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02/07/2020

Os livros da quarentena

Fotografia de Alexandre Mota - jornal O Tempo



Wilson Baptista Junior
Já devo ter dito aqui que gosto muito de ler.
Meus pais contavam que antes de completar cinco anos eu os surpreendi lendo alto algumas palavras das manchetes do jornal que papai tinha deixado sobre a mesa do café. Não me lembro. Só sei que de lá para cá não parei mais.
Material não faltava. As estantes de papai e mamãe. As estantes do escritório do meu avô materno, a pequena mas escolhida biblioteca do Pandiá Calógeras, o grupo escolar (assim se chamava naquele tempo) onde estudei.
E, começando aí, a estante da nossa pequena biblioteca que fomos montando, eu e meus irmãos, com os livros que ganhávamos, na varanda de cima, envidraçada, da nossa casa. Livrinhos encapados e com ficha onde se registravam os empréstimos e o intercâmbio com a biblioteca de um colega do grupo, o Breno Milton, amigo da vida inteira. Com predominância de Júlio Verne e Edgar Rice Burroughs...
Ao entrar no ginasial, fui apresentado por esse mesmo amigo à biblioteca Thomas Jefferson do ICBEU, ficava no segundo andar de um prédio antigo na esquina em frente do Cine Metrópole, hoje nem ela nem o belo cinema estão mais lá, o cinema, que foi antes o Teatro Municipal de Belo Horizonte, criminosamente derrubado e substituído pelo edifício de um banco.
Essa biblioteca (ainda existe, noutro local, moderna, mas desconheço essa sua nova encarnação) era uma cornucópia de livros e revistas desde  os de iniciação ao idioma inglês até romances e livros de muitos tipos de grande qualidade.
Por essa época me tornei frequentador das livrarias do entorno, o “corredor cultural” de minha cidade naquele tempo, a Itatiaia, a Oliveira Costa, a Oscar Nicolai, e mais tarde, quando o bolso começou a permitir, a livraria do senhor Van Damme, oásis de livros importados onde a cortesia e o vasto conhecimento do proprietário eram um perigo constante para o orçamento dos visitantes. E, de vez em quando, os sebos e seus tesouros escondidos. Um amigo meu, o Henderson, aquele da moeda romana de que falei no post “O Legionário desgostoso”, irmão de dois colegas da Escola de Engenharia e companheiros de caminhadas e montanhas, tinha no quintal da casa da família um barracão completamente cheio de livros garimpados em sebos. Alguns vieram para se juntar aos meus, livros antigos de esgrima, preciosidades na época fora de catálogo.
Na Escola, a biblioteca no velho prédio da Praça da Estação, de que já escrevi alguma coisa aqui, onde o acervo ia muito além dos livros técnicos. Devo ter passado quase tanto tempo nela quanto nas salas de aula.
Quando nos casamos e viemos morar aqui achei que o espaço do apartamento era amplo. Quase cinquenta anos depois, abençoado ao longo de todo esse tempo com uma mulher que também gosta de ler e é artista já não há aqui, literalmente, lugar para mais nenhum livro. Para não falar nos que vão e vêm de nossos filhos. Todos eles lidos por pelo menos uma vez, muitos por mais vezes.
Faz muito tempo que praticamente parei de comprar livros. Porque realmente não temos onde colocar mais. Fora as vezes em que doamos caixas e caixas para a biblioteca da Igreja do Carmo, e os muitos que foram ficando nas mãos de amigos (diga-se, a bem da verdade, que muitos foram e ficaram por lá, mas alguns vieram e ficaram por aqui também). E como desde garoto nunca consegui dormir sem ler (tempos houve em que lia em um ou dos dias um livro inteiro antes de dormir) muitas noites parava na frente das estantes procurando alguma coisa para ler de novo. Mas as estantes do meu escritório têm camadas de livros, então encontrar os desejados muitas vezes é um trabalho de arqueologia. Por exemplo, estamos seguindo agora uma série de televisão chamada “O Homem do Castelo Alto”, baseada no livro homônimo de Philip K. Dick, um dos grandes da ficção científica (entre muitas outras coisas, escreveu a história em que Ridley