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26/04/2021

Outono na minha terra

 

Ana Nunes - aquarela e lápis de cor

Ana Nunes  

Nesses começos de Outono a minha terra acorda em acordes de azul, amarelo e verdes muitos. Os das montanhas vão de verde folha intenso, passa ao verde queimado e vai se esverdejando até o azul longínquo. Onde só se vê o tênue contorno contra o céu sem nuvens. Às vezes aparecem umas branquinhas, branquinhas como ovelhas fugitivas que o vento tranquilo empurra para um redil qualquer.
Esse ventinho fresco cheiroso de mato não encontro em mais lugar nenhum. Só aqui ele venta assim delicado e friozinho e vai trazendo cores para colocar aqui um pouco de vermelho, um pouco de laranja ali. E um verde amarelo limão de galego, capeta e siciliano. Cheiro bom de lembranças mil.

Da minha janela cuidadora de violetas roxas e rosas e brancas vejo um pedaço dessa corrente verde das montanhas protegendo nossas casinhas singelas espalhadas por acima e por abaixo. Casinhas brancas e coloridas, igrejinhas solitárias encastelando um morro onde nem precisa de missa. É só olhar em cima e em volta e estar em graça. Oração do mato, da natureza, do coração.

E assim, nesse agasalho das montanhas, nasce escondida nossa famosa e mal entendida desconfiança recheada de acolhimento. Acolhimento de café adoçado com broa de milho, pão de queijo com queijo, angu com quiabo e pé de moleque de rapadura e amendoim para se comer escondido no passear da tarde.

Somos também cheios de beijos estalados e abraços apertados proibidos por agora nessa sombra escura que ponteia meu coração. Vamos estocando caladinhos como bons mineiros porque mais tarde vai ser um abraço sem fim!        
Porque a vida continua, não é meu querido cavalheiro?

Na minha terra o Outono vem meio quente ao meio dia. E a terra solta aromas de campo querendo chuva. Mas deixa a tarde cair lentamente e o ar fresco vem de novo refrescar. É a hora entre arrulhos que os pássaros voltam para casa. É tempo de se aninhar.

Ah! O poente outonal da minha terra incendeia o céu azul com tons impossíveis! De fogo que não queima, de laranja da terra, de roxo emprestado das violetas. E sem que se perceba essa cor dos deuses vai cedendo espaço á noite serena e complacente. Para mim é o momento da paz, da Ave Maria e do Ângelus. Hora de esvaziar a alma para as estrelas se instalarem no nosso sono.
E quando é lua cheia, brilhante e redonda por completo, pesadona ao olhar, esse outono traz uma luz diferente, fantasmagórica que corta o ar fino e frio e espicha sombras fantasmagóricas no cimento das calçadas.

E então eu pergunto ao meu espelho do espaço profundo se há no mundo lugar mais lindo do que o meu.

 

21/04/2021

O chinelo com GPS

Imagem The Mirror UK

 

Francisco Bendl

Sabemos que as mulheres têm qualidades intrínsecas, próprias, exclusivas.

Apaixonamo-nos por elas também por essas condições que lhes são inatas, principalmente a respeito da capacidade de perdão que elas possuem, elevando a mulher a patamares em níveis de santidade!

Em consequência, o homem abusa de sua paciência, provoca, atiça, cutuca a onça com vara curta, às vezes usando um pequeno graveto.

Pois, então, a fera se mostra no seu esplendor, e o que tiver ao seu alcance joga no imprudente, ou seja, no marido, namorado, noivo, amante, companheiro, quem estiver ao seu lado ou próximo de sua pontaria infalível!

Certamente os programas existentes em armas de longo alcance, de modo que acertem o alvo necessário, as mulheres foram as suas inventoras. Os homens plagiaram a invenção, e ficaram quietos.

Uma relação entre homem e mulher é caracterizada de várias formas:

Arrulhos, juras de amor, apelidos os mais divertidos – quiquinha, preta, moio, ximbica, bombom, minha flor, adorada, minha velha, tesouro, céu da minha vida, minha estrela, minha isso e minha aquilo ...

No entanto, assim como as doces palavras são pronunciadas, as mulheres utilizam outro expediente para nos avisar que estão insatisfeitas ou não gostaram ou foram ofendidas ou maltratadas ou desvalorizadas ou se sentiram traídas:

O que tiverem nas mãos atiram no pobre coitado!

