-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

26/07/2020

Releituras



Wilson Baptista Junior
Outro dia comecei a reler o “À la recherche du temps perdu”, de Proust. Reler é um modo de dizer – há bem uns quarenta anos tinha lido a primeira parte, “Du coté de chez Swann”, numa edição em português publicada, em volumes separados, não me lembro mais por qual editora. Na época, era uma edição cara, e necessidades mais prosaicas, se bem que não menos importantes, me obrigaram a não continuar comprando a obra além desse primeiro volume.
Agora, graças à maravilha do Kindle, comprei a preço de quase nada a edição inteira no original francês. E, tanto tempo depois e pela leitura do escrito original (sem desfazer em nada do trabalho do tradutor da outra edição), embora ainda esteja na mesma primeira parte é como se estivesse lendo um livro novo para mim.
(Escrever isso me fez lembrar uma história contada sobre Mark Twain, quem, sendo apresentado numa festa a um cavalheiro inglês, ficou espantado ao ouvi-lo dizer “Eu pagaria de bom grado cem dólares para não ter lido o seu livro As Aventuras de Huckleberry Finn...” – e já estava fechando a cara quando o inglês completou – “Só para poder ter o prazer de lê-lo de novo pela primeira vez!”... Mesmo sabendo, hoje, como é bom ir descobrindo coisas novas a cada vez que, com alguns anos de intervalo, se torna a ler um bom livro, sempre achei que esse é um elogio que qualquer escritor gostaria de receber).
Mas não é do livro que quero falar – porque ainda falta muito para chegar ao final e nessa altura seria presunção demais de minha parte resenhar ou fazer crítica da obra prima do Proust – é de alguma coisa que a leitura provocou em mim.
Logo nas primeiras páginas, o narrador descreve o que acontece com ele ao acordar, tendo adormecido enquanto lia algum livro (e eu rarissimamente consigo dormir sem estar lendo alguma coisa, e em geral muito tarde) – acorda sem perceber que tinha dormido, imaginando confusamente que precisava apagar a lâmpada de cabeceira e dormir, mas enquanto dormia seu cérebro tinha continuado a elaborar aquilo que tinha lido, e durante alguns segundos ainda pensava que estava vivendo aquilo de que o livro falava, até que pouco a pouco o peso se levantava de suas pálpebras e percebia que a lâmpada estava apagada; então percebia a escuridão à sua volta e acendia um fósforo para olhar o relógio, descobrir que ainda não era a hora de acordar e adormecer de novo.
Diz ele: ”Um homem que dorme mantém em volta de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Instintivamente os consulta ao acordar, e neles lê, num segundo, o ponto da terra que ocupa, o tempo que se passou até seu despertar; mas suas fileiras podem se misturar, se romper.” E, de fato, quando adormecia numa hora inusitada, num lugar diferente, ao acordar podia se perceber, por instantes, em outro tempo e em outro lugar.
Esse começo já me falou de perto, durante muitos anos da minha vida meu trabalho me levou a viajar muito e muito frequentemente. Acordando a cada vez num novo quarto e uma nova cama num lugar diferente, às vezes conhecido, às vezes desconhecido, e tantas vezes me senti como o autor nessas palavras, rompido por instantes o fio do tempo e de quem eu era e do meu lugar no mundo, o espírito ainda perdido num sonho qualquer, a mão procurando a lâmpada que não sabia bem onde estava, até que o mundo entrava pela janela trazido pela luz do sol e meu espírito voltava ao meu corpo e o fazia lembrar de quem eu devia ser, do que eu tinha ido fazer e em que língua devia falar.
Não há como resumir, explicar ou recontar página alguma desse livro, é preciso se perder dentro dos seus longuíssimos parágrafos (porque o escritor era singularmente avaro no gasto dos seus pontos finais) deixar que suas palavras nos levem de volta à ingenuidade de nossa infância sem perdermos nossos olhos de adultos (conjunção difícil, bem sei) enquanto vamos vivendo junto com o narrador as vidas dos personagens que nos circundam.
Lembranças de criança vivendo em casa de avó, na cidadezinha de Combray – também tive as minhas, fui criado na casa de meus pais onde viviam conosco a avó e tia avó paternas, se bem que essa muito diferente da do livro, e passava pequenas férias na casa dos avós e tias maternas – e quando se fala de lembrança muita gente mesmo sem ter lido o livro já ouviu falar da “madeleine” do Proust – aquele maravilhoso biscoitinho de limão em forma de concha de vieira, que um dia, em Paris,  a mãe do narrador lhe oferece, passados muitos anos de sua infância, junto com uma chávena de chá, e ao molhar o biscoitinho no chá e sentir seu sabor na língua ele se transfigura – em suas palavras: “um prazer delicioso me invadiu, me isolou, sem que tivesse noção do porquê. Esse prazer num instante me tornou as vicissitudes da vida indiferentes, seus desastres inofensivos, sua brevidade ilusória, do mesmo modo que faz o amor, me preenchendo de uma essência preciosa: ou, mais ainda, essa essência não estava em mim, ela era eu próprio”. E o narrador tenta descobrir o que era esse sentimento, e termina por sentir que a verdade que procurava não estava no gosto da madeleine, mas nele próprio. E depois de uma longa introspecção, de repente a claridade se faz e ele percebe que aquele era o gosto do bocadinho de madeleine que uma tia sua costumava lhe oferecer, molhado na infusão de tílias que gostava de tomar, aos domingos de manhã, na casa de Combray. E aí lhe volta uma profusão de lembranças que julgava esquecidas.
Quem de nós não teve algum dia a sua ou as suas madeleines? Uma das minhas foi o gosto de um pudim de leite condensado denso e dourado como o da minha mãe, que me levou de volta à mesa de almoço da casa onde nasci, e aos rostos de meus pais do outro lado da mesa que meus olhos de criança julgavam que estariam sempre lá, e fez ficarem úmidos os olhos do adulto; outra, há muitos anos, viajando de carro com a Ana ao meu lado e Pedro e Maneco, ainda pequenos, no banco de trás, foi uma golada d’água morna de um antigo cantil meu de alumínio coberto de feltro, aquele gosto de cantil que só conhece quem já carregou um debaixo do sol, e que me jogou de volta aos tempos de estudante, tendo na frente dos olhos o mar de nuvens iluminado pelo céu azul e batido pelo vento forte do alto dos dezoito quilômetros de subida a pé, mochila e barraca nas costas, de Caparaó Velho até o Pico da Bandeira, e à frente da alma toda a maravilha de uma vida que ainda estava por vir.
Há muita coisa nova para se ler, e cada vez me sobra menos tempo pela frente, mas de vez em quando é muito bom fazer uma pausa e voltar a esses grandes livros. Se eles ainda nos agradam tanto é porque quem os escreveu soube dizer coisas que continuam a tocar nossas almas através do tempo. 

