fotografia Heraldo Palmeira |
Heraldo
Palmeira
Fiquei das cinco da tarde às quase nove da noite diante do
Pacífico, o sol dominando a cena diante do meu quarto de hotel. Não era bem
noite ainda, porque a tarde de verão insistia em não ir embora na hora
anoitecer.
As águas escuras, as pedras pretas, algumas mergulhando e
reaparecendo com o passar das ondas. Lá adiante, os prédios do bairro elegante
de Viña del Mar. E lá mais ao longe, atrás da bruma da maresia e do tempo seco,
Valparaíso e suas colinas repletas de ladeiras e casas como se estivessem dependuradas
no nada.
As gaivotas voando com seus gritos diante da vidraça da janela, eu
num jogo de erros e acertos tentando captá-las para alguma foto mais próxima. Claro
que senti inveja da arte de voar.
Na parte mais baixa da minha visão privilegiada, um resto da
piscina do hotel. Na balaustrada, três gaivotas observando o mar. Uma pose
perfeita para mim.
Um homem velho foi se aproximando pela borda da piscina, elas
ficaram em alerta e começaram a andar sobre a balaustrada. Quebrou minha
concentração e desmanchou a imagem que, faltava pouco, eu levaria para sempre
comigo. Ele agitou os braços, elas voaram sobre o mar. Pensou que era o dono do
espaço, ficou resumido na sua insignificância rabugenta, sem asas.
Bastou ele ir embora, elas voltaram para o mesmo lugar. As adultas
no mesmo posto de observação do mar. O filhote no piso ao redor da piscina. E
completou-se o espetáculo da natureza, uma das adultas descendo para regurgitar
e alimentar a cria bico no bico. Ali, diante de mim, só elas três e eu, e o
Pacífico imenso.
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Não ousei fotografar aquele momento de intimidade familiar, eu não
tinha o direito. Depois, a adulta aproximou-se da piscina e bebeu bastante
água. E se foram, não sem antes revoarem quase entrando no meu quarto. Voos
perfeitos! E eu invejei não ter asas.
O fim do dia foi chegando, o sol ficando cada vez mais dourado e descendo
mais próximo da linha d’água lá no fim do mundo. Os muitos navios fundeados à
espera da vez no cais ganhando contornos amarelados e cheios de contrastes. As
primeiras luzes tremeluzindo como se fossem os corações das duas cidades e dos
marinheiros embarcados pulsando. O mar ficando escuro e escuro, mas dizendo
coisas pelo som de ir e vir e bater nas pedras.
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Dois homens como que grudados nas pedras, retirando seus pescados
da água revolta. Revoadas de várias espécies de aves marinhas em mais uma
despedida diária do mar, indo embora em busca dos seus redutos de repouso. Um
pelicano solitário passou em linha reta, aquele bico inconfundível carregado, a
caminho de alimentar a família.
A lua nova e a estrela-d’alva apareceram juntas, não podiam perder
aquele espetáculo que eu não me furtei de pensar que era para mim. Era como um
prefácio para o dia seguinte, dia de visitar La Sebastiana e, como Neruda, não
negar que vivi.
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Deixei a grande janela aberta. Era impossível negar à minha
solidão aquela companhia pela noite inteira.
Que beleza!
ResponderExcluirMeu querido Verdadeiro,
ExcluirVerdade, aquilo é mesmo uma beleza. Obrigado!
Nesta época de alarmismo excesivo sobre o quase o final dos tempos e que a cada novo dia nos encontrarmos com mais noticias que avivam ainda mais o desconforto do ir e vir, se deparar com um a leitura assim que nos traz concórdia de alma num final do dia, é todo um sentimento de paz e respiro que proporciona alivio. Um descritivo ímpar das coisas simples que se apresenta ao ser humano numa visão cotidiana mas que, tal vez, justo pela leveza que o torna sublime. Parabéns!
ResponderExcluirPrezado Germán,
ExcluirObrigado pela leitura, pelas palavras generosas e por esta primeira visita ao ambiente de comentários do Conversas. Vivemos um momento muito chato no cotidiano e, aqui, damos asas ao lado bom da vida, às nossas humanidades. Por isso, sempre me interesso pelas pequenas coisas que fazemos - neste caso, olhei uma paisagem tão espetacular - para aliviar os desânimos da alma. Um abraço.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirUma beleza mesmo!