Tenho cinquenta anos de casado.

A minha mulher possui várias maneiras de me punir quando escorrego, ultrapassei algum limite, neguei-me a fazer o que me pediu, deixei de colaborar com ela em qualquer situação:

A sua primeira medida é me deixar sem almoço.

Não que ela deixe de cozinhar, mas não me serve a refeição;

A outra é ficar me atazanando sem parar, conversando sobre o episódio que a desgostou. O pior é que ela traz assuntos de trinta, quarenta anos passados, para darem mais ênfase e razão ao que está afirmando a meu respeito, e aumentando as suas lamentações e queixas por horas a fio.

Mas, o tempo que estamos juntos que, além de nos unir para sempre e com muito amor “ainda”, também tem sido o responsável pela minha esposa ter desenvolvido meios mais práticos e contundentes para me ferir fisicamente ou demonstrar o seu descontentamento imediato por algo que não fiz ou disse sem maiores cuidados.

A Marli inventou o chinelo com GPS!

Isso mesmo, aquele que ela joga em mim e não erra a pontaria jamais!

Na primeira vez que ela me acertou, a distância era de cinco a seis metros, um espaço largo e que me pegou no ombro, levei na brincadeira porque achei que ela teve sorte.

Dias depois, eu ainda pensando se ele teria a mesma pontaria, testei se o petardo anterior fora mesmo ocasional.

Cometi, deliberadamente, uma das maiores ofensas que um homem pode fazer às mulheres:

- Tu não gostarias de ir a um salão de be ...

Não tive tempo de proferir o resto da frase.

O chinelo me acertou em cheio, deixando a marca estampada na minha testa ... “ianas”.

E confirmei que a sua pontaria era mesmo especial quando, imediatamente, após a chinelada que levei no quengo, gritei:

- Tu precisas ir ao salão ...

Mesmo eu tendo me esquivado do projétil em forma de chinelo, ele fez uma pequena curva e me acertou com força no peito!

Sabem aquela falta que o jogador de futebol acerta o gol porque a bola foi em curva?

Apesar de o chinelo não ter a propriedade aerodinâmica de uma esfera, o que a Marli tem foi instalado um GPS que ela programa mentalmente e, ainda por cima, me acerta onde eu estiver!

Na segunda-feira passada, eu já esquecido desse detalhe de o chinelo fazer curvas, parábolas e corrigir o rumo em voo, cometi um deslize meio involuntário.

O Mano me pergunta via whatsapp  como estavam meus dois filhos. O primeiro porque fizera uma cirurgia cardíaca, colocando três pontes de safena e uma mamária, e o segundo contaminado pelo Covid19.

Comentei que a recuperação do primogênito está lenta, que eu o achava meio desanimado, que, a meu ver, ele estava precisando do colo da mãe.

Mas, de modo a explicar que a Marli fosse visitá-lo, escrevi que a minha mulher, mãe dele, ir... o chinelo me acerta o nariz passando entre mim e o computador com precisão cirúrgica.

- Chico, que história é essa que sou a mãe “dele”! Por acaso tens outras mulheres que são mães de mais filhos teus?!

Não tive tempo sequer de esboçar um sorriso, quanto mais explicar a minha “explicação” ao Mano, pois o segundo chinelo me acerta as costas!

Faz dois dias que tento um diálogo com a cônjuge, pelo menos, porém ela se mostra irredutível.

Hoje, sabe-se lá se não queria me testar, ela se dirige a mim e exclama:

- Chico, me leva até o centro, preciso comprar uns novelos de lã.

- Pega um táxi, tô com preguiça de sair de ca...

Foi tardia a minha lembrança ainda dolorida do chinelo eletrônico. Tentei ainda me esquivar, me abaixando para o tiro passar por cima, em vão.

O maldito chinelo me acertou na orelha, e me trazendo o seguinte aviso:

- Chicão, olha, se eu fosse tu eu a levava porque ela inventou o chinelo com GPS e, agora, com BUMERANGUE.

Acenei com a fronha branca do travesseiro que eu queria paz, apesar da ameaça que outro chinelo “smart” estaria a caminho.

Na volta das compras que fizera no centro, eu dirigindo o carro com ela ao meu lado contente porque fui “convencido” devidamente a levá-la, olhei de soslaio que a Marli fazia cálculos e mais cálculos numa folha de papel de embrulho.

Escrevia, apagava, escrevia, corrigia, escrevia mais ora menos ...

- Marli, que rabiscos são esses?

- Tu não vais querer saber!

- Por que não?

- Quero desenvolver o mesmo sistema em algumas panelas que tenho.

Convidei-a para jantar, prometi flores, refiz as minhas juras de amor eterno, que eu amava, e que ela não precisava se incomodar em criar essa panela e, se ela quisesse, eu contrataria uma cozinheira!

Percebi um sorriso discreto no canto da sua boca.

Não sei se era de satisfação pelo prometido ou pela cena sensacional que imaginou, acertando a panela em mim.

Pensando nessa possibilidade real, meio que tastaviei, ou seja, quase que perdi o rumo de casa andando sem direção por uns minutos, querendo eu calcular o que me aconteceria se a panela estivesse com alimento dentro, e me acertasse alguma parte do corpo.

Portanto, deixo um recado aos homens:

Evitem de todas as maneiras que elas comprem chinelos, diante da facilidade de se adicionar GPS, e suas habilidades incomparáveis na pontaria, razão pela qual as mulheres não vão às guerras como combatentes, já notaram?

Elas são enfermeiras, burocratas, secretárias, telefonistas, médicas, cozinheiras, motoristas... mas soldadas não.

A resposta é simples:

Como sabem que são exímias em acertar o alvo não haveria vencidos ou vencedores.

Era a guerra ser declarada e encerrada no mesmo dia.

A cena da trégua:

Uma mulher mostrando o chinelo para outra, e esta fazendo o mesmo para aquela ou ambas acenando com panelas numa das mãos e chinelo na outra, mostrando que estão muito bem armadas e preparadas!

15/04/2021

Um adeus antes do tempo

 

Rembrand Van Rijn - Cavalheiro escrevendo junto a uma janela

Wilson Baptista Junior

Hoje o nosso “Conversas” está de luto. Com a morte de um generoso comentarista aqui no blog e um amigo e grande defensor do Brasil em muitas lutas na arena política.

Morreu Flávio José Bortolotto. Quem nos lê aqui vai se lembrar dos seus comentários, sempre delicados, precisos e generosos nos posts que publicamos. Eu e muitos outros vamos nos lembrar dele também pelos longos anos de luta no blog do meu amigo Carlos Newton, a Tribuna da Internet, sucessora digital do jornal A Tribuna da Imprensa, do grande Hélio Fernandes, que também nos deixou faz poucos dias, depois de uma brilhante carreira jornalística e quarenta anos de luta para tentar recuperar seu jornal, explodido num atentado a bomba pelo regime militar.

Bortolotto escrevia na TI geralmente sobre temas econômicos, de que era profundo conhecedor, defendendo sempre a visão de um Brasil que defendesse o crescimento da indústria brasileira de capital nacional. Um brasileiro que conhecia o significado real da palavra “patriota”, infelizmente tão deformado nos dias de hoje. Um articulista e pensador da direita que tinha a cabeça e o coração aberto para debater e analisar, com clareza, competência e respeito, as ideias de quem concordasse ou não com sua visão. Um homem muito inteligente, culto, ponderado, empresário, conhecedor da engenharia e da economia não apenas pelo estudo mas pela vivência no campo de trabalho. E acima de tudo um cavalheiro, na acepção da palavra, e um grande amigo.

O Brasil e nós todos estamos menores pela sua ida prematura lá para o andar de cima. Fará muita, muita falta. E me entristece profundamente que tenha sido levado pela Covid-19, porque se as vacinas tivessem chegado a tempo, como deveriam, provavelmente ainda estaria entre nós.

Adeus, amigo Bortolotto, e muito obrigado.


06/04/2021

Quantos tons de amarelo o cinza tem?

Fotografia de Carlos Monteiro
 

Carlos Monteiro

Na escala grey da Kodak® não passam de onze. Na obra de E. L. James são cinquenta, na escala Pantone®, uma infinidade, quase, incontável. Vai do 7653 C ao Cool Gray 11 C, passando pelo 409 C. Uma lindeza.

