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Wilson
Baptista Junior
Nos meus tempos de escola de engenharia, eu tinha um amigo (digo tinha
porque com o passar dos anos acabei infelizmente perdendo contato com ele), irmão
poucos anos mais velho de dois colegas meus de curso e de escaladas, que
gostava de colecionar coisas antigas.
Morava numa casa do bairro então tranquilo do Santo Antônio, com a mãe, os dois irmãos e
a irmã. Na sala da frente havia uma estante cheia de coisas interessantes,
entre as quais um antigo relógio de sol de bolso, o primeiro que eu vi, nem
sabia que existia, um trabalho lindo da fábrica Casella, do final do século
dezoito ou começo do século dezenove, era uma caixinha redonda de ébano,
parecida com um antigo relógio de bolso daqueles de nossos avós, que quando se
abria revelava um mostrador giratório de marfim montado em cima da agulha de
uma bússola, com um gnomon finíssimo que se levantava com uma molinha. Em
qualquer lugar que você estivesse, bastava abrir a caixinha e esperar que a
agulha se estabilizasse e pronto, se houvesse sol você ficava sabendo as
horas...
No barracão do fundo, centenas e centenas de livros antigos, garimpados
em sebos, herdados ou ganhos de presente, uma verdadeira caverna de tesouros.
Um dia esse meu amigo me telefonou e me disse que tinha uma coisa
interessante para me mostrar e queria minha opinião. Peguei o velho jipe verde
sem capota, fiel companheiro de aventuras, fui até sua casa, e ele me contou
que um conhecido da família dele, operador de máquinas de terraplenagem, estava
fazendo um trabalho no lugar conhecido por Olhos D’Água, na saída da estrada
para o Rio, que então se chamava BR-3, a mesma BR-3 da canção daquele tempo do
Tony Tornado –
“A gente vive, a gente morre, na
BR Três...”
e esse conhecido tinha achado, a dois ou três metros de profundidade na
escavação que estava fazendo no terreno, um pedaço de metal escuro e enferrujado
que parecia muito velho. Sabendo do interesse do meu amigo, deu o artefato para
ele.
Examinamos o objeto e percebemos que debaixo da terra e da sujeira era mesmo de metal, e parecia muito antigo. Fomos para minha casa e, na oficina de meu
pai, lavamos a terra superficial e, com ferramentas de joalheiro, com muito
cuidado removemos a crosta que se tinha formado. E encontramos em baixo... um
sestércio romano, antiga moeda em liga de latão, que os romanos chamavam de
orichalcum.
Com a ajuda da Encyclopaedia Britannica conseguimos identificar a figura
do imperador gravada nele, o que nos deu a data aproximada, um ou dois séculos
antes de Cristo. Hoje, perto de meio século depois, não me lembro mais da data
nem de quem era o imperador, a moeda era do meu amigo e ficou com ele.
No dia seguinte, na escola, confirmamos nossa identificação com uma
pesquisa mais aprofundada na biblioteca, com a ajuda do nosso amigo "Seu" Geraldo, auxiliar de bibliotecário.
O "Seu" Geraldo era uma figura interessantíssima, um senhor ainda
novo apaixonado por livros e que passava a vida feliz, mergulhado no meio deles. Os alunos
costumavam brincar que qualquer assunto que se perguntasse a ele responderia
com – prateleira tal, livro tal, e, muitas vezes, capítulo tal. E estava sempre pronto a ter uma boa conversa com quem estivesse na biblioteca.
A biblioteca da escola, como muita coisa vinha das bibliotecas de
antigos engenheiros cujos herdeiros às vezes doavam suas bibliotecas inteiras,
tinha livros sobre uma multiplicidade de assuntos muito além da engenharia.
Então a formação do nosso amigo era muito mais ampla do que se poderia
esperar.
A sua glória pessoal era uma vez ter encontrado um erro em um verbete na
Britannica, ter escrito para lá e ter recebido uma carta de agradecimento, que
guardava preciosamente, dos editores ingleses.
