O autor e seu criado Joanetti - ilustração de Tony Johannot |
Wilson Baptista Junior
Faz dias que
estava pensando em escrever este post sobre um livro que nas minhas lembranças tem
algo a ver com a reclusão em que tantos de nós têm vivido nos últimos meses, e
hoje, quando me sentei ao computador, antes de começar a escrever corri a vista,
como de hábito, pelos jornais do dia e – Plim!
Saltou-me aos olhos a chamada de uma bela resenha da Tati Bernardi, na Folha,
sobre uma nova tradução brasileira do mesmo livro...
Pensei: “Lá
se vai o post...”. Mas depois, confesso que ajudado por um empurrãozinho da
Ana, resolvi não me preocupar com a coincidência e contar assim mesmo o que ele
me trouxe à mente.
Não conheço nem
essa nova nem a antiga tradução brasileira do livro; algum leitor que as tenha
lido perdoe-me por favor as diferenças entre aquilo de que se lembra do que
transcrevo aqui. Traduttore, traditore...
Primeiro,
alguma coisa sobre o autor, para que possamos entender o seu livro:
Xavier de
Maistre era um cavalheiro e militar sardo, nascido em Chambéry, na Savóia. Em
1792 a França, já transformada em república pela revolução, tomou a Savóia do
reino da Sardenha, e a região se tornou muito pouco hospitaleira para qualquer
das antigas famílias da nobreza. Xavier viajou para a Rússia, onde continuou na
carreira das armas, tomou parte na guerra que aliou quase todos os reinos europeus
contra a França e subiu até a patente de general. Amante das artes, e além de
escritor amante da pintura, chegou a ser nomeado diretor da biblioteca do Museu
Real de São Petersburgo. Mas sua carreira militar teve também seus percalços – um
deles relativamente comum para um cavalheiro da época: em 1790, quando ainda
servia no exército do Piemonte, foi condenado por ter participado de um duelo,
considerado ilegal, e sentenciado a ficar em prisão domiciliar na fortaleza de
Turim, onde estava aquartelado, sem poder sair do seu quarto. A história não
registrou o que aconteceu com o outro duelista, pode-se supor que tenha
sobrevivido porque a pena não foi tão longa.
Nos quarenta
e dois dias em que ficou confinado, escreveu um livro que chamou de “Voyage
autor de ma chambre” - Viagem ao redor de meu quarto - e que foi publicado em
1794, quando já vivia na Rússia, financiado por seu irmão Joseph de Maistre (na
época Xavier passava por grandes dificuldades financeiras).
Como era
costume entre oficiais, o cumprimento da pena baseava-se na palavra de honra do
condenado de que não sairia do seu quarto, e ele honradamente a manteve. Nenhum
costume impedia, entretanto, que pudesse receber visitas, e que, como convinha
a um cavalheiro, continuasse sendo servido por seu fiel “valet de chambre” Joannetti, nas suas palavras “un parfait honnête homme” e cuja
dedicação transparece em algumas das páginas Também sua cadela, Rosine, que
vivia no quartel, podia entrar e sair livremente do seu quarto.
Nosso
soldado escreveu (surpresa!) quarenta e dois capítulos, onde mistura
descrições, lembranças, realidade e ficção com algumas introspecções muito mais
profundas do que a mera aparência do assunto poderia sugerir. Só uma vez,
durante essa viagem, a sombra de uma queixa sobre o motivo do seu confinamento
aparece quando ele fala do duelo que o causou e da situação difícil em que fica
um cavalheiro vítima de uma ofensa real ou imaginária:
“Existe
alguma coisa mais natural do que se arriscar a cortar a garganta com qualquer
um que vos pise inadvertidamente o pé, ou que deixa escapar qualquer palavra
ferina num momento de irritação do qual vossa imprudência tenha sido o motivo,
ou então que tenha a infelicidade de agradar a vossa amante? Vai-se a um prado,
e lá, como Nicole fazia com o Burguês Fidalgo, tenta-se atacar em quarta
enquanto ele faz a parada em terça: e, para que a vingança seja certa e
completa, lhe apresentamos o peito descoberto, e corre-se o risco de se fazer
matar por seu inimigo para vingar-se dele.”
(Aqui, um parágrafo meu, “atacar em quarta enquanto ele faz a
parada em terça” é jargão de esgrimista para dizer resumidamente que se atira a
lâmina na direção do lado esquerdo do peito do oponente enquanto ele tenta
aparar o golpe do lado direito, e não o conseguindo é ferido. Nicole é
personagem do “Burguês Fidalgo”, de Molière)
“Vê-se que
nada é mais consequente, e no entanto encontramos pessoas que desaprovam esse
louvável costume! Mas o que é tão consequente quanto o resto é que as mesmas
pessoas que o desaprovam e que querem que o consideremos uma falta grave
tratarão ainda pior qualquer um que recuse cometê-la”.
