que bom que o Sr. HERALDO PALMEIRA voltou, como sempre escrevendo lindas Crônicas. Eu me associo a ela.
Parabéns e um Abração.
Flávio,
ExcluirObrigado pela leitura e palavras generosas. E pelo acolhimento. Como expliquei a Léa, apenas estive envolvido com as providências profissionais indispensáveis para atravessar este momento. Espero poder ficar mais presente outra vez. Abração.
Olá Heraldo,
ResponderExcluir"Boemia, aqui me tens de regresso"...
E que regresso!
Falando das estripulias de um gato Piá que sai à noite para namorar e fazer gatinhos!
"Nós gatos já nascemos pobres,
Porém já nascemos livres.."
E se tornam nossos donos e donos da nossa casa, tomam conta de certas cadeiras,
selecionam nossos amigos e se aninham em nós quando querem carinho ou apenas um quentinho. E se formos espertos vão nos ensinar a viver melhor.
Desenhei, para um sobrinho neto,uma série de gatinhos brincando com flores, caçando borboletas e aranhas, espreitando ratos ou apenas descansando e escrevi no final : O que um gatinho nos ensina?
Nos ensina a ser feliz!
Como jå disse o Samuel Rosa do Skank, " como ver um bichano pelo chão e não sorrir"!
Adoro gatos.
Por isso e muito mais, gratíssima pelo post, pela sua escrita e pela bela
"A namorada que está na minha vida"!
Até breve, espero.
Ana,
ExcluirEmbora eu não tenha ido, nada como um regresso quando o destino é bom e especial como esta "boemia" do Conversas.
Você é especialista em gatos e já conhece o Piá de outras letras minhas. Tanto que devo a ele e sua namorada, elegantérrima em preto e branco, esse "A namorada" que escrevi vendo os dois cochilando no telhado da casa da frente. Só me faltava o Samuel danar música e virar Skank!
Depois do tempo de cuidar dos negócios neste momento esquisito, abri a gaveta e botei papel e tinta sobre a mesa novamente. Hora de rabiscar e rabiscar. Até mais.
1) Uma bela crônica, Heraldo escreve bem. Também aprecio muito os gatos.
ResponderExcluir2) E como eu sou um místico, lembrei de algumas dicas Rosacruzes que informam, lá no antigo Egito, no tempo de construção das Pirâmides, os sacerdotes Herméticos usavam os gatos para identificar a presença de Espíritos (Energias).
3) Abraços da Filosofia Hermética !
Antonio,
ExcluirObrigado pela leitura. Es vivas aos gatos!