Scott se baseou para filmar “Blade Runner”). E como a história foi muito modificada para encompridar a série, estou querendo reler o livro original que li lá vão quase cinquenta anos. Pode ser até que esteja na estante às minhas costas. Mas talvez demore mais e dê mais trabalho encontrá-lo por aqui do que encomendar outro na Amazon. Só que quero a edição em português, porque não serei só eu quem vai ler, e já sei que a que está à venda não é mais a boa tradução que li de Sylvia Escorel. Posso estar sendo injusto com o novo tradutor, mas tenho, com alguma razão, bastante medo dessas traduções mais novas, principalmente das que são feitas quando as obras viram filmes e voltam à moda. Então, o jeito é procurar mais fundo. E, se não encontrar, recorrer, quem sabe, à Estante Virtual, aquele maravilhoso agrupamento de sebos Brasil afora.
No meu aniversário do ano passado, ganhei um Kindle, presente muito apreciado de uma das irmãs da Ana, e com isso o livro digital, até então incômodo de ler no computador ou no iPad, transformou-se de repente numa coisa prática, portátil. Que nos deixa levar uma biblioteca inteira no bolso e escolher o que ler a qualquer tempo em que tenhamos que esperar alguma coisa. E, last but not least, a mágica de ver chegar às nossas mãos o livro escolhido segundos depois de decidida a compra.
Comecei então a buscar as velhas obras amigas que andavam só pela memória, impedidas de morar nas estantes, a recompor meus Júlio Verne, Conan Doyle, Dumas pai e Dumas filho da adolescência, e a completar tanta coisa boa de tanta gente de que eu só conhecia um pouco, porque descobri que nesse formato se encontram maravilhosas coleções dos grandes autores a preços incrivelmente baixos. E, para mal dos meus pecados, visitei um site chamado “The Fussy Librarian”, onde você conta de que tipo de livros gosta e ele te oferece, todo dia, um punhado de livros digitais de graça ou a pouco mais do que isso, junto de outros a preços normais. É feito para popularizar autores novos, mas no meio deles vem muita coisa interessante. E agora, por mais que escolha com cuidado, tenho muitas centenas de livros que ainda não li, coisa que nunca me aconteceu antes na vida. Levo no bolso livros que provavelmente nunca conseguirei ter tempo de ler. Um pensamento que me faz cair na real sobre os dias, meses ou anos que me restam...
Mas toda essa cantilena aí para trás foi para dizer mais uma vez que gosto muito de ler. E que o livro, para mim, é uma coisa viva, algo que guarda nas suas páginas um pouco da alma do autor. E por isso fiquei horrorizado quando, outro dia mesmo, passando com a Ana de carro numa esquina perto cá de casa, vimos pilhas de livros queimados no passeio onde um conhecido meu de longa data, de quem falei aqui não faz tanto tempo, tinha sua livraria de rua.
Sim, o senhor Odilon, aquele do meu post “O nosso bouquinista”, foi vítima de um criminoso que, na calada da noite, sabe se lá por que, ateou fogo aos quase cinco mil livros que ele mantinha e vendia com carinho debaixo da marquise de uma grande papelaria.
O que teria impulsionado alguém a fazer uma coisa dessas, tão sem sentido? Ninguém sabe ainda. As câmaras de segurança da papelaria registraram a maldade, mas ainda não se conseguiu identificar o culpado.
A notícia do acontecido chocou muita gente. Mas, graças a Deus, gente boa como o Odilon tem amigos. Que imediatamente espalharam a revolta com a notícia nas redes sociais, pedindo ajuda. A televisão e os jornais noticiaram. E, três dias depois, os cinco mil livros perdidos se haviam transformado em mais de dez mil livros ganhos. Entregues na sua mão por centenas de pessoas. Algumas das quais, talvez, não tivessem sido seus clientes. Mas que certamente quando passarem por ali nos dias que virão pararão, olharão as pilhas de livros, e talvez levem alguns para casa.
Foi triste, sim, ver o crime, mas fez muito bem à alma ver a reação das pessoas. Coisas assim alimentam a nossa esperança de dias melhores.

