Wilson Baptista Junior
Outro dia comecei a reler o “À la recherche du temps perdu”, de Proust. Reler é um
modo de dizer – há bem uns quarenta anos tinha lido a primeira parte, “Du coté
de chez Swann”, numa edição em português publicada, em volumes separados, não
me lembro mais por qual editora. Na época, era uma edição cara, e necessidades
mais prosaicas, se bem que não menos importantes, me obrigaram a não continuar
comprando a obra além desse primeiro volume.
Agora,
graças à maravilha do Kindle, comprei a preço de quase nada a edição inteira no
original francês. E, tanto tempo depois e pela leitura do escrito original (sem
desfazer em nada do trabalho do tradutor da outra edição), embora ainda esteja
na mesma primeira parte é como se estivesse lendo um livro novo para mim.
(Escrever
isso me fez lembrar uma história contada sobre Mark Twain, quem, sendo
apresentado numa festa a um cavalheiro inglês, ficou espantado ao ouvi-lo dizer
“Eu pagaria de bom grado cem dólares para
não ter lido o seu livro As Aventuras de Huckleberry Finn...” – e já estava
fechando a cara quando o inglês completou – “Só
para poder ter o prazer de lê-lo de novo pela primeira vez!”... Mesmo sabendo,
hoje, como é bom ir descobrindo coisas novas a cada vez que, com alguns anos de
intervalo, se torna a ler um bom livro, sempre achei que esse é um elogio que
qualquer escritor gostaria de receber).
Mas não é do
livro que quero falar – porque ainda falta muito para chegar ao final e nessa
altura seria presunção demais de minha parte resenhar ou fazer crítica da obra
prima do Proust – é de alguma coisa que a leitura provocou em mim.
Logo nas
primeiras páginas, o narrador descreve o que acontece com ele ao acordar, tendo
adormecido enquanto lia algum livro (e eu rarissimamente consigo dormir
sem estar lendo alguma coisa, e em geral muito tarde) – acorda sem perceber que
tinha dormido, imaginando confusamente que precisava apagar a lâmpada de
cabeceira e dormir, mas enquanto dormia seu cérebro tinha continuado a elaborar
aquilo que tinha lido, e durante alguns segundos ainda pensava que estava
vivendo aquilo de que o livro falava, até que pouco a pouco o peso se levantava
de suas pálpebras e percebia que a lâmpada estava apagada; então percebia a
escuridão à sua volta e acendia um fósforo para olhar o relógio, descobrir que
ainda não era a hora de acordar e adormecer de novo.
Diz ele: ”Um homem que dorme mantém em volta de si o
fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Instintivamente os consulta ao
acordar, e neles lê, num segundo, o ponto da terra que ocupa, o tempo que se
passou até seu despertar; mas suas fileiras podem se misturar, se romper.”
E, de fato, quando adormecia numa hora inusitada, num lugar diferente, ao
acordar podia se perceber, por instantes, em outro tempo e em outro lugar.
Esse começo
já me falou de perto, durante muitos anos da minha vida meu trabalho me levou a
viajar muito e muito frequentemente. Acordando a cada vez num novo quarto e uma
nova cama num lugar diferente, às vezes conhecido, às vezes desconhecido, e tantas
vezes me senti como o autor nessas palavras, rompido por instantes o fio do
tempo e de quem eu era e do meu lugar no mundo, o espírito ainda perdido num
sonho qualquer, a mão procurando a lâmpada que não sabia bem onde estava, até
que o mundo entrava pela janela trazido pela luz do sol e meu espírito voltava
ao meu corpo e o fazia lembrar de quem eu devia ser, do que eu tinha ido fazer
e em que língua devia falar.
Não há como
resumir, explicar ou recontar página alguma desse livro, é preciso se perder
dentro dos seus longuíssimos parágrafos (porque o escritor era singularmente avaro
no gasto dos seus pontos finais) deixar que suas palavras nos levem de volta à ingenuidade
de nossa infância sem perdermos nossos olhos de adultos (conjunção difícil, bem
sei) enquanto vamos vivendo junto com o narrador as vidas dos personagens que
nos circundam.
Lembranças
de criança vivendo em casa de avó, na cidadezinha de Combray – também tive as
minhas, fui criado na casa de meus pais onde viviam conosco a avó e tia avó
paternas, se bem que essa muito diferente da do livro, e passava pequenas
férias na casa dos avós e tias maternas – e quando se fala de lembrança muita
gente mesmo sem ter lido o livro já ouviu falar da “madeleine” do Proust –
aquele maravilhoso biscoitinho de limão em forma de concha de vieira, que um
dia, em Paris, a mãe do narrador lhe oferece,
passados muitos anos de sua infância, junto com uma chávena de chá, e ao molhar
o biscoitinho no chá e sentir seu sabor na língua ele se transfigura – em suas
palavras: “um prazer delicioso me
invadiu, me isolou, sem que tivesse noção do porquê. Esse prazer num instante
me tornou as vicissitudes da vida indiferentes, seus desastres inofensivos, sua
brevidade ilusória, do mesmo modo que faz o amor, me preenchendo de uma
essência preciosa: ou, mais ainda, essa essência não estava em mim, ela era eu
próprio”. E o narrador tenta descobrir o que era esse sentimento, e termina
por sentir que a verdade que procurava não estava no gosto da madeleine, mas
nele próprio. E depois de uma longa introspecção, de repente a claridade se faz
e ele percebe que aquele era o gosto do bocadinho de madeleine que uma tia sua
costumava lhe oferecer, molhado na infusão de tílias que gostava de tomar, aos
domingos de manhã, na casa de Combray. E aí lhe volta uma profusão de
lembranças que julgava esquecidas.
Quem de nós
não teve algum dia a sua ou as suas madeleines? Uma das minhas foi o gosto de
um pudim de leite condensado denso e dourado como o da minha mãe, que me levou
de volta à mesa de almoço da casa onde nasci, e aos rostos de meus pais do
outro lado da mesa que meus olhos de criança julgavam que estariam sempre lá, e
fez ficarem úmidos os olhos do adulto; outra, há muitos anos, viajando de carro
com a Ana ao meu lado e Pedro e Maneco, ainda pequenos, no banco de trás, foi
uma golada d’água morna de um antigo cantil meu de alumínio coberto de feltro,
aquele gosto de cantil que só conhece quem já carregou um debaixo do sol, e que
me jogou de volta aos tempos de estudante, tendo na frente dos olhos o mar de nuvens
iluminado pelo céu azul e batido pelo vento forte do alto dos dezoito
quilômetros de subida a pé, mochila e barraca nas costas, de Caparaó Velho até
o Pico da Bandeira, e à frente da alma toda a maravilha de uma vida que ainda
estava por vir.
Há muita
coisa nova para se ler, e cada vez me sobra menos tempo pela frente, mas de vez
em quando é muito bom fazer uma pausa e voltar a esses grandes livros. Se eles
ainda nos agradam tanto é porque quem os escreveu soube dizer coisas que continuam
a tocar nossas almas através do tempo.