13/07/2020

Conversando com o Espírito do Senhor Buddha

A Colina do Buddha, monumento em Sapporo (fotografia de Appie Verschoor - Wikimedia Commons) 


Antonio Carlos Rocha
- Salve Mestre Buddha, como vai o Senhor?
- Bom dia amigo, vou indo, orando e enviando boas vibrações para este conturbado Planeta Terra.
- É verdade, é um belo mundo, mas a espécie humana tem muita gente que adora guerras, desequilíbrios na Ecologia, ganância pelos lucros...
- Pois é, agora temos aí o Covid dando dor de cabeça a todos nós. Vocês encarnados preocupados, nós Espíritos de Luz tentando ajudar, mas nem sempre é fácil.
- Digamos Elevado Espírito de Luz !
- É mas eu evito esses elogios, mesmo aqui onde estamos, precisamos estar atentos às vaidades, os apegos.
- Quando nós praticantes, fazemos os louvores, cânticos o Senhor não fica enobrecido?
- Em primeiro lugar vemos que os louvores, os cânticos e os rituais são em homenagens aos Estados de Buda presentes em todos seres vivos. Só depois para os demais Budas, que são milhares, como diz o Sutra Lótus, então não levamos para o lado das vaidades.
- Já que o Senhor falou em Sutra Lótus pode nos brindar com uma estrofe?
- Sim, vamos abrir o texto ao acaso e vamos ver qual a mensagem para o momento: “Não te preocupes, ó Bhagavant / nós, quando Tu estiveres extinto, / numa terrível época posterior / pregaremos este excelso Sutra”.
- Obrigado, parece que foi escolhido a dedo !
- Sim, como falei acima, todos nós, vocês seres visíveis e nós seres invisíveis para a maioria da humanidade, estamos atravessando “uma época terrível” em função da Covid-19.
- De fato, nós discípulos divulgaremos sempre estes ensinamentos.
- Agora eu tenho  que ir, até a próxima amigo.
- Até breve Senhor Buddha e gratidão por tudo.
- Bênçãos para vocês!

Explicando:
1) Bhagavant quer dizer Bem – Aventurado.
2) “Extinto” termo usado para identificar uma pessoa falecida e que eliminou, quando em vida, todas as negatividades.
3) Sutra = sermão, texto sagrado, obra canônica.
4) Infelizmente, no Brasil, não existe este Sutra editado. Há edições em diversas línguas.
5) Contudo, em português, há um volume que foi publicado nos EUA, 624 páginas e só encomendando por correio.


