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26/09/2020

Viagem ao redor do meu quarto

 

O autor e seu criado Joanetti - ilustração de Tony Johannot

Wilson Baptista Junior

Faz dias que estava pensando em escrever este post sobre um livro que nas minhas lembranças tem algo a ver com a reclusão em que tantos de nós têm vivido nos últimos meses, e hoje, quando me sentei ao computador, antes de começar a escrever corri a vista, como de hábito, pelos jornais do dia e – Plim! Saltou-me aos olhos a chamada de uma bela resenha da Tati Bernardi, na Folha, sobre uma nova tradução brasileira do mesmo livro...

Pensei: “Lá se vai o post...”. Mas depois, confesso que ajudado por um empurrãozinho da Ana, resolvi não me preocupar com a coincidência e contar assim mesmo o que ele me trouxe à mente.

Não conheço nem essa nova nem a antiga tradução brasileira do livro; algum leitor que as tenha lido perdoe-me por favor as diferenças entre aquilo de que se lembra do que transcrevo aqui. Traduttore, traditore...

Primeiro, alguma coisa sobre o autor, para que possamos entender o seu livro:

Xavier de Maistre era um cavalheiro e militar sardo, nascido em Chambéry, na Savóia. Em 1792 a França, já transformada em república pela revolução, tomou a Savóia do reino da Sardenha, e a região se tornou muito pouco hospitaleira para qualquer das antigas famílias da nobreza. Xavier viajou para a Rússia, onde continuou na carreira das armas, tomou parte na guerra que aliou quase todos os reinos europeus contra a França e subiu até a patente de general. Amante das artes, e além de escritor amante da pintura, chegou a ser nomeado diretor da biblioteca do Museu Real de São Petersburgo. Mas sua carreira militar teve também seus percalços – um deles relativamente comum para um cavalheiro da época: em 1790, quando ainda servia no exército do Piemonte, foi condenado por ter participado de um duelo, considerado ilegal, e sentenciado a ficar em prisão domiciliar na fortaleza de Turim, onde estava aquartelado, sem poder sair do seu quarto. A história não registrou o que aconteceu com o outro duelista, pode-se supor que tenha sobrevivido porque a pena não foi tão longa.

Nos quarenta e dois dias em que ficou confinado, escreveu um livro que chamou de “Voyage autor de ma chambre” - Viagem ao redor de meu quarto - e que foi publicado em 1794, quando já vivia na Rússia, financiado por seu irmão Joseph de Maistre (na época Xavier passava por grandes dificuldades financeiras).

Como era costume entre oficiais, o cumprimento da pena baseava-se na palavra de honra do condenado de que não sairia do seu quarto, e ele honradamente a manteve. Nenhum costume impedia, entretanto, que pudesse receber visitas, e que, como convinha a um cavalheiro, continuasse sendo servido por seu fiel “valet de chambre” Joannetti, nas suas palavras “un parfait honnête homme” e cuja dedicação transparece em algumas das páginas Também sua cadela, Rosine, que vivia no quartel, podia entrar e sair livremente do seu quarto.

Nosso soldado escreveu (surpresa!) quarenta e dois capítulos, onde mistura descrições, lembranças, realidade e ficção com algumas introspecções muito mais profundas do que a mera aparência do assunto poderia sugerir. Só uma vez, durante essa viagem, a sombra de uma queixa sobre o motivo do seu confinamento aparece quando ele fala do duelo que o causou e da situação difícil em que fica um cavalheiro vítima de uma ofensa real ou imaginária:

“Existe alguma coisa mais natural do que se arriscar a cortar a garganta com qualquer um que vos pise inadvertidamente o pé, ou que deixa escapar qualquer palavra ferina num momento de irritação do qual vossa imprudência tenha sido o motivo, ou então que tenha a infelicidade de agradar a vossa amante? Vai-se a um prado, e lá, como Nicole fazia com o Burguês Fidalgo, tenta-se atacar em quarta enquanto ele faz a parada em terça: e, para que a vingança seja certa e completa, lhe apresentamos o peito descoberto, e corre-se o risco de se fazer matar por seu inimigo para vingar-se dele.”

