aquarela Ana Nunes |
Ana Nunes
Um consultório de endocrinologia
onde velhinhos em formação e outros já formados vão em busca de consolo para
essas glândulas maravilhosas que equilibram nossos corpos e que também ficam
cansadas e começam a titubear. Faz tempo já e faz tempo que quero contar sobre
esse caso e temo não conseguir descrever a delicadeza do encontro. A delícia
calma e doce que deixou em mim.
Primeiro chegou um casal de
idade, ele bem mais velho nos seus noventa, pequeno, magrinho e simpático com
suas mãos expressivamente calombudas, com bolotas nas juntas já tão usadas. Mas
nem por isso menos ágeis ou conformadas na velhice. Conversava às vezes com a
mulher ou ficava quietinho olhando com olhos espertos de uma mente inteira seus
companheiros no caminho. A mulher nos seus setenta era a paciente. Ele era
apenas o acompanhante.
Algum tempo depois chegou uma
jovem mulher nos seus quarenta, generosa de formas e de sorriso, bonita na sua
lourice discreta. Depois da secretária, cartão de convênio e essas coisas
comuns de consultório, sentou-se ao lado do velho miúdo e quieto. Passado o
tempo da observação, sem mais delongas e milongas, ela pegou carinhosamente na
mão dele, com uma amizade como se de longa data, um avôzinho ou um tio querido.
E sem cerimônia, como acontece entre as grandes almas, examinou as deformações
e disse padecer do mesmo mal, ainda no começo. E ele, amigo de infância,
deixou-se ser examinado. E começaram a falar de coisas mútuas sem lamentos ou
lamúrias, trocando impressões e experiências. Talvez falassem também das dores
e dos remédios mas não sei dizer. Esqueci de escutar tão envolvida naquela
imagem delicada. Parecia que o consultório frio do ar condicionado tinha mais
sol e mais calor. Não era mais só uma sala de espera.
Quando comecei a ouvir de novo
eles conversavam animados sobre o que faziam na vida. Ele, nos bons tempos, e
tudo indicava que ainda eram bons tempos de vida, tinha sido representante de
produtos. Não me lembro quais porque perdi parte da conversa por surdez súbita.
Muito tempo depois vim a sofrer realmente desse mal que me legou a chicungunha.
E ela tinha um pai representante de grandes máquinas tipo Caterpillar. Acho
mesmo que eram essas. E falaram dessas coisas e contaram histórias. E lembraram
da cidade comum de vinte ou trinta anos atrás que também tinha sido minha. E
falaram de lojas já fechadas onde ele representava seus produtos. Falaram de
uma Bemoreira antiga ao lado de uma Guanabara moderna e de uma Perfumaria
Lourdes, encontro de mulheres ávidas de perfume e juventude, falaram de um Pep's e de uma Sears com salão laranja para os lanches rápidos, construções
vencidas por prédios enormes de escritórios sofisticados ou empresas bancárias.
E comentavam tão alegres nas suas lembranças que não ousei participar. Vontade
eu tive porque falavam de coisas também minhas. Mas era tudo de um encanto tão
feliz que não deveria ser por nada quebrado. Momento mágico desses que nos
surpreendem de vez em quando.
Ouvi o médico me chamar e com
tristeza deixei os dois naquela conversa amorosa de seres amigos de uma vida
inteira. Quase pedi ao médico uns minutos mais de espera porque estava
encantada demais para falar de colesterol e enzimas e proteínas.
Voltei para casa com um bem estar
desconhecido. Um resto da suavidade e beleza de um encontro inesperado.
Beleza, Ana! Que delicadeza essa história!
ResponderExcluirOi Guto querido ,
ExcluirObrigada por você!
Beijo.
Aninha, Aninha... Olhar pro passado com bondade e pro futuro com esperança. Bemoreira, Sloper, Inglesa Levi, Foto Elias, e ver que as nuven não mais fazem apenas parte de nossa paisagem, mas guardam nossas lembranças se, como você, as depositamos lá. Suavidade e beleza aos olhos de quem sabe ver e sentir e repartir, como você.
ResponderExcluirOsias querido,
ExcluirCambada de cunhados queridos do meu coração!
Obrigada pelo,seu carinho, sua amorosidade...desde tempos muito antigos!
Esse post foi escrito como presente de aniversário para o Mano na impossibilidade de ir a uma livraria e desfilar pelas mãos e olhos esse tanto de livros que tem por lá. E comprar um presente. Acho que ele gostou!
Beijo.
Momentos assim não ocorrem sempre. Muito lindo!!!
ResponderExcluirLaura querida,
ExcluirAcho que gosto de morar nessa família cheia de queridos.
Gratidão!
Beijo.
Lindo demais este encontro ! e fico imaginando a cena !