08/07/2020

Estranhos hábitos

Don Quijote y Sancho Panza - Pablo Picasso


Ana Nunes

Esse momento triste e doloroso e desesperançado é certamente tempo de muita pesquisa. Pesquisa do desenvolvimento do vírus, pesquisa de genes, porque uns pegam e outros não estando juntos e se cuidando ou separados se isolando, estudo de vacinas, experimento com remédios. Realmente um tempo de estudo.

E eu aqui, no meu isolamento de dois, estudando e pesquisando outras coisas bem menos importantes mas tão curiosas quanto. Nas minhas conversas por telefone, e-mail, zaps e até mesmo através de máscaras, que por sinal, estranho hábito, tenho de bolinhas, florzinhas, listradas, vermelhas, pretas ou brancas, e até de gatinhos estampado (marca fashion). Ganhei da costureira, das irmãs, do nosso sofisticado padeiro de estimação, gourmet de carteirinha e profissão, comprei e descomprei. Umas me sufocam, outras embaçam meus óculos, já nem estou usando, outras dolorem minhas orelhas tão úteis até na pandemia, outras ainda nem estreei. Posso até combinar com a roupa do dia mas não gosto de conjuntinhos. Só com juntinhos em noites frias.

Voltando ao ponto, que é muito fácil perder-se no caminho das letras e do pensamento, comecei a descobrir hábitos muito estranhos ao dia a dia de muito, muito tempo atrás, antes da pandemia. “Por exemplo coisinha”, uma amiga me contou estar desenvolvendo chulé apesar de todo o cuidado, higiênico e profilático, de desodorantes e cremes, água e sabão. Ela pensa ser por causa do sapato macio e confortável, desses parecendo meinha, que usa sem trégua desde o primeiro dia do isolamento. Dia após dia.
Ela acha... Coitada, o tal atacou a esperteza também.

 Um grupo de engenheiros, colegas de profissão da minha irmã, substituíram o encontro mensal regado a bons vinhos e fino papo pelo encontro virtual. E, lógico, vinho mantido. E confessaram terem abandonado as cuecas. Tiraram até aquele forro furadinho dos calções e bermudas. Vivem agora com o famoso bicho solto. O perigo mora ao lado...
Perguntei ao meu filho se não estava precisando do par de tênis que deixou aqui. E ele me contou que não usa mais sapatos! E mostrou os pés grandões, felizes e esparramados e descalçados. Livres! Depois da pandemia acho que vai calçar 46.

Mulheres aderem ao novo estilo zebra na cabeça criando lista de cabelo branco.
Outras, e me enquadro no grupo, voltaram ao tempo de Beth Friedman e aboliram os sutiãs, essa peça incômoda do nosso vestuário, que ao mesmo tempo protege, insinua e sufoca nossos corpos cansados de guerra. Mas não os queimamos. Estão guardados para época mais feliz e social. Fico pensando o que será de nós com a gravidade agindo sem saber nada de vírus e isolamento. Se os homens estão com o bicho solto estão as mulheres de maminhas ao léu, como dizem os portugas.
Tirando esse hábito comum mas nem por isso menos estranho, de lavar laranjas, abacate e bananas, caixa de aveia e pacote de café, vamos gastando nossas mãos nesse tal de alcongel. Cutícula ressecada e dedos agarradiços.

Agora largo a letra escrita e volto à letra lida. Estou num bom vício com o Dom Quixote e seu escudeiro Sancho. Curiosa com o livro desde os sete anos quando via minha mãe, barriguda do meu irmão, se sacudindo na cama de tanto rir do Cervantes. Bem mais tarde ganhei do Mano uma edição maravilhosamente ilustrada com magníficos desenhos a carvão que venho em vão tentando acabar de ler. Foram já umas três ou quatro tentativas ao longo de uns vinte anos. Agora, vício adquirido na pandemia, vai. Se eu não acabar com o livro, o livro vai acabar comigo!

As crianças, bem, são crianças! Banho dia sim dia não. E os cabelos... nem pensar. Nem sabão nem água nem tesoura. Crianças bem fedidas!
Outras, as menores de quatro ou cinco anos, já falam em não voltar para a escola.
Que estão gostando muito de ficar em casa, mesmo as sempre bem acarinhadas pelos pais.
Concordo com elas!

