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Wilson Baptista Junior
Se você está
lendo este post, muito provavelmente é uma pessoa que gosta de livros. Além das
grandes livrarias, onde normalmente se procuram livros para comprar, talvez
conheça outros lugares interessantes mundo a fora para ir em busca dos que nos interessam, como os “bouquinistes” das margens do Sena, tão bem
descritos pelo Moacir num post anterior, que nos esperam com suas caixas verde-escuras cheias de
livros antigos e novos colocadas nos passeios, as livrarias cheias de surpresas meio escondidas
nas velhas casas do Marais, as pequenas livrarias londrinas que nos lembram da
correspondência encantadora entre Helene Hanff e seu livreiro e amigo Frank
Doel, as lojinhas de livros e revistas nos aeroportos em lugares
distantes onde a gente procura alguma coisa dali para preencher o tempo de
espera ou das longas viagens de volta para casa – ou então talvez seja, como eu
fui, um frequentador dos antigos sebos à procura de tesouros.
E lê, um
tanto preocupado, as notícias na imprensa sobre como a internet e os meios
eletrônicos estão ameaçando fazer desaparecer os nossos queridos livros em papel, e como os preços deles restringem cada vez mais a
possibilidade de serem comprados pelo povo.
Mas se você
estiver na minha cidade de Belo Horizonte, dando uma volta a pé por perto da
nossa casa, e olhar para a esquina da Avenida do Contorno com a Rua Grão Mogol,
junto das vidraças de uma enorme papelaria, que antigamente eram vitrines e hoje estão cobertas com um vidro verde fosco, se deparará com uma cena de fazer seu
coração de leitor bater mais rápido: um mar de livros expostos na calçada,
formando um enorme mosaico colorido nas folhas de papelão que cobrem o cinza do
concreto.
Se parar
para olhar para eles, como faço muitas vezes, será recebido com um sorriso aberto
por um homem de modos simples e francos que deixará você olhar à vontade e
remexer nas pilhas de livros que formam uma ilha num dos lados dessa praia
inesperada.
E se algum
deles lhe interessar, ao perguntar o preço, mesmo que seja um precioso exemplar
de capa dura de um livro difícil de encontrar, ouvirá sempre o mesmo preço: “Cinco reais” – e ficará surpreso. E quando
perguntar a ele o porquê de ser tão barato, se tiver sorte e tempo para um dedinho
de prosa talvez seja convidado a se sentar numa das duas cadeiras ao lado da pilha de
livros e a ouvir uma história que com certeza o deixará de coração mais leve.
É a história
do nosso bouquinista, para aportuguesar a palavra francesa tão descritiva, o
senhor Odilon. Odilon Tavares, se quiser saber seu nome inteiro.
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Ele nasceu,
para usar suas próprias palavras, “num
fazendão no meio do mato”, perto da cidade de Carandaí, aqui em Minas.
Rodou um pouco pelo Brasil a fora, trabalhando em obras, e uns quinze ou vinte
anos atrás fixou-se em Belo Horizonte. Aqui começou a trabalhar em reciclagem,
angariando material.
Observador cuidadoso,
viu que no meio do material que angariava vinham muitos livros, e teve a ideia
de tentar vendê-los na rua ganhando um pouco mais do que valeriam como papel
velho. Experimentou e deu certo, e resolveu aproveitar a parte da tarde
para a venda, já que de manhã e de noite são os horários bons de encontrar o
material que os outros descartam para a reciclagem.
(Um parêntese: para nós que gostamos de livros é estranho pensar
que possam simplesmente ser jogados fora como lixo. Infelizmente acontece, e não poucas vezes. Eu mesmo já tive
ocasião de ver, numa rua de um bairro de gente de boa renda, que se supõe instruída, uma grande
quantidade de livros sendo jogados fora de uma casa em reforma; infelizmente
estava passando a pé e não tinha como avisar o senhor Odilon antes da passagem
dos lixeiros - não pude mais do que fazer esta melancólica fotografia)
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O nosso bouquinista escolheu
esta esquina onde estamos conversando porque reunia boas condições para o seu trabalho: um
passeio largo, uma boa marquise protetora e uma região de bom poder aquisitivo.