(Aqui, um parágrafo meu, “atacar em quarta enquanto ele faz a parada em terça” é jargão de esgrimista para dizer resumidamente que se atira a lâmina na direção do lado esquerdo do peito do oponente enquanto ele tenta aparar o golpe do lado direito, e não o conseguindo é ferido. Nicole é personagem do “Burguês Fidalgo”, de Molière)

“Vê-se que nada é mais consequente, e no entanto encontramos pessoas que desaprovam esse louvável costume! Mas o que é tão consequente quanto o resto é que as mesmas pessoas que o desaprovam e que querem que o consideremos uma falta grave tratarão ainda pior qualquer um que recuse cometê-la”.

De fato, pelos costumes da época, um ofendido que se recusasse a combater no campo de honra, por mais superficial que fosse a ofensa, seria considerado por seus pares covarde e indigno do nome de cavalheiro, mas se combatesse nem por isso deixaria de ser condenado por esses mesmos pares nos tribunais...

Xavier começa o seu livro no estilo dos relatos dos viajantes da época: “As observações interessantes que fiz, e o contínuo prazer que experimentei ao longo do caminho, me fazem desejar torná-lo público; a certeza de ser útil me decidiu a isto.” E nos diz que qualquer um de nós pode fazer viagem igual: “Na imensa família dos homens que cobrem como formigas a superfície da terra, não há um só – não, nem um só (entende-se, dos que moram em quartos) – que possa, depois de ter lido este livro, recusar sua aprovação à nova maneira de viajar que introduzo no mundo”.

Limitado aqui a um mundo, como nos conta, “de trinta e seis passos de perímetro, voltado do nascente ao poente, bem perto do muro da fortaleza”, e aos objetos nele contidos (alguns verdadeiros e outros imaginários), o autor nos leva a uma viagem por dentro de sua mente, atingindo às vezes profundezas insuspeitadas. Para começar, divide o viajante (ele próprio) em duas naturezas distintas, a alma, morada da inteligência e da memória, e “o outro”, ou “o animal”, que é o seu corpo, mas seu corpo infundido de uma vida própria, que perambula pelo mundo e toca nos seus objetos, às vezes junto da alma e às vezes livre do seu comando. E pela interação dessas duas naturezas vamos percebendo a sua pessoa.

Sua viagem não tem regra, nem método, nem caminhos determinados; como ele diz, “nada me atrai mais do que seguir as ideias pelos seus rastros, como o caçador persegue a caça, sem fingir que tem algum caminho. Assim, enquanto viajo por meu quarto, raramente percorro uma linha reta: vou de minha mesa para um quadro pendurado em um canto; daí parto obliquamente para ir à porta; mas conquanto ao partir minha intenção seja de chegar lá, se encontro no caminho minha poltrona, não me importo, nele me acomodo na mesma hora”.

E é pela alternância entre os lugares onde vai parar, seja levado pela alma, seja pelo animal, e pelas sensações que cada lugar ou objeto lhe traz que ele vai falando com o leitor.

Da poltrona: “Um bom fogo, livros, penas, quantos recursos contra o tédio! E ainda que prazer em esquecer seus livros e suas penas para atiçar o fogo, se entregando a alguma doce meditação, ou construindo algumas rimas para alegrar os amigos!”.

Mas, seguindo da poltrona, encontra o leito, e fala do prazer de ver os raios do sol avançando pelas paredes, do ouvir as vozes das andorinhas que moram no telhado, do quanto lhe apraz prolongar ao máximo estes momentos neste “móvel delicioso em que esquecemos, durante metade da vida, as tristezas da outra metade”...

No capítulo seguinte (dedicado, segundo ele, aos metafísicos) ele nos explica sua concepção da pessoa humana, “separando a potência animal dos raios puros da inteligência”.

Xavier não considera o homem como composto de alma e corpo; para ele o nosso “animal” é “um ser sensível, perfeitamente distinto da alma, indivíduo verdadeiro que tem sua existência separada, seus gostos, suas inclinações, sua vontade e que só está acima dos outros animais porque é melhor criado e provido de órgãos mais perfeitos (...) A grande arte de um homem de gênio é saber criar bem seu animal, de modo que este possa andar por si só, enquanto a alma, livre deste seu doloroso acompanhante possa se elevar até o céu”.