E assim vou pelo tempo triste em que vivemos. Mas devo confessar que outro dia lati para o cachorro do vizinho, o Edgard. O cachorro, não o vizinho. Também, ele late para mim toda vez que me vê! Queria o quê? Também faço psiu para os gatos, prisioneiros de apartamento, quando vão para a janela tomar um sol. São lindos, lindos. Tem gatinho malhado, preto de olhos verdes e até um cor de rosa.
Ah, tem os gêmeos do apartamento em frente. Mostro para eles um Macaco Juca vermelho e mole e outro que toca “Celebration” e bate os pés. Já me chamam de Vovó dos macacos. As crianças, não os macacos.
Minha amiga Ana já me ofereceu o marido psiquiatra.
E os cabelos continuam a crescer e a crescer...

Tempo de estranhos hábitos.


02/07/2020

Os livros da quarentena

Fotografia de Alexandre Mota - jornal O Tempo



Wilson Baptista Junior
Já devo ter dito aqui que gosto muito de ler.
Meus pais contavam que antes de completar cinco anos eu os surpreendi lendo alto algumas palavras das manchetes do jornal que papai tinha deixado sobre a mesa do café. Não me lembro. Só sei que de lá para cá não parei mais.
Material não faltava. As estantes de papai e mamãe. As estantes do escritório do meu avô materno, a pequena mas escolhida biblioteca do Pandiá Calógeras, o grupo escolar (assim se chamava naquele tempo) onde estudei.
E, começando aí, a estante da nossa pequena biblioteca que fomos montando, eu e meus irmãos, com os livros que ganhávamos, na varanda de cima, envidraçada, da nossa casa. Livrinhos encapados e com ficha onde se registravam os empréstimos e o intercâmbio com a biblioteca de um colega do grupo, o Breno Milton, amigo da vida inteira. Com predominância de Júlio Verne e Edgar Rice Burroughs...
Ao entrar no ginasial, fui apresentado por esse mesmo amigo à biblioteca Thomas Jefferson do ICBEU, ficava no segundo andar de um prédio antigo na esquina em frente do Cine Metrópole, hoje nem ela nem o belo cinema estão mais lá, o cinema, que foi antes o Teatro Municipal de Belo Horizonte, criminosamente derrubado e substituído pelo edifício de um banco.
Essa biblioteca (ainda existe, noutro local, moderna, mas desconheço essa sua nova encarnação) era uma cornucópia de livros e revistas desde  os de iniciação ao idioma inglês até romances e livros de muitos tipos de grande qualidade.
Por essa época me tornei frequentador das livrarias do entorno, o “corredor cultural” de minha cidade naquele tempo, a Itatiaia, a Oliveira Costa, a Oscar Nicolai, e mais tarde, quando o bolso começou a permitir, a livraria do senhor Van Damme, oásis de livros importados onde a cortesia e o vasto conhecimento do proprietário eram um perigo constante para o orçamento dos visitantes. E, de vez em quando, os sebos e seus tesouros escondidos. Um amigo meu, o Henderson, aquele da moeda romana de que falei no post “O Legionário desgostoso”, irmão de dois colegas da Escola de Engenharia e companheiros de caminhadas e montanhas, tinha no quintal da casa da família um barracão completamente cheio de livros garimpados em sebos. Alguns vieram para se juntar aos meus, livros antigos de esgrima, preciosidades na época fora de catálogo.
Na Escola, a biblioteca no velho prédio da Praça da Estação, de que já escrevi alguma coisa aqui, onde o acervo ia muito além dos livros técnicos. Devo ter passado quase tanto tempo nela quanto nas salas de aula.
Quando nos casamos e viemos morar aqui achei que o espaço do apartamento era amplo. Quase cinquenta anos depois, abençoado ao longo de todo esse tempo com uma mulher que também gosta de ler e é artista já não há aqui, literalmente, lugar para mais nenhum livro. Para não falar nos que vão e vêm de nossos filhos. Todos eles lidos por pelo menos uma vez, muitos por mais vezes.
Faz muito tempo que praticamente parei de comprar livros. Porque realmente não temos onde colocar mais. Fora as vezes em que doamos caixas e caixas para a biblioteca da Igreja do Carmo, e os muitos que foram ficando nas mãos de amigos (diga-se, a bem da verdade, que muitos foram e ficaram por lá, mas alguns vieram e ficaram por aqui também). E como desde garoto nunca consegui dormir sem ler (tempos houve em que lia em um ou dos dias um livro inteiro antes de dormir) muitas noites parava na frente das estantes procurando alguma coisa para ler de novo. Mas as estantes do meu escritório têm camadas de livros, então encontrar os desejados muitas vezes é um trabalho de arqueologia. Por exemplo, estamos seguindo agora uma série de televisão chamada “O Homem do Castelo