Seu talento faz dividir e perpetuar as efemeridades belas do dia a dia.
E maravilha é a janela aberta para o mundo a fora fazendo companhia para a sua solidão!
Que solidão mesmo? Com a bela imagem, suas belas fotos, a sua cristalina bic no papel branco e as palavras ao seu dispor?
Privilegiado você! Privilegiados nós por termos você e seus posts!
Até muitos mais.
Ana,
ExcluirTer uma imagem daquelas diante dos olhos é mais do que suficiente para sacar a Bic Cistal(ina) azul e o papel alvo para sair catando palavras pelos cantos. E ainda tive o auxílio luxuoso de gaivotas, pelicanos, albatrozes, mergulhões e outras aves marinhas maravilhosas em seus rituais de vida.
Sim, você está coberta de razão: não há solidão quando se está beira do mundo com um mar de segredos e belezas diante dos olhos. Por isso, a janela ficou aberta. Escancarada! Privilégio meu transformar em Conversas. Até mais.
Maravilha de texto Heraldo! Sereno. E suas ilustrações me fizeram sentir-me em frente ao Pacífico de águas geladas a observar o lindo voo das gaivotas e delas também sentir inveja.
ResponderExcluirBeiga, querida,
ExcluirBom tê-la botando os pés na areia destas Conversas. Sereno o mundo que oferece tudo aquilo que vi por dias, como se estivesse no Paraíso. Não há como não invejar a capacidade de voar. Deus sabe o que faz por não nos dar asas.
Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,
ResponderExcluirO bom Escritor Sr, HERALDO PALMEIRA, estando a beira-mar na grande Santiago-Chile, tendo grande janela aberta de frente para o Oceano Pacífico, ao final da tarde, se inspira para Escrever observando a paisagem e as aves marinhas.
Realmente, temos inveja de não termos asas de geometria variável como as Gaivotas com seus lindos voos e mais lindo ainda planeio.]
Elas sabem aproveitar as mais leves correntes de ar, e manobram melhor ainda em ventos fortes.
Quem tem "olhos" como o Autor para observar a Natureza e suas Criaturas, nunca está sozinho.
Parabéns e um Abração.
Prezado Flávio,
ExcluirObrigado por sua leitura tão qualificada e a bela aula sobre as gaivotas e sua magia na arte de voar. Talvez por chegarem mais perto de nós do que a maioria das aves marinhas, elas são uma espécie de "figurinhas carimbadas" do ambiente marinho, eternizadas na literatura e no cinema - inclusive com o protagonismo de "Fernão Capelo Gaivota", que encantou o mundo a partir da publicação do livro (1970) e do filme (1973), em suas descobertas e conflitos diante das realidades da vida.
Ter tido o privilégio de ficar diante daquela natureza e suas criaturas em Viña del Mar realmente comprovam que a vida, por si só, pode ser uma grande companhia. Abraço.
Heraldo, quando leio, ao comentar, os comentários que vieram antes de mim nesse post, sinto que disseram tudo (ou quase tudo) o que eu gostaria de dizer. Fico então apenas com as lembranças que me trouxe de outro lugar, mais quente, do Pacífico e do muito tempo em que me quedei olhando os voos das gaivotas e, lá mais no alto, o voo hierático das fragatas e sentindo, como você e o Bortolotto, a vontade de ter asas como as delas e estar ali no meio daquele imenso azul.
ResponderExcluirE o limpo anoitecer por cima do mar, ainda que bem longe do sertão e com o buliço da cidade às nossas costas, sempre me lembrou os versos do Paulo Setúbal:
"Oh! vós que respirais a poeira das cidades
vós nunca entendereis a doce suavidade,
a música dorida, a estranha nostalgia,
que vem da solidão quando desmaia o dia!"
Que bom que a Lua e a estrela Vésper vieram ouvir essa música com você, e que bom se o dia seguinte tiver estado à altura do prefácio...
Mano,
ExcluirFoi uma experiência interessante merecer estes comentários, em que as pessoas praticamente se viram nas minhas visões da natureza naquele ambiente marinho de Viña.
Sabemos, a vontade de voar é um desejo latente em todos nós, talvez porque aprendemos cedo que liberdade é, antes de tudo, um estado da alma. E, por isso, não houve solidão nos desmaios daqueles dias; muito menos qualquer saudade da poeira das cidades. Abraço.