O autor gostava de pintar, e pelo exemplo abaixo, da coleção de uma sua contemporânea russa, era mais do que um mero principiante:

Paisagem por Xavier, Conde de Maistre (coleção de Elizabeth Tschitschagow)

É ele quem nos diz: “Feliz ainda o pintor que o amor da paisagem arrasta em passeios solitários, que sabe exprimir sobre a tela o sentimento de tristeza que lhe inspira um bosque sombrio ou um campo deserto!”.

Não é de surpreender, então, que algumas das reflexões mais interessantes de sua viagem sejam provocadas pelo exame dos quadros pendurados (verdadeira ou imaginariamente) nas paredes do seu quarto. Mas nos alerta: “É tão impossível descrever claramente um quadro quanto pintar um retrato que se pareça com o modelo tendo apenas uma descrição”.

O primeiro com que se defronta, inspirado na obra de Goethe, mostra Charlotte, o amor impossível do jovem Werther, desempoeirando com a alma cheia de maus pressentimentos as pistolas que ele tinha pedido emprestadas ao seu marido Albert sob o pretexto de fazer uma viagem, e que ele usaria depois para tirar a própria vida. E pensa: “Quantas vezes não fiquei tentado a quebrar o vidro que cobre essa estampa, para arrancar este Albert de sua mesa, de o despedaçar, o desmanchar sob os pés? Mas sobrarão sempre demasiados Alberts neste mundo. Qual homem sensível não tem o seu, com o qual é obrigado a viver e contra o qual as efusões da alma, as doces emoções do coração ou os arroubos da imaginação vão se quebrar como as ondas sobre os rochedos?” – e aí, contrapondo a isso o bem que faz ter um amigo, faz uma belíssima elegia a um seu companheiro das fileiras que morrera em combate, e termina dizendo “a morte de um homem sensível que expira em meio a seus amigos desolados, e a de uma borboleta que o ar frio da manhã faz perecer no cálice de uma flor, são duas épocas parecidas no curso da natureza. O homem não é mais do que um fantasma, uma sombra, um vapor que se dissipa no ar... (...) Não, meu amigo não entrou no nada; qualquer que seja a barreira que nos separa, eu o verei de novo”.

Usa o ver outro, retrato de uma sua amiga, para nos mostrar a dicotomia da alma e do animal; quando chega à sua frente e vê que o quadro está empoeirado sua mão começa maquinalmente a remover a poeira que o cobria, enquanto a alma vagueia por outros lugares, mas à medida em que a figura da dama vai sendo revelada a alma se encanta novamente pela beleza da retratada e se envolve com o coração para dividirem a alegria das lembranças que os assaltam. Por um momento o amor antigo domina nosso viajante, mas num piscar de olhos a razão o retoma e, nas suas palavras, ele “envelhece um ano inteiro” e volta à realidade.

Mais adiante ele disserta sobre a arte da pintura, comparando-a à da música e estabelecendo a superioridade da primeira. A dissertação é muito longa para ser resumida aqui, mas em essência (e ressalvando ele honestamente que não é músico, “como atesta o céu e todos os que já me ouviram tocar o violino”, termina por dizer que “vê se frequentemente crianças tocarem o cravo como grandes mestres, mas nunca vi eu um bom pintor com doze anos. A pintura, além do gosto e do sentimento, exige uma cabeça pensante, da qual os músicos podem prescindir. Vemos todos os dias homens sem cabeça nem coração tirar de um violino, ou de uma harpa, sons encantadores. Podemos criar o animal humano para tocar o cravo, e, quando isso é feito por um bom professor, a alma pode viajar à vontade enquanto os dedos vão maquinalmente tirar sons com os quais ela não interfere. Não se saberia, ao contrário, pintar a coisa mais simples do mundo sem que alma deva empregar nisso todas as suas faculdades”.

(Aqui eu, que não sou músico nem pintor mas sempre apreciei as duas artes, prefiro ficar calado para não contradizer o nosso viajante).