Alto”, baseada no livro homônimo de Philip K. Dick, um dos grandes da ficção científica (entre muitas outras coisas, escreveu a história em que Ridley Scott se baseou para filmar “Blade Runner”). E como a história foi muito modificada para encompridar a série, estou querendo reler o livro original que li lá vão quase cinquenta anos. Pode ser até que esteja na estante às minhas costas. Mas talvez demore mais e dê mais trabalho encontrá-lo por aqui do que encomendar outro na Amazon. Só que quero a edição em português, porque não serei só eu quem vai ler, e já sei que a que está à venda não é mais a boa tradução que li de Sylvia Escorel. Posso estar sendo injusto com o novo tradutor, mas tenho, com alguma razão, bastante medo dessas traduções mais novas, principalmente das que são feitas quando as obras viram filmes e voltam à moda. Então, o jeito é procurar mais fundo. E, se não encontrar, recorrer, quem sabe, à Estante Virtual, aquele maravilhoso agrupamento de sebos Brasil afora.
No meu aniversário do ano passado, ganhei um Kindle, presente muito apreciado de uma das irmãs da Ana, e com isso o livro digital, até então incômodo de ler no computador ou no iPad, transformou-se de repente numa coisa prática, portátil. Que nos deixa levar uma biblioteca inteira no bolso e escolher o que ler a qualquer tempo em que tenhamos que esperar alguma coisa. E, last but not least, a mágica de ver chegar às nossas mãos o livro escolhido segundos depois de decidida a compra.
Comecei então a buscar as velhas obras amigas que andavam só pela memória, impedidas de morar nas estantes, a recompor meus Júlio Verne, Conan Doyle, Dumas pai e Dumas filho da adolescência, e a completar tanta coisa boa de tanta gente de que eu só conhecia um pouco, porque descobri que nesse formato se encontram maravilhosas coleções dos grandes autores a preços incrivelmente baixos. E, para mal dos meus pecados, visitei um site chamado “The Fussy Librarian”, onde você conta de que tipo de livros gosta e ele te oferece, todo dia, um punhado de livros digitais de graça ou a pouco mais do que isso, junto de outros a preços normais. É feito para popularizar autores novos, mas no meio deles vem muita coisa interessante. E agora, por mais que escolha com cuidado, tenho muitas centenas de livros que ainda não li, coisa que nunca me aconteceu antes na vida. Levo no bolso livros que provavelmente nunca conseguirei ter tempo de ler. Um pensamento que me faz cair na real sobre os dias, meses ou anos que me restam...
Mas toda essa cantilena aí para trás foi para dizer mais uma vez que gosto muito de ler. E que o livro, para mim, é uma coisa viva, algo que guarda nas suas páginas um pouco da alma do autor. E por isso fiquei horrorizado quando, outro dia mesmo, passando com a Ana de carro numa esquina perto cá de casa, vimos pilhas de livros queimados no passeio onde um conhecido meu de longa data, de quem falei aqui não faz tanto tempo, tinha sua livraria de rua.
Sim, o senhor Odilon, aquele do meu post “O nosso bouquinista”, foi vítima de um criminoso que, na calada da noite, sabe se lá por que, ateou fogo aos quase cinco mil livros que ele mantinha e vendia com carinho debaixo da marquise de uma grande papelaria.
O que teria impulsionado alguém a fazer uma coisa dessas, tão sem sentido? Ninguém sabe ainda. As câmaras de segurança da papelaria registraram a maldade, mas ainda não se conseguiu identificar o culpado.
A notícia do acontecido chocou muita gente. Mas, graças a Deus, gente boa como o Odilon tem amigos. Que imediatamente espalharam a revolta com a notícia nas redes sociais, pedindo ajuda. A televisão e os jornais noticiaram. E, três dias depois, os cinco mil livros perdidos se haviam transformado em mais de dez mil livros ganhos. Entregues na sua mão por centenas de pessoas. Algumas das quais, talvez, não tivessem sido seus clientes. Mas que certamente quando passarem por ali nos dias que virão pararão, olharão as pilhas de livros, e talvez levem alguns para casa.
Foi triste, sim, ver o crime, mas fez muito bem à alma ver a reação das pessoas. Coisas assim alimentam a nossa esperança de dias melhores.

Se alguém se interessar e quiser ler o post original que escrevi sobre o senhor Odilon, está aqui:
Quem não tiver lido e quiser ler o post “O Legionário desgostoso”, de que falei lá atrás, está aqui:
E a reportagem do jornal “O Tempo”, de onde tomei a liberdade de pegar a fotografia que abre o post, porque devido ao nosso isolamento não pude voltar lá para fotografar, está aqui: