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05/05/2020

O Mestre-Sala dos Mares partiu!

Desenho de  Nando Motta

Heraldo Palmeira 
Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos. Quem misturou tudo foi Elis. Foi tanta coisa! Meu profano amor, eu prefiro assim. Glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história não esquecemos jamais. Contando mentiras pra poder suportar aí. Sentindo frio em minh’alma, dois pra lá, dois pra cá com tanta gente que partiu num rabo de foguete. Um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos... um brilho de aluguel pra noite do Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil. Eu esqueço sempre nesta hora minha velha fuga em todo impasse, quanto me custa dar a outra face. A sala cala e há um corre-corre, acaba sempre no melhor pedaço e o urubu sai voando, manso. Meu pirão primeiro é muita marmelada! Diz um diz que viu e no balaio viu também um pega lá no toma-lá-dá-cá. Quando ele fere, fere firme e dói que nem punhal, quando ele invoca até parece um pega na geral. Tá lá o corpo estendido no chão. Em vez de rosto, uma foto de um gol. Em vez de reza, uma praga de alguém e um silêncio servindo de amém. Fechei minha janela de frente pro crime. Jogava o Flamengo, eu queria escutar. Chegou, mudou de estação, começou a cantar. O amor sempre foi o causador da queda da trapezista pelo motociclista do globo da morte. O amor é de morte! Se Vênus me ajudar, virá alguém. Eu sou de Virgem e, só de imaginar, me dá vertigem. Minha pedra é ametista, minha cor, o amarelo. Batidas na porta da frente, é o tempo. Calado, ele ri porque sabe passar e eu não sei. 
Caía a tarde feito um viaduto. Aldir tinha a dignidade de um mestre-sala, fazia irreverências mil pra noite do Brasil. Não sabia mesmo o nome do irmão do Henfil quando escreveu a letra, apenas que ele era exilado político no exterior. E só conheceu Betinho posteriormente. O primeiro encontro deu-se na porta do banheiro do Canecão e o quase santo homem da Ação da Cidadania foi direto: “Sou o irmão do Henfil. Eu não ia voltar, eu tinha me planejado todo para não voltar, mas ouvi a sua letra para a música do João e resolvi voltar, seu filho da puta!”. 
Por isso, a charge com Aldir chegando ao céu com a esperança equilibrista na corda bamba, de sombrinha, sustentada por um Betinho instalado numa nuvem gritando “Henfil, vem ver quem chegou!”, é poesia pura pronta para arrancar todas as lágrimas doridas pelas músicas que deixarão de ter as letras celestiais de Aldir Blanc. 
Diante desse elenco que vai se formando no terreiro do Criador, cada vez mais peço humildemente a Deus que eu tenha merecimento para ir viver lá quando não puder mais ficar aqui. Vou me conformar, sem questão, em ficar na última fila da plateia. Mas, se Ele me conceder a graça e uma vaguinha na equipe de produção, tô prontinho para ir-me embora. Amém!


10 comentários:

  1. 1) Bela e merecida homenagem;

    2) Parabéns Heraldo.

    3) Saúdes e proteções para todos nós e nossas famílias e amigos.

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    1. Heraldo Palmeira06/05/2020, 17:07

      Antonio,
      Tipo da homenagem que detesto fazer, mas que não se pode deixar de. Infelizmente, é a triste constatação de que estamos ficando ainda mais pobres, já quase miseráveis diante do deserto de ideias em que vai se transformando nosso ambiente cultural. Abraço.

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  2. Léa Mello Silva06/05/2020, 17:32

    Só vc para fazer este belíssimo texto
    Poucos conhecem música como vc e sabem colocar em perfeito equilíbrio
    Parabéns ! Completando com a ótima charge que ilustra sua crônica

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    1. Heraldo Palmeira06/05/2020, 23:46

      Léa,
      Apenas resultado do vício poderoso e mágico de ouvir música todo dia e ter aprendido a gostar dela e do seu ambiente. A charge, sim, fabulosa! A dor vai sendo tratada com a obra que estará sempre flutuando sobre nós.

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  3. Dizer o quê, Heraldo, diante da charge e das suas pretinhas? Apenas que as músicas do Aldir, do João, e da Elis fizeram parte da minha vida. E que espero que eles continuem cantando juntos.

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    1. Heraldo Palmeira06/05/2020, 23:49

      Mano,
      A charge é de curvar e as pretinhas ficaram pálidas pela perda desse gigante. Sim, seguirão cantando juntos aqui, ali, acolá e lá por cima. E ainda bem que temos os discos e vídeos. Abração.

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  4. Flávio José Bortolotto07/05/2020, 21:46

    Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,

    Parabéns pela bela homenagem ao grande Poeta ALDIR BLANC ( 1946 - 2020 ).
    E como o senhor sabe escrever bem, a mais difícil das Artes.

    Que o Anjo do Senhor nos proteja a Todos.
    Abração.

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    1. Heraldo Palmeira08/05/2020, 16:37

      Obrigado, Flávio.
      Aldir era um desses magos que existem por aí, recolhido no seu mundo no canto final da Tijuca. Como dizem muitos, foi dali, absolutamente recluso à sua aldeia, que ele tornou-se universal. Pena para o resto do mundo que não fala português, vão viver sem tomar conhecimento de um monumento lítero-musical como poucos.

      Que estejamos todos protegidos. Abração.

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  5. Olá Heraldo,
    "Minha velha fuga em todo impasse..."
    Você me espanta cada vez que leio. Já sei do brilho das suas letras e a cada vez um novo encantamento.
    Com o corpo preso em casa e a alma livre e solta que foge pela janela com cada pássaro voando, ou nas incursões noturnas do gato, no brilho das estrelas à noite ou na lufada de vento frio, não deixe de escrever. Não nos deixe assim na espera...
    E um dia,quando você for rever esses amigos queridos que lhe deixaram na saudade, não se esqueça da Bic cristal. E vai haver uma letra mágica em cada gotinha de chuva.
    Até muitos mais.

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    1. Heraldo Palmeira09/05/2020, 14:38

      Ana,
      Antes de tudo, um esclarecimento: "Minha velha fuga em todo impasse" foi escrita por um gênio, Aldir Blanc, musicada por João Bosco, linha e agulha com a voz de Elis em "Bala com bala". Quem me dera um milésimo dessa poesia e desse vulcão criativo!

      Estamos todos assim, vagando pelas travessuras da mente, usando os movimentos sorrateiros e artimanhas dos gatos, as asas de quem sabe voar, indo para as estrelas do céu escondidos na aba do vento... Conheço todos esses truques que quase sempre se oferecem por uma janela aberta ou que nós esquecemos providencialmente de fechar.

      Prometo que não vou me afastar desse cenário, nunca esquecerei de manter a velha Bic Cristal azul ao alcance da mão. Só peço paciência porque, às vezes, dói o calo no dedo da mão onde ela se encosta, e fica mais pesada quando está cambaleante no meio da pancadaria das ruas escuras quando o sol demora a chegar.

      E quando for o tempo da saudade, meu farnel será modesto para a grande viagem, terá miudezas como a Bic Cristal azul, uma ou duas Moleskines, um pendrive com aquelas músicas indispensáveis, um pacotinho de cream cracker e um tantinho de goiabada para fingir sanduíche de biscoito. E posso até arriscar uma loirinha gelada, contando com a bondade do Criador e meu compromisso de nem chegar com a garrafa na portaria. Até muito mais!

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