ResponderExcluirE o velhinho feliz pela conversa tão amiga
Recebendo um carinho que é o que devia precisar naquela altura da vida
E eu fiquei pensando como é fácil dar um presente destes ! Basta uma conversa para cativar o outro
Uma linda lembrança !!
Léa, prima querida,
ExcluirSou feliz demais por viver cercada de queridos!
Obrigada pela sua leitura e comentário. Você deveria me cobrar por post lido pois sempre fico na urgência de saber o que você achou! Tipo assim, a cada dez uma favelinha de cerâmica.
Beijo.
1) Bonita Aquarela Ana, para uma bela crônica !
ResponderExcluir2) Os anos passam e nossa memória nos traz sentimentos, cada recordação tem as emoções da época. aqui no Rio também tinha as lojas Bemoreira,a Sears, a Sloper...
3)Gentes, pessoas, idades, eis nossa caminhada.
Antonio, querido budista,
ExcluirTemos lembranças repetidas, eu e você.
Gratidão pelo comentário.
Atē mais.
A ilustre Autora, Sra. ANA NUNES, Escritora consumada e Pintora de lindíssimo estilo como nesse Trabalho em cores em Aquarela, nos traz em "Um encontro delicado", belo relato de Amizade entre um senhor de 90 anos, Representante Comercial de Produtos que esperava com sua senhora Consulta Médica, e uma Mulher de 40, filha também de um Representante Comercial de Tratores Caterpillar, também grande Viajante.
ResponderExcluirCom Maestria nos relata a Escritora Sra. ANA NUNES, da bonita conversa entre eles que começou com a doença da junta dos dedos das mãos do veterano Viajante e da Filha do seu amigo da Caterpillar, que achava que estava com inicio da mesma doença, de mãos dadas.
E Viajantes, (como os antigos "Cometas", como foi o Pai do grande Presidente JUSCELINO KUBITSCHEK), dão excelentes histórias. Tive um Vizinho, Sr. PETER, Alemão que falava um Português perfeito sem sotaque, grande Representante Comercial. Dizia ele que ganhou muito Dinheiro vendendo, pilhas para vaga-lumes, embreagens para sapos, os sapos gastam muita embreagem, suspensórios para cobras...
E assim, o tempo "voou", e a Sra. ANA NUNES foi chamada para sua Consulta Médica.
Parabéns por esse Conto " Um encontro delicado", e pela belíssima Aquarela
que o acompanha, junto com nossas Saudações.
Flávio, gentil cavalheiro dos nossos escritos,
ExcluirObrigada por nosso encontro dentro de um enconto delicado.
E é assim a vida, cheio de encontros delicados quando estamos atentos e aproveitamos a oportunidade. Nada de deixar para depois o que podemos falar agora.
Obrigada de coração.
Até mais.
Dificilmente outra pessoa teria notado o carinho que a jovem mulher teve com o senhor de idade, se não fosse outra mulher e tendo seus predicados iguais ou até mais aprimorados:
ResponderExcluirSensível, inteligente, observadora, que dá valor à vida, que sabe que o afeto e o carinho são fundamentais ao ser humano e principalmente com relação aos velhos, hoje praticamente descartáveis nesse cenário de existência de consumo, de desvalorização da espécie, de princípios e valores de acordo com época.
Claro, eu me refiro à Aninha, e por várias razões:
O episódio lhe chamou à atenção;
A atitude de desprendimento da moça;
A consideração pelo idoso;
A paciência com aquele que raramente as pessoas levam essa questão em conta.
Ana escreveu uma crônica terna, singela, meiga, exatamente de acordo como entende e vê o mundo, por mais cruel e repulsivo que possa ser em certos momentos.
E nada mais simbólico com relação a essa aversão que a humanidade sente por ela mesma, do que constatarmos a solidão do idoso, seu abandono, seu esquecimento.
A personagem que Aninha tão bem se reportou, simplesmente era a imagem do contraste, do que não se percebe mais:
A jovem e o velho conversando, ela segurando-lhe as mãos, ele sendo tratado como um ser humano e carente, e obtendo a atenção daquela pessoa que representa o futuro, e sendo analisados por uma mulher que é testemunha desse vida que temos de enormes diferentes entre cada ser humano, principalmente entre homem e mulher, afora a sua experiência, a sua enorme capacidade de percepção, e a sua alma bondosa, compreensiva e tolerante.
Legal, Aninha.
Momentos assim nos impulsionam a seguir em frente com entusiasmo e decisão.
Forte e caloroso abraço.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Querido Chicão, amigo exagerado e despudorado!
ResponderExcluirMais do que uma conversa para alegrar um velhinho, foi uma alegria mútua, um reencontrar-se sem nunca terem se encontrado antes. Dois jovens ou duas crianças.
Foi lindo! Mas isso eu já disse.
Temos que ficar atentos para nos enternecermos com momentos assim. Ou com comentários ternamente exagerados que nos fazem viajar em bolhas de sabão.
Obrigada de coração.
Até mais. E mais.