Depois de falar, com igual emoção, de outros quadros, inclusive de dois que ele coloca acima de todos – um auto retrato do grande Rafael Sanzio e outro que ele pintou de sua última amante, La Fornarina – e desse último ele conta: “Minha alma, enquanto a admira, sente um movimento de indignação contra essa italiana que preferiu seu amor ao seu amante, e que extinguiu no seu seio esta chama celeste, este gênio divino” – ele termina a visão das pinturas assim:

“As estampas e os quadros de que acabo de falar empalidecem e desaparecem logo ao primeiro olhar que se lança sobre o quadro seguinte: as obras imortais de Rafael, de Corregio de de toda a escola da Itália não suportariam o paralelo. Assim o guardo sempre para o último pedaço, para o bocado reservado, quando dou a alguns curiosos o prazer de viajar comigo; e posso assegurar que, depois que faço ver este quadro sublime aos conhecedores e aos ignorantes, aus homens do mundo, aos artesãos, às mulheres e às crianças, até mesmo aos animais, sempre vi qualquer dos espectadores mostrar, cada um à sua maneira, mostras de prazer e de espanto: tanto está a natureza tão admiravelmente reproduzida!  (...) O quadro de que falo é um espelho, e ninguém até hoje o criticou; é, para todos os que o veem, um quadro perfeito ao qual nada se pode corrigir.  (...) Único entre os conselheiros dos grandes, ele lhes diz constantemente a verdade”.

Já vai muito longe nossa conversa, e muito haveria ainda para dizer. Muitas vezes mais, por diferentes caminhos, o viajante mergulha dentro de si próprio. Até o dia em que é libertado, e ao sair de novo debaixo do céu, termina dizendo, mais do que nunca cônscio de sua dualidade: “Oh meu animal, meu pobre animal, entra em guarda!”

Mas o meu conselho é que, se gostaram dessas amostras, leiam o livro. Tem muito, muito mais do que gostar.

Este foi o primeiro romance (se assim o podemos chamar) publicado de Xavier de Maistre. O último, publicado quase trinta anos depois, retoma a ideia e se chama “Expedição noturna ao redor do meu quarto”. Quem sabe um dia ainda conversaremos sobre ele?

 

17/09/2020

Estranhezas de flores e de falas

 

Fotografia WBJ

Ana Nunes

De cara o senhor Editor censurou o título. Tinha alguma coisa a ver com mofo. Será ele alérgico?
Não entendo bem.
Aliás, sábio quem disse “Só sei que nada sei”. Mas fico curiosa.

Apesar de estar trabalhando muito nos meus afazeres, pintei três quadros 0,80 x 1,00 mais um pequeno, aquarelas muitas, um grande caderno de folhas pretas quase todo desenhado em pastel e lápis de cor, duas meninas primaveras para minha Helena, e outras aquarelas que já nem me lembro, estou sentindo um cheiro de mofo.
Parece que tudo está ficando velho, afoitamente, silenciosamente, sem dar tempo de perceber.
Os lençóis estão perdendo o elástico que vai ficando frouxo, preguiçoso.
O calendário quase ultrapassado, de repente em Setembro. Nem me dei conta. Rasguei e joguei no lixo. Já estou errando os dias mesmo!

Os cabelos brancos crescem como mato em época de chuva. Eu mesma estou cortando, cada pedaço de um tamanho, em mechas surpreendentes! Na parte de trás da cabeça não sei bem como vai o procedimento. Talvez mais tamanhos que  pedaços. Ah! Se minha cabeleireira me visse... Rogava praga! Lourdinha querida, eu volto um dia.

Até minha Flor de Maio depois de uma bela florada de mais de vinte botões deu a louca. Despertou mais quatro flores! Em Setembro! Tudo bem, vai que chega a Primavera. Penso que enlouqueceram, esses novos botões,  no frio intenso e repentino de umas semanas atrás. Acharam que era o inverno chegando de novo.
Pobres meninas! Ganhei eu que espero por um ano inteiro aguando, fofando a terra e conversando. Ainda bem, ninguém vai, tipo “falar com flores, certo perdeste o senso”. Tudo muito estranho.
Ainda bem que não sou só eu que estou perdendo o tempo, as plantas também.