No começo as pessoas paravam, olhavam meio ressabiadas, algumas compravam. E umas foram contando para as outras. Gradualmente
o movimento foi crescendo, e ele foi deixando de trabalhar em reciclagem e passando a se dedicar apenas à venda dos livros. Pessoas começaram a trazer para ele os livros que não queriam mais. O estoque cresceu e ficou mais variado,
e encontramos nele livros de escola de todos os níveis, romances, best-sellers,
livros técnicos, livros mais antigos, livros em outras línguas, todos em boas
condições, muitos em estado de novos. Faz tempo que já não tem mais como levá-los para guardar em casa ao fim do dia, e conta com a ajuda noturna de um
reciclador seu amigo, que dorme junto ao seu estoque debaixo da marquise para tomar conta dele
durante a noite.
Mas voltando
à pergunta de que falamos lá atrás: Porque vender por preço único e baixo
livros de que muitos poderiam ser vendidos muito mais caro, e o nosso bouquinista sabe
disso?
A resposta
dele é de nos fazer pensar: “Já
experimentei vender mais caro, e consegui, mas hoje a minha preocupação não é a
de ganhar dinheiro. No lugarzinho onde nasci e fui criado não havia ginásio, e
meus pais não tinham condições de pagar a passagenzinha de ônibus para eu poder
ir até o da cidade mais próxima. Então, cresci sem poder estudar. Hoje, posso vender todos os livros a cinco reais, dá para assegurar a minha subsistência, e ao mesmo
tempo ajuda a quem não tem condições de pagar os livros de que precisa para
estudar pelo preço aí de fora. Essa alegria me basta”.
Por sua maneira de agir e sua simpatia o nosso bouquinista
tornou-se uma pessoa conhecida e estimada no bairro, com grande número de
amigos e clientes habituais, mesmo que alguns, como eu, namorem os livros
expostos e não comprem (mas ele sabe que é porque já não tenho, em casa, lugar
para por mais). Guarda no coração as palavras a seu respeito de um conhecido, “pessoa
estudada” no seu dizer, que lhe explicou que as pessoas gostam dele porque tem “exterioridade positiva”.
Descobriu a
quantidade de amigos que tinha no final do ano passado, quando teve problemas
com fiscais da prefeitura, que apreenderam seu estoque exposto de uns dois mil
livros acusando-o de estar violando o código de posturas da cidade. Houve uma
comoção nas redes sociais, e pessoas amigas intercederam junto ao prefeito da
capital, a quem ele agradece a sensibilidade de ter reconhecido a função social
da sua atividade e mandado devolver os livros apreendidos.
Durante o tempo em que conversamos uma senhora chegou com uma sacola cheia de livros, um rapaz com mais alguns deles no porta-malas de um carro. Meio a
contragosto, porque a prosa estava boa, me levantei da cadeira - a tarde caminhava para o fim e eu tinha ainda
algumas coisas a resolver na rua - e quando me despedi do senhor Odilon dizendo que seria bom que houvesse
mais gente com a mesma vontade de ajudar os outros, e lhe desejei boa
sorte, ele me respondeu: “sabe, acho que é
porque faço com o coração, e quando vem do coração Deus está na parada. Vai dar
tudo certo.”
Fui embora
mais leve.
Prezado Autor e nosso Editor/Moderador Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR,
ResponderExcluirRealmente para nós que gostamos de Livros, consequentemente da Leitura, é uma dupla alegria ver um bouquinista como o Sr. ODILON TAVARES ganhar o seu sustento aproveitando Livros que de outra forma iriam para destruição.
E que lição de desprendimento ele nos dá, estipulando um Preço Único de R$ 5/Unid. para atender a todos os bolsos, ele que na infância e juventude não tinha muita verba para comprar Livros.
É de louvar-se também o Pessoal da Papelaria que lhe cede a Marquise e permite que ele use a calçada em frente da Loja.
Abração.
Caro Bortolotto, bem lembrado sobre o pessoal da papelaria, sem dúvida "cúmplice"do bem fazer do nosso bouquinista. Muito obrigado pelo comentário sempre preciso.Um abraço.