Se alguém se interessar e quiser ler o post original que escrevi sobre o senhor Odilon, está aqui:
Quem não tiver lido e quiser ler o post “O Legionário desgostoso”, de que falei lá atrás, está aqui:
E a reportagem do jornal “O Tempo”, de onde tomei a liberdade de pegar a fotografia que abre o post, porque devido ao nosso isolamento não pude voltar lá para fotografar, está aqui:

8 comentários:

  1. Francisco Bendl03/07/2020, 18:46

    Falar sobre livros é sempre uma enorme satisfação.
    Mesmo quem não possui o hábito da leitura, aprecia a conversa sobre autores e suas obras magníficas, extraordinárias, indeléveis.
    Também sou como tu, Mano, gosto muito de ler.

    No entanto, a minha literatura preferida é sobre a História, principalmente as sobre as duas Grandes Guerras Mundiais, onde possuo mais de mil livros especificamente sobre esses dois maiores conflitos da humanidade.

    Algumas obras são mesmo incomparáveis, caso uma pessoa queira saber um pouco a respeito, mas precisa ter consigo um mapa para poder se situar no tempo e no espaço dos acontecimentos.

    Por exemplo:
    A batalha de Galípoli, na Primeira Guerra, desenvolveu-se no Estreito de Dardanelos (?!), na Trácia Oriental, noroeste da Turquia.
    Dificilmente se saberá esse local, se um mapa não auxiliar na sua localização.
    Outra batalha que ceifou a vida de quase um milhão de soldados dos dois lados, igualmente na Primeira Guerra foi a de Ypres, no Flandres Ocidental, na Bélgica.

    Enfim, ler é viajar. Claro, a mente nos conduz para cidades, países os mais distantes possíveis, desertos, ilhas, paraísos terrestres.
    Além de nos informar e distrair, nos ensinam, acrescentam conhecimentos, nos tornam cultos.

    Justamente por tantos benefícios que os livros nos proporcionam, imagino a tristeza dos clientes do rapaz que vende livros, e que já foi personagem de uma das tuas crônicas, ao tê-los visto queimando por um ato de insanidade.
    Mas, depois da chuva a bonança, como dizem, não só os recuperou com doações como aumentou o seu acervo de ofertas à clientela.

    Livro é bom. É companhia. Nos faz pensar, meditar, refletir, emocionar, sentir, uma legítima máquina do tempo.

    Admiro, em consequência, seus autores.
    Quanto raciocínio, quanta imaginação, que capacidade de enredos, de contar histórias, de romances, de tragédias, policiais, infantis, adultos, poesias, contos, crônicas, sagas, odisseias, aventuras, situações inusitadas, mistérios, terror, suspense, histórias de fadas, de duendes, ficção, futurística, referente ao passado, dramas ... uma série interminável de motivos e razões para se escrever, criar, produzir.

    Muitos se tornaram os grandes clássicos, que seriam livros que teríamos a obrigação de ler.
    Não dá. Tanto pelo tempo exigido quanto pelo valor de um livro hoje em dia.
    Resta-nos os sebos, onde podemos encontrar alguns exemplares que estão esgotados nas editoras, e coleções raras, que ainda se pode adquirir.

    Tenho perto de 1.500 livros.
    Seguidamente eu os troco de lugar, manuseio-os, limpo-os, recordo-me do que li, do que aproveitei, do que não gostei, detestei ou muito apreciei.
    E me transporto para o tempo que eu os li. De como eu estava de espírito, de situação financeira, como casado, pai, até mesmo quando solteiro, pois uns e outros me acompanham há cinquenta e tantos anos!
    Há uma espécie de cumplicidade entre mim e alguns exemplares, livros que, se eu pudesse, eu gostaria de decorá-los.

    Parabéns, Wilson, pela crônica.
    Deliciosa, interessante, agradável, um assunto excelente para comentarmos.
    E sem pontos de vista diferentes, sem debates, sem opiniões favoráveis ou contrárias ao tema que escolheste.

    Um forte abraço.
    Muita saúde e paz, extensivo aos teus amados.
    Te cuida, meu, incluindo a tua amada família!