A notícia da descoberta da moeda, propagada por ele, causou um certo
reboliço na escola.
Levamos o sestércio ao pessoal que trabalhava no reator nuclear, e eles
realizaram alguns testes que, pelos elementos residuais no metal, confirmaram
que deveria muito provavelmente ter sido fundida num cadinho empregado para a
fundição de moedas na época, de cobre, prata e ouro.
A única coisa que nunca pudemos descobrir foi como a moeda foi parar
naquele local e naquela profundidade. Certamente tinha sido perdida por alguém,
muito tempo atrás.
Então, quando contávamos a história a alguém, terminávamos dizendo que uns dois mil anos atrás uma galera romana tinha se extraviado e naufragado nas
costas do Brasil, e um legionário sobrevivente chegou até a Serra do Curral. Cansado, sedento, assentou-se para descansar na encosta do morro, olhou para baixo e resmungou:
“Por Júpiter, se eu tivesse chegado dois
mil anos mais tarde poderia descer até Belo Horizonte e comprar dois sextários
de vinho...” (pouco mais de um litro de hoje, que era
mais ou menos o que se comprava com um sestércio), “mas agora de nada me serve isso”.
Levantou-se, desgostoso, jogou a moeda no chão, virou as costas e se
foi.
Olá Wilson. Imagino o momento da descoberta de vocês dois na oficina de seu pai, os olhos brilhando de curiosidade para descobrirem o que a sujeira da terra envolvia. No colégio a sensação da novidade também deve ter contagiado a todos, inclusive o sr. Geraldo. Mas a maravilha mesmo foi a conclusão da descoberta contada por vocês aos amigos e hoje a nós, por você. Sabe ? Eu acredito nesse legionário...nada é impossível ! Quem sabe ? Abraços
ResponderExcluirDulce, concordo com você, nada é impossível, e a história ficou melhor de contar :) E a sensação da descoberta é sempre muito boa.
ExcluirUm abraço do
Mano
Wilson,
ResponderExcluirGrande post! Que muitas outras histórias que ainda não foram escritas possam ser escavadas do solo das Gerais que,enquanto não se descobre nada mais antigo lá pela Serra da Capivara, continua sendo o berço da primeira mãe sul-americana, a Luzia mineira da Lagoa Santa.(rsrs)
Gostei por demais do seu artigo porque , numa boa conversa, uma história leva a outra.Então peço licença para contar que, na minha meninice - joga na conta meio século pelo menos! - em vez de por um legionário deprimido, fui visitado por um índio misterioso e fumante, provavelmente da tribo dos caetés.
Explico: nas férias em Pernambuco, os adultos levavam a criançada para fazer piqueniques, geralmente em praias bonita e fora da cidade. Era uma operação farofeira de guerra: se levava comida e bebida e barracas e cadeiras e mantas e caixa de primeiros socorros para a tropa de 16 netos peraltas. Dois lugares eram os points de então: a Praia de Tamandaré e a Ilha de Itamaracá. Em ambas moravam fortes completamente abandonados onde costumávamos brincar de faroeste. Um belo dia, do nada , um dos primos se deparou com os restos de uma bala de canhão perto do muro do Forte de Tamandaré . Aí começamos a brincar de arqueologia. Nosso avô resolveu patrocinar futuras farras cedendo-nos uma pá e algumas peneiras e os braços fortes do grande Dui,filho do "cumpadre" Maurício, o faz tudo na casa da minha infância. O Dui cavava rápido e nós peneirávamos e achávamos de tudo além de balas redondas de todos os tamanhos : fragmentos de faianças , moedas antigas, cacos de vidros iridescentes e pedaços de cachimbos. E então eu fiz uma descoberta histórica: um cachimbo de barro sem cabo mas decorado por uma flor de lis. Imaginei quem teria sido o índio dono do objeto da cor de argila muito clara , se tinha estado dentro do forte ou do lado de fora, se havia lutado ao lado dos portugueses ou apoiado os holandeses e por quais cargas d'água ele teria decorado o seu cachimbo com aquele símbolo da França em vermelho.