Excluir1) É isso aí, nós que gostamos de livros estamos sempre os encontrando nas calçadas, aqui do Rio de Janeiro também.
ResponderExcluir2)Mas eu penso que o livro de papel não vai diminuir de todo, vai diminuir bastante, mas continuará como seu charme, encantando multidões.
3) Parabéns Wilson !
Antonio, o livro em papel, creio também, nunca vai acabar, ajudado pelo trabalho de pessoas como o Odilon. E de professores, como você, que ensinam as pessoas a gostar deles. Que bom que você gostou. Um abraço.
ExcluirPessoas como Odilon Tavares, que Mano aproveitou para fazer uma crônica terna e importante ao mesmo tempo, pois o pano de fundo é o livro, o exemplar tradicional, aquele objeto que não somente enfeita prateleiras em salas de estar, porém se torna fundamental para nossos conhecimentos, aprendizado, cultura e informação, têm sido as responsáveis pelas cidades ainda terem consigo alguns aspectos humanos, que devem ser enaltecidos e mencionados, exatamente como postado no Conversas do Mano!
ResponderExcluirNão é somente o livro fundamental para nosso crescimento, mas a determinação de um ser humano em nos oferecer o livro por preços vantajosos, e também ter melhorado a sua vida, se não à base de leituras, mas através de vendê-los aos interessados.
E na rua, embaixo de uma marquise, sem o espetáculo visual das livrarias, que nos deixam inebriados pela quantidade de exemplares à mostra e sobre temas os mais diversos e exóticos, nada disso.
Os livros oferecidos estão na calçada, no local mais simples existente, na passarela de gente igualmente tão variada quanto exótica, e de acordo com os assuntos contidos nos livros que vende.
E, involuntariamente, o nosso Odilon age conforme se espera ser a função do homem culto, do sábio, que é transmitir seus conhecimentos para os demais. O nosso personagem não compartilha o que sabe, pois simples, sem diploma universitário, quem sabe até mesmo não concluiu os ensinos básicos, mas atua para nos dar a chance de saber, de ler, de conhecer, e mediante preços atraentes, que impulsionam os pedestres a comprá-los pela oportunidade rara de se ter um livro adquirido em melhores condições de preços que nas grandes lojas especializadas.
Odilon Tavares mostra a todos que residem na bela capital dos mineiros, que o livro e o ser humano são o mesmo, uma simbiose absoluta.
Valoriza-se o livro ao adquiri-lo; valoriza-se a pessoa quando se dedica à leitura!
Valoriza o blog Conversas do Mano, a leitura, o saber, a cultura, a necessidade de se ter livros em casa, de não se perder a oportunidade de comprá-los a preços módicos, este excelente artigo de autoria do nosso amigo Wilson!
Terno, ótimo na mensagem transmitida, notável pela homenagem ao Odilon, maravilhoso na sua valorização do livro, do objeto, de se poder folheá-lo, manuseá-lo, de compor pequenas e humildes bibliotecas às mais imponentes e grandiosas, Mano compôs uma crônica excepcional, diferente das demais porque aborda personagens que caracterizam as cidades, seus afazeres úteis à sociedade, ao indivíduo, e de iniciativa de alguém que se predispôs oferecer cultura a preços alcançáveis a qualquer pedestre.
Parabéns, Wilson.
Aplaudo efusivamente esse teu trabalho, este teu relato, esta tua postagem, que enaltece não só o quanto é prazerosa a leitura, mas a aquisição de livros e nessas condições.
E o meu muito obrigado ao Odilon Tavares, cujo trabalho deve ser elogiado e prestigiado, exatamente como fez o nosso Mano com o seu natural talento com as palavras, de nos deixar enternecidos pelo que escreve e vocábulos empregados.
Abração, meu amigo.
Saúde, e vida longa ao lado dos teus amados.