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    1. Wilson Baptista Junior06/07/2020, 19:26

      Chicão, disseste bem. Ler é viajar. Na geografia do mundo e na geografia da alma. Dos autores e, se eles são bons,na da nossa. São esses que nos despertam essa por ti tão bem denominada cumplicidade que nos faz trazer sua essência para dentro da alma e da memória. Que nos faz reviver tanta coisa apenas por olhar para eles e reconhecer suas lombadas. Nisso, por melhores que sejam, nunca os que estão dentro dos nossos Kindles poderão competir com os que estão nas nossas estantes. A não ser, às vezes, pela alegria de reencontrar dentro deles os velhos amigos que já não sabemos mais para onde foram. Um reencontro que seria tão bom de poder ter, também, com os velhos amigos e amigas de carne e osso que já se foram para nos esperar, talvez, nalgum lugar para onde, quem sabe, talvez iremos também quando chegar nossa vez...
      Te cuida, também, na casa nova.
      Um abraço do Mano

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  2. Léa Mello Silva03/07/2020, 20:09

    Muito boa a solidariedade com o Odilon na Savassi e todos ficaram chocados com a queima dos livros
    Quanta maldade !
    E eu gostei de conhecer sua história, Mano,com os livros
    Uma infância muito rica com boas leituras
    Um abraço desejando que sempre ache ótimos livros

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    1. Wilson Baptista Junior06/07/2020, 19:25

      Prima Léa, que bom que você gostou. E que bom que tanta gente correu em ajuda do Odilon. Faz bem à alma da gente ver isso.
      Um abraço do Mano

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  3. 1) Boa reportagem Wilson, parabéns !

    2) Quanta perversidade ao queimarem o livro do sebo da calçada.

    3) Bela demonstração de humanismo aos que se cotizaram para ajudar o livreiro.

    4)Boas Proteções para o Sr. Odilon.

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    1. Wilson Baptista Junior06/07/2020, 19:24

      Mestre Antonio, obrigado. Realmente foi uma perversidade cuja motivação é difícil de imaginar. Mas graças a Deus os amigos não se esqueceram do bom livreiro. Que certamente agradecerá as Boas Proteções que você, com seu prestígio lá do outro lado, lhes deseja.
      Um abraço do Mano

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  4. Flávio José Bortolotto06/07/2020, 21:25

    Prezado Autor Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR,

    Seu belo Artigo "Os Livros da quarentena" é um hino de amor a Leitura.
    Sua curiosidade intelectual é muito grande e o campo de Vossa Leitura, muito vasto.
    Felizes somos nós que temos como Editor-Moderador, um Erudito como o Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR.
    E como o senhor escreve bem, esta que é como dizem os Hebreus que a praticam a +- 6.000 Anos, a mais difícil das Artes.

    Abração.

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  5. Wilson Baptista Junior06/07/2020, 22:57

    Amigo Bortolotto, muito agradeço poder ler que você acha que eu escrevo bem. Mas quanto a me chamar de erudito, isso me faz lembrar de minha querida mãe, uma senhora muito inteligente, de amplas e profundas leituras, de modos finíssimos mas sem papas na língua quando era preciso. Uma vez, eu era ainda rapaz, uma parenta dela, nos visitando, impressionada com qualquer bobagem que eu tinha falado sobre literatura, disse, pensando elogiar, "Mas que rapaz culto!" - e minha mãe pousou sobre a mesa a chícara de café, virou-se para mim e disse, na bucha: "Não se entusiasme; você por enquanto é apenas um rapaz ilustrado. Culto é quem toma essa ilustração e a trabalha na alma ao longo da vida até que se transforme em alguma coisa mais perto da sabedoria".
    Nunca me esqueci dessas palavras. Eu sou apenas, como diz nosso amigo Moacir, "alguém de leitura caudalosa". Daí para um erudito a distância ainda é bem maior do que o caminhar nos anos que ainda tenho pela frente. Mas sim, a leitura tem sido sempre um de meus amores, como sei que tem sido um dos seus também. Muito obrigado e um abraço do Mano.

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