Eu, sem dúvida, sem a Água rejuvenescedora da piscina fria, cloro à parte, e o sol para me dar cor, me dei a cor do de estar virando fantasma. Branquinha, branquinha!
Preciso comprar umas camisetas roxo batata doce, verde floresta sem fogo, abóbora sem sementes. Preciso de cor. Whisky , vinho, cerveja e outros que bom não dão cores. Nem Netflix. Sem dúvida que dão alegria, mas não cores.  E a pele sem cor também fica preguiçosa, como o elástico dos lençóis. Tenho medo de quando sair de novo não vão me dar nem setenta e um, nem sessenta e oito, vão direto para os oitenta. Bem, troco a máscara por uma burca. Juro!

Envelheceram também as palavras vencidas do novo novo, do velho novo, do neo moderno que seja. Isso é coisa de artista. Não de gente enlutada e lúcida nas dores esquecidas em flores murchas nos cemitérios, nas covas rasas, no indigente do nosso povo morrido.

Ainda encontramos na mídia as falas animadas das receitas (nem temos arroz direito, vale macarrão a carreteiro?), as lives de música ou de falas, cansei de todas.
Cansei de tudo.
Respiro.
Ainda estou viva!

 

09/09/2020

Música de rua

Street Horn Player on Washington Square (fotografia David Shankbone - Wikimedia Commons)


Heraldo Palmeira
Escrevo no inverno. Como um memorial recente. Correm dias muito frios. Açoitam nosso calor com um isolamento que começou no fim do verão e já atravessou o outono até aqui, sem data para nos trazer uma primavera com flores em cores plenas.
Os dias no bairro nobre estavam correndo diferentes. Reinava um silêncio que parecia novo, como se houvesse um desânimo nos sons invisíveis de sempre. Sem origem clara, sem formas, sem tempo certo. Apenas o sotaque da cidade.
Faltava aquela algazarra cotidiana dos empregados do comércio. O palestrado dos motoristas no ponto de táxi. O vozerio ao redor do balcão da lanchonete da esquina. O tilintar de vidros e alumínios de copos e panelas no boteco preparando o almoço de comida caseira. As buzinas, freadas e arrancadas nos desencontros amarelos entre os verdes e vermelhos dos faróis das esquinas. Tudo o que chamamos de sons urbanos parecia agora matriculado numa escola de etiqueta, estava recolhido em sussurros.
Podia ser o medo, tão humano, do desconhecido espalhado pelos recantos mais escondidos. A saudade dos colegas que perderam empregos e o temor de também engrossar a fila. Ou a falta de assunto imposta pela hegemonia do tema e das vozes dominantes na mídia.
Carros de menos, poucas pessoas pelas calçadas demonstrando pressa alguma. Mascaradas. Quase um clima de filme de ficção científica, embora o cenário fosse o de sempre, as ruas que faziam parte da vida dos moradores e transeuntes costumeiros. As nossas ruas e becos. Becos que, naquela região, eram redutos ainda mais refinados, pela exclusividade.
O quarto era amplo, de fundos. Pela janela, eu via os fundos do casario de uma rua com portão, espécie de vila – outro requinte do lugar –, e de outros prédios da rua de trás da minha. O sossego, que já era tônica antiga por ali, andava ainda mais sossegado. Havia uma calma boa de desfrutar, mas trazia algo como culpa de não fazer nada por obrigação. Eram tempos esquisitos!
Foi dali que assisti a uma live sugerida por um amigo. Não vi apenas olhando a telinha. Estava numa janela adiante o cara que eu via também transmitido pelo mundo virtual. Era como se eu estivesse num making of da vida em curso.
Do meu ponto de observação, eu tinha a solenidade recortada pelo espaço do cristal líquido e o resto de elementos comuns da casa. Como a mulher linda que trocava peças de roupa diante de um espelho enorme fora do alcance da câmera.
Estávamos tendo dias bonitos, arejados e com sol. O inverno veio brando e ficou assim, garantindo amenidade na maior parte do seu período no calendário das quatro estações. Estava cumprindo o riscado previsto pelos meteorologistas. Mas, como tudo e todos naquela travessia, saiu do eixo por alguns dias congelantes.
Nos fins de tarde sempre chegava um som pela janela. Eram instrumentos de sopro. Difícil localizar a origem – havia um ginásio de esportes, dois pequenos clubes e mais um quartel nos arredores. O repertório misturava marchinhas e músicas populares do repertório de bailes.
A manhã do sábado parecia trazer o convite para uma caminhada leve. Por volta das dez, o som dos metais começou a chegar pela janela do quarto, da sala, da área de serviço e da cozinha onde eu terminava de tomar café.
O repertório estava repleto de Roberto Carlos, Sinatra, bossa nova e standards americanos e italianos. Aplausos e, aqui e ali, uma voz ou outra gritava “bravo!”. A quantidade de prédios da metrópole gerava a propagação que trazia a impressão de um som em 360 graus.
Havia uma certa falta de equilíbrio nos volumes dos instrumentos nas execuções, muitas notas pulavam dos locais onde deveriam estar. Pensando bem... E daí?
Caminhei sem pressa, como todo mundo. Mascarado! Dobrei a esquina da rua de trás da minha e o som da música aumentou de volume. Mais um pouco e lá estavam dois músicos. Sim, a reverberação pelos prédios transmitia uma sonoridade multiplicada e falsamente mais numerosa do que a real origem dela.
Muitos idosos estavam sentados nas áreas livres e ajardinadas dos seus prédios elegantes. Além da música, recebiam suas boas doses de vitamina D diretas do sol, com os cuidadores sempre a postos.
Parei um pouco, estava fácil respeitar o distanciamento social. Meia dúzia de mulheres de várias idades e um senhorzinho assistiam mais de perto. Pessoas passavam passeando com seus cães, uma ou outra mãe ou babá empurrando carrinho de criança. Os porteiros em suas cabines de isolamento eterno, indefectíveis – impossível saber se estavam gostando ou não. A galera da lanchonete em conversa mínima pela calçada, aguardando os clientes improváveis daquele período. Um deles soltando baforadas preguiçosas de um cigarro interminável...
Uma pequena caixa de papelão forrada com pano preto, esparramada diante dos músicos, era o caixa das gorjetas. Fiquei apenas três ou quatro músicas, deixei um trocado e fui embora debaixo de agradecimentos cordiais. Repetimos o obrigatório “cuide-se!” daqueles tempos.