De fato,
pelos costumes da época, um ofendido que se recusasse a combater no campo de
honra, por mais superficial que fosse a ofensa, seria considerado por seus
pares covarde e indigno do nome de cavalheiro, mas se combatesse nem por isso
deixaria de ser condenado por esses mesmos pares nos tribunais...
Xavier
começa o seu livro no estilo dos relatos dos viajantes da época: “As
observações interessantes que fiz, e o contínuo prazer que experimentei ao
longo do caminho, me fazem desejar torná-lo público; a certeza de ser útil me
decidiu a isto.” E nos diz que qualquer um de nós pode fazer viagem igual: “Na
imensa família dos homens que cobrem como formigas a superfície da terra, não
há um só – não, nem um só (entende-se, dos que moram em quartos) – que possa,
depois de ter lido este livro, recusar sua aprovação à nova maneira de viajar
que introduzo no mundo”.
Limitado
aqui a um mundo, como nos conta, “de trinta e seis passos de perímetro, voltado
do nascente ao poente, bem perto do muro da fortaleza”, e aos objetos nele
contidos (alguns verdadeiros e outros imaginários), o autor nos leva a uma
viagem por dentro de sua mente, atingindo às vezes profundezas insuspeitadas. Para
começar, divide o viajante (ele próprio) em duas naturezas distintas, a alma,
morada da inteligência e da memória, e “o outro”, ou “o animal”, que é o seu
corpo, mas seu corpo infundido de uma vida própria, que perambula pelo mundo e
toca nos seus objetos, às vezes junto da alma e às vezes livre do seu comando.
E pela interação dessas duas naturezas vamos percebendo a sua pessoa.
Sua viagem
não tem regra, nem método, nem caminhos determinados; como ele diz, “nada me
atrai mais do que seguir as ideias pelos seus rastros, como o caçador persegue
a caça, sem fingir que tem algum caminho. Assim, enquanto viajo por meu quarto,
raramente percorro uma linha reta: vou de minha mesa para um quadro pendurado
em um canto; daí parto obliquamente para ir à porta; mas conquanto ao partir
minha intenção seja de chegar lá, se encontro no caminho minha poltrona, não me
importo, nele me acomodo na mesma hora”.
E é pela
alternância entre os lugares onde vai parar, seja levado pela alma, seja pelo
animal, e pelas sensações que cada lugar ou objeto lhe traz que ele vai falando
com o leitor.
Da poltrona:
“Um bom fogo, livros, penas, quantos recursos contra o tédio! E ainda que prazer
em esquecer seus livros e suas penas para atiçar o fogo, se entregando a alguma
doce meditação, ou construindo algumas rimas para alegrar os amigos!”.
Mas,
seguindo da poltrona, encontra o leito, e fala do prazer de ver os raios do sol
avançando pelas paredes, do ouvir as vozes das andorinhas que moram no telhado,
do quanto lhe apraz prolongar ao máximo estes momentos neste “móvel delicioso
em que esquecemos, durante metade da vida, as tristezas da outra metade”...
No capítulo
seguinte (dedicado, segundo ele, aos metafísicos) ele nos explica sua concepção
da pessoa humana, “separando a potência animal dos raios puros da inteligência”.
Xavier não
considera o homem como composto de alma e corpo; para ele o nosso “animal” é “um
ser sensível, perfeitamente distinto da alma, indivíduo verdadeiro que tem sua
existência separada, seus gostos, suas inclinações, sua vontade e que só está
acima dos outros animais porque é melhor criado e provido de órgãos mais
perfeitos (...) A grande arte de um homem de gênio é saber criar bem seu animal,
de modo que este possa andar por si só, enquanto a alma, livre deste seu doloroso
acompanhante possa se elevar até o céu”.
O autor gostava
de pintar, e pelo exemplo abaixo, da coleção de uma sua contemporânea russa, era
mais do que um mero principiante:
Paisagem por Xavier, Conde de Maistre (coleção de Elizabeth Tschitschagow)
É ele quem
nos diz: “Feliz ainda o pintor que o amor da paisagem arrasta em passeios
solitários, que sabe exprimir sobre a tela o sentimento de tristeza que lhe
inspira um bosque sombrio ou um campo deserto!”.
Não é de
surpreender, então, que algumas das reflexões mais interessantes de sua viagem
sejam provocadas pelo exame dos quadros pendurados (verdadeira ou imaginariamente)
nas paredes do seu quarto. Mas nos alerta: “É tão impossível descrever
claramente um quadro quanto pintar um retrato que se pareça com o modelo tendo
apenas uma descrição”.