Temos ainda as réguas de impressão, escalas de tintas para arquitetura, pastas para silkscreen, linhas para bordados, crochês e tricô. Uma infinidade de nuances nesta mistura encantadora entre o ébano e o marfim, como nas teclas do piano que se agregam e se combinam em tons musicados e musicais.

Afinal o cinza é uma cor chique. Na arquitetura, o consagradíssimo Chicô Gouvêa o traduz assim: “A cor que mais uso é o cinza, em várias tonalidades, junto com outras mais fortes. O segredo é que ele funciona muito bem quando se junta às outras além de ser um excelente fundo para obras de arte”. Sábio.

É também uma cor estigmatizada; quiçá por não fazer parte do ‘Disco de Newton’ ou do arco-íris. É quase uma cor considerada, do ponto de vista preconceituoso, é claro, purgatório.

As meninas não podiam usá-lo lá nos idos dos anos 1960, pois, segundo suas mães e avós, era uma cor para francesas lindíssimas. Com o que, humildemente, não concordo. Como esteta que sou – vem da fotografia, muitos olhos azuis deixaram de embelezá-lo (o cinza), por puro preconceito à cor. Muitas meninas lindas deixaram de desfilá-lo nas calçadas de Ipanema, Copacabana, da Rio Branco ou da Ouvidor. Quantas não foram ao chá das cinco da Confeitaria Colombo, acompanhados dos deliciosos Leques ou Casadinhos, na Manon, com os verdadeiros Madrilenhos, na Casa Cavè com as almofadas, mil-folhas e Dom Rodrigos e, finalmente, no Cirandinha com os deliciosos ‘waffle’.

Quantos metros de organza, tafetá e crepes deixaram de ser vendidos pela “Notre Dame de Paris”, pela “Casa Alberto”, pela “Casa Assuf”, pela “A Imperatriz das Sedas” ou pela “Kalil M. Gebara”? Quantas modistas deixaram de copiar os moldes encartados na ‘Manequim’ simplesmente porque a cor sugerida era cinza? E os ‘Courrèges’ que deixaram de ser copiados...? Quantas modistas desaconselharam seu uso apostando no básico? Puro estigma, ou quem sabe, astigmatismo, miopia e hipermetropia em conjunto.

Os dias têm amanhecido (em) cinzas, apesar da intensidade com que o Sol se apresenta, muita das vezes por entre as nuvens o Astro-Rei tem se feito presente.

Paira no etéreo, no páramo certa melancolia, certa taciturnidade, enfado em desalento com tanta insensatez, tanta insanidade e leviandade. Acaso sejam as cinzas chegadas do Planalto Central, talvez o nublado de mentes apequenadas, que não conseguem perceber o significado da palavra, ou mesmo, do sentimento, amor, paixão, tesão, entrega, humanidade, respeito, solidariedade, compaixão...; sejam elas em qualquer esfera. Mentes equivocadas que deixam escorrer por entre os dedos suas melhores oportunidades, em troca das cinzas provocadas e, claudicadas, pela fogueira das vaidades, eternos derrotados encimados em seus pequenos e voláteis “podres poderes”. Perdidos numa noite suja de ilusões incertas e etéreas.

Invariavelmente, existe uma tendência à “Lei de Gerson”, a dar um jeitinho, a incluir um “plus a mais” em tudo. Um não-combinei-mas-quebra-essa-aí-para-mim. Um “já que...”. Ultimamente, parece que o verbo combinar não anda sendo flexionado de forma correta. Está padecendo de certa depreciação, de certo desprezo, até desdém. A “Lei da vacina pouca? No meu braço primeiro”, passa a vigorar com veemência. E ficam. Ficam sem soluções, respostas, agradecimentos, decisões, contrapartidas, o tudo e o nada... o primordial fica para trás, encoberto pela cortina chamada ‘véu do descaso’. A cortina de fumaça acinzentada do delírio. ‘À boca pequena’ e a ‘rádio corredor’, ganharam a nuvem plúmbea.

Meu santo Pai sempre me alertou para uma coisa muito interessante e verdadeira: “quando escrever, saiba ser sutil ao ponto de que vistam a carapuça àqueles a quem não foi interessado e endereçado o texto”. Tinha absoluta razão, sapiência não lhe faltava.

Mas há, ainda bem, o Phenix que ressurge das cinzas... borralha...

Cedo ou tarde o Sol brilhará pleno em amarelo.