Chicão, o Odilon, sim, "age conforme se espera ser a função do homem culto, do sábio, que é transmitir seus conhecimentos para os demais". E ainda que a vida não lhe tenha permitido ser um homem culto, é verdadeiramente um homem sábio, que tem a sabedoria de ganhar sua vida sem se esquecer de ajudar os outros, não doando o supérfluo, mas doando o fruto do seu trabalho para dar aos outros a oportunidade que não teve. Obrigado pelo comentário, gauchão velho, muita saúde, e um abraço.
ExcluirMano
ResponderExcluirInteressante este relato de como uma pessoa simples usa os livros de uma maneira certa e inédita
Na rua Angustura perto de onde moro víamos nas grades de um prédio livros pra quem quisesse pegar
Meu marido resolveu procurar o dono e descobriu que no mesmo prédio, esta pessoa tinha outro apto só para colocar os livros que distribuía
Nós levamos uma sacola cheia de livros e pegamos os que gostamos
Pessoas que ajudam a cultivar a leitura
Um grande abraço
Lea, fico sempre feliz que você goste de estar conosco nas nossas Conversas. Um grande abraço.
ExcluirWilson,
ResponderExcluirA beleza do seu post – independentemente do fantástico tema dos livros de quem todos nós somos amigos! – mora na última frase do texto: “Fui embora mais leve.” É DISSO que precisamos, de tomar conhecimento de histórias tão inspiradoras quanto a do nosso bouquinista Odilon, gente cujo objetivo na vida não é só levar vantagem em volta do próprio umbigo, “ganhando mais vendendo mais caro”, mas sobreviver com dignidade estendendo a mão àqueles que precisam.
E é preciso ler e ter mais esperança, continuar apostando no bicho homem, acreditar que se fizermos a nossa modesta parte o todo, um dia, terá solução. Mas em vez nos deparamos em jornais, sites, blogs e por aí vai com sacanagens, mentiras, crimes, corrupção, ódio, vaidades, penas de aluguel, narrativas que insultam nossos neurônios, falta de vergonha na cara, ofensas e maluquices em série que em vez de nos evoluir nos deixam nos deixam com o coração endurecido.
Tudo bem que temos que ficar ligados e driblar a desinformação mas nesses tempos escuros deveria haver uma lei que obrigasse todos os veículos de comunicação a publicar e/ou postar, todos os dias, em meio as barbaridades diuturnas de praxe, pelo menos uma boa notícia real, uma boa dose de “exterioridade positiva” (rsrs) É isso ou a indiferença causada por over exposição, ou pior ainda, como dizia o Pessoa: “um supremíssimo cansaço, íssimo, íssimo, íssimo, cansaço...”
Meus parabéns e muito obrigado a você e ao prezado livreiro por esse copo de água fria e cristalina no deserto!
Abração
Moacir, sim, é preciso continuar e ter esperança, para continuar merecendo estes bem vindos copos dágua que a vida nos oferece, quando às vezes parece que perdemos o caminho e vamos morrer de sede. Obrigado pelo comentário, que bem resumiu o intento do post, e um abraço.
ExcluirMano,
ResponderExcluirVivemos numa área cada vez mais desertificada e, como magistralmente diz Moacir, o nosso Caríssimo, a vida teima em gerar flores, copos de água fria, oásis no meio do nada.
1) O seu bouquinista, tão bem fotografado no texto. 2) Um certo mendigo de Brasília que preferia receber livros e vivia naquele sebo a céu aberto, gerando um saudável costume de as pessoas levarem e trazerem livros livremente - e ele ainda falava a respeito daquele mundo com propriedade. 3) O açougueiro (também de Brasília) que entupiu sua loja de livros e a via pública de música, em shows de fechar a rua. 4) Alguns velhos amigos de Natal, que fizeram dos sebos a arte das suas vidas e seguem fazendo do amor pelos livros a joia rara de até se tornar editores de bom fôlego.
Não poderia ser outro o seu sentimento que não ir embora mais leve. Não se acanhe de continuar flutuando. Abraço.
Heraldo, é muito bom saber que há outros pelo Brasil a fora fazendo parecido com o Odilon. E é um privilégio (e falo de cadeira) ter velhos amigos como os seus de Natal. Que Deus os conserve a todos. Vamos continuar flutuando, sim, juntos.
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