O primeiro
com que se defronta, inspirado na obra de Goethe, mostra Charlotte, o amor
impossível do jovem Werther, desempoeirando com a alma cheia de maus
pressentimentos as pistolas que ele tinha pedido emprestadas ao seu marido
Albert sob o pretexto de fazer uma viagem, e que ele usaria depois para tirar a
própria vida. E pensa: “Quantas vezes não fiquei tentado a quebrar o vidro que
cobre essa estampa, para arrancar este Albert de sua mesa, de o despedaçar, o
desmanchar sob os pés? Mas sobrarão sempre demasiados Alberts neste mundo. Qual
homem sensível não tem o seu, com o qual é obrigado a viver e contra o qual as
efusões da alma, as doces emoções do coração ou os arroubos da imaginação vão
se quebrar como as ondas sobre os rochedos?” – e aí, contrapondo a isso o bem
que faz ter um amigo, faz uma belíssima elegia a um seu companheiro das
fileiras que morrera em combate, e termina dizendo “a morte de um homem
sensível que expira em meio a seus amigos desolados, e a de uma borboleta que o
ar frio da manhã faz perecer no cálice de uma flor, são duas épocas parecidas
no curso da natureza. O homem não é mais do que um fantasma, uma sombra, um
vapor que se dissipa no ar... (...) Não, meu amigo não entrou no nada; qualquer
que seja a barreira que nos separa, eu o verei de novo”.
Usa o ver
outro, retrato de uma sua amiga, para nos mostrar a dicotomia da alma e do
animal; quando chega à sua frente e vê que o quadro está empoeirado sua mão
começa maquinalmente a remover a poeira que o cobria, enquanto a alma vagueia
por outros lugares, mas à medida em que a figura da dama vai sendo revelada a
alma se encanta novamente pela beleza da retratada e se envolve com o coração
para dividirem a alegria das lembranças que os assaltam. Por um momento o amor
antigo domina nosso viajante, mas num piscar de olhos a razão o retoma e, nas
suas palavras, ele “envelhece um ano inteiro” e volta à realidade.
Mais adiante
ele disserta sobre a arte da pintura, comparando-a à da música e estabelecendo
a superioridade da primeira. A dissertação é muito longa para ser resumida
aqui, mas em essência (e ressalvando ele honestamente que não é músico, “como atesta
o céu e todos os que já me ouviram tocar o violino”, termina por dizer que “vê
se frequentemente crianças tocarem o cravo como grandes mestres, mas nunca vi
eu um bom pintor com doze anos. A pintura, além do gosto e do sentimento, exige
uma cabeça pensante, da qual os músicos podem prescindir. Vemos todos os dias
homens sem cabeça nem coração tirar de um violino, ou de uma harpa, sons
encantadores. Podemos criar o animal humano para tocar o cravo, e, quando isso
é feito por um bom professor, a alma pode viajar à vontade enquanto os dedos
vão maquinalmente tirar sons com os quais ela não interfere. Não se saberia, ao
contrário, pintar a coisa mais simples do mundo sem que alma deva empregar
nisso todas as suas faculdades”.
(Aqui eu,
que não sou músico nem pintor mas sempre apreciei as duas artes, prefiro ficar
calado para não contradizer o nosso viajante).
Depois de
falar, com igual emoção, de outros quadros, inclusive de dois que ele coloca
acima de todos – um auto retrato do grande Rafael Sanzio e outro que ele pintou
de sua última amante, La Fornarina – e desse último ele conta: “Minha alma,
enquanto a admira, sente um movimento de indignação contra essa italiana que
preferiu seu amor ao seu amante, e que extinguiu no seu seio esta chama celeste,
este gênio divino” – ele termina a visão das pinturas assim:
“As estampas
e os quadros de que acabo de falar empalidecem e desaparecem logo ao primeiro
olhar que se lança sobre o quadro seguinte: as obras imortais de Rafael, de
Corregio de de toda a escola da Itália não suportariam o paralelo. Assim o
guardo sempre para o último pedaço, para o bocado reservado, quando dou a
alguns curiosos o prazer de viajar comigo; e posso assegurar que, depois que
faço ver este quadro sublime aos conhecedores e aos ignorantes, aus homens do
mundo, aos artesãos, às mulheres e às crianças, até mesmo aos animais, sempre
vi qualquer dos espectadores mostrar, cada um à sua maneira, mostras de prazer
e de espanto: tanto está a natureza tão admiravelmente reproduzida! (...) O quadro de que falo é um espelho, e
ninguém até hoje o criticou; é, para todos os que o veem, um quadro perfeito ao
qual nada se pode corrigir. (...) Único
entre os conselheiros dos grandes, ele lhes diz constantemente a verdade”.
Já vai muito
longe nossa conversa, e muito haveria ainda para dizer. Muitas vezes mais, por
diferentes caminhos, o viajante mergulha dentro de si próprio. Até o dia em que
é libertado, e ao sair de novo debaixo do céu, termina dizendo, mais do que nunca
cônscio de sua dualidade: “Oh meu animal, meu pobre animal, entra em guarda!”
Mas o meu
conselho é que, se gostaram dessas amostras, leiam o livro. Tem muito, muito
mais do que gostar.
Este foi o
primeiro romance (se assim o podemos chamar) publicado de Xavier de Maistre. O
último, publicado quase trinta anos depois, retoma a ideia e se chama “Expedição
noturna ao redor do meu quarto”. Quem sabe um dia ainda conversaremos sobre ele?