O vento passava ameno pelas folhas das muitas árvores. Talvez quisesse espalhar as sombras frondosas para emprestar natureza ao concreto predominante.
Atravessei a rua. Escorado na banca de jornal, um homenzinho concentrado em pensamentos íntimos com sua garrafinha long neck verde, como se houvesse nela alguma dose de esperança. Completei o meu circuito de quarteirões caminhados e voltei para casa a tempo do almoço.
Naqueles dias, os telejornais diziam coisas e emitiam opiniões de um extremo ao outro. Assim chegava o panorama atualizado do mundo tão cheio de vieses quanto nós.
Um refugiado ruandês confessara ter colocado fogo na catedral de São Pedro e São Paulo, em Nantes, um tesouro gótico da capital dos duques na França. Ele havia sido acolhido como voluntário e, ironia, trabalhava na segurança da igreja. Apesar da rapidez dos bombeiros, o fogo conseguiu transformar vitrais e o órgão musical do século 16 em cacos, cinzas e metais retorcidos.
Havia uma tal de ressurreição dos drive-ins como forma de tentar salvar o negócio dos cinemas, ainda paralisado. Sequer respeitavam a memória dos frequentadores pioneiros, que jamais iriam a um drive-in com família e até cachorro dentro do carro. Aliás, ninguém lembra direito dos filmes que eram exibidos naquelas telonas no meio do tempo, porque o que rolava dentro dos carros é que era coisa de cinema! Aquilo que estavam oferecendo agora, era, no máximo, cinema ao ar livre.
Uma notícia animadora dava conta da retomada do mercado da construção civil, que sempre foi um sinalizador de bons ventos na economia. Mais adiante, alguns números positivos de outros setores soaram quase inacreditáveis para aquele momento de paralisação quase completa.
Foi muito bom ouvir que as pessoas passaram a comprar mais e mais livros. Os canais de comércio eletrônico tiveram elevada participação nesse boom inesperado, o que reanimou o cenário moribundo das editoras. O detalhe interessante é que os clássicos lideraram o ranking das vendas digitais.
Especialistas apareceram com duas explicações para o fenômeno. 1) As pessoas voltaram para suas leituras fundamentais, os livros que as fizeram felizes no passado – como se buscassem reativar ligações afetivas com outros tempos das próprias vidas. 2) Elas arranjaram tempo para ler, até porque o isolamento social deu cabo da desculpa esfarrapada de falta de tempo.
O relevante mesmo é que o hábito da leitura parece ter conquistado espaço no cotidiano de muita gente, o que se escreve como alento. Um sopro de vida para o mundo de papel e tinta, que sobreviveu aos livros digitais, mas testemunhou as grandes livrarias sumindo dos seus endereços tradicionais bem antes da pandemia.
Em pouco tempo, a ladainha das notícias ruins subiu ao altar. Famílias sendo despejadas de ocupações “imobiliárias”, a partir de sentenças de reintegração de posse. Gente que até há pouco estava dentro das nossas casas como diarista, nos atendia com distinção às mesas de restaurantes, trazia nossas entregas até altas horas... Primeiro os tratores esmagando tudo – inclusive os utensílios e pertences de famílias inteiras –, para dar lugar ao fogo botado queimando aqueles barracos já miseráveis desde a entrega das chaves – talvez fossem apenas trancas improvisadas.
Aquelas chamas em seu dourado mortal, os olhares desolados, o choro de pessoas que eram noviças naquele ambiente – eram aquelas mesmas que foram atiradas na rua por uma crise potencializada pela qualidade de políticos ocupados em atirar culpas e afrontar nossa cidadania.
Restou àqueles infelizes mesmerizados pelo fogo os tantos silêncios impotentes diante da força bruta da Justiça do establishment, televisionada ao vivo e em cores como nota incendiária no rodapé da nossa absoluta falência.
Contrapondo nossa pomposa empáfia de remediados da tal “sociedade organizada”, a solidariedade comovente que floresce nas catástrofes, aparentemente compreensível apenas para quem tem as mesmas cicatrizes profundas das desventuras.
As imagens iam mostrando famílias dividindo o pouco mais ou nada de que dispunham com aqueles desabrigados desconhecidos, recém chegados à miséria. A ponto de compartilharem o espaço quase inexistente com quem acabara de perder outro espaço inexistente. E o frio e a chuva fina escreviam o verso final daquela poesia cruel do absurdo. Arrebatadora!
Comecei a fitar a TV da cozinha sem ver e ouvir mais nada. Era apenas uma imagem perdida, como se eu tivesse acionado um mecanismo de defesa, calado a overdose de falas desnecessárias. Preferi não ser invadido por aquele mundo de frases feitas.
Eu andava me perguntando, com cada vez mais insistência, de que valia termos chegado a pontos quase inacreditáveis de desenvolvimento tecnológico, de inteligência artificial, de internet das coisas, de pensar em viagens tripuladas a Marte e o escambau, de viver chafurdando outros planetas e o infinito sideral com nossas sondas exploradoras se mal conseguimos nos entender e compreender que o desafio de viver bem é coletivo, não dispensa nenhum de nós.
Tanto que o mundo seguia no abre e fecha, isola e aglomera. Um retrato de que não conseguimos um mínimo de organização para enfrentar um vírus que parece ter estabelecido uma estreita ligação com padrões de comportamento.
Não bastasse o problema real, a pandemia, explodir nossos egoísmos, nossa ausência de solidariedade e sentido coletivo, nulidades ganharam voz e começaram a nos cansar com tantas bobagens ditas como verdades absolutas. Gente que nem sabe localizar os pontos cardeais danou-se a dar vereditos, escrever os pontos finais da própria irrelevância.
Num dos dias mais frios do ano, saí com meu querido taxista amigo e atravessei um bom trecho da grande cidade. Depois da (minha) obrigação, paramos num daqueles impagáveis botecos que ele e eu visitamos de vez em quando – às vezes, apenas combinamos, sempre na hora do almoço. A galinhada estava espetacular! E deixamos a rabada com agrião reservada para a semana seguinte.
Estávamos apenas vivendo nossas aflições de forma mais amena, valorizando as humanidades que nos caracterizam. Tomando todos os cuidados, mas tentando viver coisas boas. Como são essas coisas simples, esses encontros sem qualquer solenidade que se tornam encantadores, indispensáveis, porque revigoram. Nos dão o tom para não perder o tom.
É de esperar que tenhamos novos cuidados doravante. E vamos ter mesmo. Mas, sem ilusões, por favor. Não vamos abrir mão de nosso jeito de ser, continuaremos humanos. Não adianta fantasiar, não seremos passados a limpo como holografias humanoides mal acabadas. Apenas riremos dos jecas que criaram verdadeiros manuais para o pós-pandemia, que vão ficando cada vez mais parecidos com os teóricos do bug do milênio.
Estamos esgotados dessa conversa de antiga normalidade e novo normal. Das figuras devotas da seita “podecrê” sempre em looping naquele mantra de que pessoas mudam por efeitos cósmicos. Esses chatonildos holísticos parecem continuar com os pés lambuzados pelo lamaçal de Woodstock, procurando o caminho de volta até hoje, sempre alheios à realidade e relativizando as dores do mundo. Tudo o que queremos é nossas vidas de volta, nada mais. E seguiremos sendo os mesmos imperfeitos que somos desde que o mundo é mundo.
Vamos continuar montando nosso prato do almoço do jeito que sempre fizemos, arroz em baixo e feijão em cima. Ou o contrário. Ou lado a lado. Até poderemos inserir novas variáveis aos nossos costumes, mas serão absorvidas nos hábitos num piscar de olhos. Seguiremos em busca das nossas zonas de conforto trilhando o consagrado individualismo digital, e o batalhão de escravos solitários das redes sociais não deverá parar de crescer.
Como bem escreveu o amigo jornalista Jânio Vidal, “Na Idade Média, as pessoas eram queimadas em fogueiras por suas ideias, crenças ou comportamento. No século passado, governos ditatoriais e tirânicos queimavam em fogueiras os livros daqueles que viam como ameaça ou não seguiam a sua ideologia. Nos dias atuais, mesmo nas democracias, fortes estruturas são montadas para queimar nas redes sociais a reputação de quem estiver na oposição”.
É o assunto do momento, o tal “cancelamento digital”. Triste humanidade, cada vez mais sufocada por tantas ferramentas e informações, escolhendo majoritariamente o negativo talvez por não saber o que fazer de positivo com tudo isso. É o reflexo da ignorância que está cada vez mais à vontade em todos os lugares, criando um mar de “marias vão com as outras”. Pior, crentes que estão abafando!
Precisamos evitar o truque revelado pelo escritor Tomasi di Lampedusa em seu romance O Leopardo, que soa como metáfora da nossa realidade: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.
É recomendável dar ouvidos ao filósofo Norberto Bobbio: “Acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde ela está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la por nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum”.
Labirinto da Catedral de Chartres (imagem Google.com.au)

 
Chega de andar em círculos!
 

02/09/2020

Anúncio urgente



Ana Nunes

Preciso arranjar mais sonhos
Para encher o meu varal vazio.
Sonhos musicados como notas
Presas nas pautas de alumínio.
Letras sussurradas por um anjo
Soltas como bolhas de sabão
Efêmeras como certos sonhos são
Mas presas com pregadores de madeira.
Ou como estrelas brilhantes
Surpreendidas no calor da noite.
Tudo no varal
Que é comprido e vazio.
Preciso de sonhos pendurados como panos
Vermelhos , azuis ou brancos
Desbotados ou recém tecidos
Descorados de tanto lavar
Cheirando a sol, água e sabão.
Esgarçados nas costuras
Com buracos nas casas do botão
Ou pedaços coloridos de mim.
Podem ser de segunda mão
Que esses também têm cor e cheiro
Não importa se já foram sonhados
Porque pendurados assim esvoaçados
Parecem novos intocados
Prontos para se sonhar.