E foi então que alguém já farto dos meus porquês me falou da ilha de Santo Aleixo , não muito distante dali , onde teria acontecido a primeira das muitas invasões francesas na costa nordestina.Era da ilha ocupada por muito tempo ,que os piratas franceses partiam para saquear o litoral. Fiquei satisfeito com a lógica explicação e parei de questionar e tinha esquecido completamente do cachimbo até ler sobre o sestércio do seu amigo, o legionário desgostoso. Valeu!
Abração
Moacir, sua história também foi muito boa, você então conhece bem a sensação que nós tivemos. Minas ainda vai ter muita coisa que contribuir do passado, se as mineradoras não destruirem tudo antes...
ExcluirOi Moacir. Descobri de onde veio a inspiração para o desenho da Luna. Rsrsrs. Só achei que a resposta que lhe deram não foi muito convincente, eu continuaria perguntando . Abraços
ExcluirMano Wilson,
ResponderExcluira cabeça pegou no tranco com a palavra sestércio. Fui encontrá-la, a palavra, nas histórias daqueles livros em quadrinhos e bem coloridos de Asterix e Obelix.
Como eu adorava essas histórias!
Gauleses e seus medos de que o céu lhes caísse sobre a cabeça, vencedores de sempre na pancadaria graças à poção mágica do druida, que os fazia fortes, capazes de derrotarem exércitos inimigos, sempre feitos de bobos.
Comercializavam em sestércios, lembro bem e com saudade desse tempo.
Um dos autores morreu, acho que não foi o Uderzo, mas o outro, Goscinny(?), que já não sei como se escreve e não procurei saber.
E a parceria tão bem aceita e celebrada ruiu. Os livros acabaram.
Todo o resto é assim, um dia acaba, todos sabemos.
Valeu sua lembrança ter desencavado a minha.
Acho que fatos e épocas felizes chegam mais facilmente à consciência. Ninguém quer adicionar infelicidade à vida, não é mesmo?
Abraço
Ofelia
Ofélia, eu também adorava as histórias. Como todo o mundo que eu conheço. Eram maravilhosas.
ExcluirElas não acabaram, depois da morte do Goscinny (que escrevia) o Uderzo (que desenhava) continuou a publicar. Só que ele é um desenhista fabuloso mas não tem a verve do Goscinny para escrever, então as histórias novas não são tão boas. Mas ainda são divertidas.
É melhor lembrar das coisas felizes do que das infelizes, você tem toda a razão.
Um abraço do
Mano
1)Mano, suas memórias ativaram as minhas: tesouros nunca encontramos, a patota da adolescência andava lá por aqueles cerrados do Gama, DF, em busca de cavernas e mistérios.
ResponderExcluir2)Tem uma história esotérica que no Brasil Central existem cavernas que se ligam ao distante Tibet, nunca encontramos.
3)Belo dia um amigo aprendeu que o grande barato era a Serra do Roncador, MT. Os índios xavantes guarneciam essas entradas das cavernas, eles sabiam os segredos dos budistas tibetanos.
4)Esse amigo formou-se em arquitetura, foi pra lá, mora por lá, constituiu família por lá,trabalha por lá, vez por outra aparece no Rio para reencontros e relembranças.
5) As cavernas foram um mito que alimentamos na adolescência.
Antonio, também entrei em uma ou duas cavernas, e um de meus filhos no tempo da universidade fez parte de um grupo de espeleólogos, eles levavam a coisa a sério, mapearam muitas, inclusive uma na Bahia que tinha mais de trinta e cinco quilômetros de corredores (ele não vai mais mas o grupo continua trabalhando nela, devem ter ido mais longe). No Sul de Minas o pessoal diz que tem uma entrada que vai até Macchu Picchu, mas também nunca encontraram. Essas aí só nas histórias do Júlio Verne :)
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