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08/12/2020

Into the wild blue yonder

 

Chuck Yeager e o X-1 na base de Muroc

Wilson Baptista Junior

Toda criança, nova ou antiga, tem seus heróis de infância. E eu, criança antiga, não sou exceção.

Hoje um dos meus viajou para mais longe.

Desde pequeno fui um apaixonado pela aviação. Desde o primeiro aviãozinho de papel que meu pai me ensinou a fazer, depois pelos aviõezinhos de madeira que ele construía para mim em sua oficina e que eram a inveja de meus colegas do primário, passando depois pelos planadores que eu adorava construir e fazer voar, e até por pequeninos modelos como um, que cabia na palma de minha mão, que fiz num torno de joalheiro com fuselagem de latão e asas de aço, de um avião francês da Primeira Grande Guerra.

Meu sonho de garoto era ser um piloto de caça. Mas quis o destino que a miopia crescesse mais depressa do que a idade, e quando cheguei aos dezoito anos já não conseguia passar nos exames de vista da Força Aérea.

Dinheiro para o curso de piloto civil não houve na juventude, e depois ao correr dos anos outras prioridades foram aparecendo. Sobrou-me o encanto de voar levado por outros, em aviões pequenos e grandes de todos os tipos, que guardo até hoje e me levou por tantos lados.

Hoje de manhã cedo recebi a notícia da morte de um dos pilotos que fizeram história. O hoje general Charles Yeager, mas que todo o mundo chamava de “Chuck”, e que em 1947, pilotando um avião que parecia uma bala de fuzil, com o nome de sua mulher pintado ao lado da cabina, duas asinhas afiadas como lâminas, um motor foguete na cauda e duas toneladas e meia de combustível altamente explosivo atrás do piloto, foi deixado cair da barriga de um bombardeiro B-29 a sete quilômetros de altura, acendeu o foguete e disparou para o céu.

A quase treze quilômetros de altura ele nivelou o avião, acelerou ao máximo, e se tornou o primeiro homem a atravessar a barreira do som e sair vivo do outro lado. Depois, sem combustível, o motor apagado, desceu planando até aterrissar no lago seco de Muroc.

Hoje voar mais rápido do que o som é coisa de rotina, até um avião de passageiros, o belíssimo Concorde, hoje aposentado pelos altos custos de operação, levou muita gente viajando ao dobro dessa velocidade. Mas naquela época era uma incógnita, só se sabia que ao chegar perto daquela velocidade o ar comprimido pelo avião, de um deslizamento suave se transformava numa verdadeira muralha aerodinâmica que alterava todos os efeitos dos controles e podia levar o avião a se despedaçar. Daí o nome que lhe deram de “barreira do som”, e mais de um piloto pagou com a vida o encontro com essa muralha ao mergulhar em alta velocidade em aviões que não tinham sido construídos para enfrentá-la.

Alguns anos depois, quando eu já tinha idade para ler, acompanhei o desenvolvimento da série de aviões experimentais que eles chamavam de “aviões X” (X era a abreviação em inglês de “experimental”, aquele de Yeager foi o X-1). Um trabalho magnífico que foi empurrando cada vez mais para longe os limites da aviação, num tempo em que não havia computadores, os engenheiros usavam réguas de cálculo e pranchetas de desenho e não se sabia muito como esses aviões iam voar quando chegava a hora de um piloto corajoso entrar nele e tirar a prova.

Alguns dos leitores talvez tenham visto uma parte da história de Chuck Yeager num filme que fez sucesso em 1983 e trouxe o título em português de “Os Eleitos” (em inglês se chamava “The Right Stuff”) que mostrou a progressão dos pilotos destes primeiros aviões até os astronautas que chegaram à Lua.

Chuck aprendeu a atirar desde garoto caçando para ajudar a encher a geladeira da família na Virgínia do Oeste, foi piloto de caça na Segunda Guerra Mundial, foi abatido sobre a França e fugiu para a Espanha ajudado pelos maquisards, voltou a combater e terminou a guerra como capitão e duplo ás (piloto com mais de dez vitórias), depois da guerra foi piloto de testes, desde os primeiros aviões a jato americanos até o programa dos Aviões X, e voltou a lutar, já como tenente coronel, comandando um esquadrão de caça na guerra da Coréia.

Mas não quero aqui fazer uma biografia dele. A quem por acaso quiser saber mais recomendo a sua auto biografia, ou o livro do Tom Wolfe, “The Right Stuff”, que deu origem ao filme, e que fazem companhia um ao outro numa estante atrás de onde estou escrevendo. Só falei do começo da sua vida para poder falar no que ele escreveu ao final de sua biografia, com sessenta e dois anos: 

“Tenho um enorme prazer pessoal em voar um F-20, mas conheço pessoas demais que erigiram barreiras, paredes reais de tijolos, apenas porque têm cabelos grisalhos, e que se isolam, definitivamente de coisas que amaram fazer toda a vida pensando – Estou muito velho para fazer isto ou aquilo, isso é para os mais jovens – Viver até uma idade avançada não é um fim em si próprio; o truque é aproveitar os anos que ainda nos restam”. E termina dizendo: “Ainda há tantas coisas que quero fazer, nunca perdi minha curiosidade sobre as coisas que me interessam. (---) Não fiz tudo ainda, mas quando chegar meu fim não terei perdido muita coisa”.

Chuck nos deixou hoje, com noventa e sete anos, para voar definitivamente para “o selvagem azul lá em cima”, que é a tradução do título deste post e como os pilotos do tempo dele chamam o infinito céu.

E ao pensar nisso me lembro de um poema escrito por um piloto canadense  chamado John G. Magee Junior, lutando pela RAF na Segunda Guerra Mundial, poucos dias antes de morrer num acidente com seu Spitfire, e que me vem à memória sempre que tenho a alegria  de voar:

"Oh, I have slipped the surly bonds of earth,
And danced the skies on laughter-silvered wings;
Sunward I've climbed, and joined the tumbling mirth
of sun-split clouds -and done a hundred things

You have not dreamed of -.wheeled and soared and swung

high in the sunlit silence. Hovering there
I've chased the shouting wind along
and flung my eager craft through footless halls of air.

Up, up the long delirious burning blue
I've topped the wind-swept heights with easy grace,
where never lark, or even eagle, flew;

and, while with silent, lifting mind I've trod
the high untrespassed sanctity of space,
put out my hand and touched the face of God."

E que, se me perdoarem a tradução, fica mais ou menos assim:

“Oh, eu me livrei dos tristes laços da terra
e dancei pelos céus em asas prateadas pelo riso;
subi para o sol, e me uni à alegria buliçosa
das nuvens divididas pelo sol – e fiz um cento de coisas

De que nunca sonhastes –rodopiado e planado e me balançado

bem alto no silêncio ensolarado. E lá pairando
persegui pelos céus o vento uivante
e lancei meu ávido aparelho por salões sem piso de ar.

Alto, mais alto pelo longo, delirante, flamejante azul
escalei com graça ligeira os cimos varridos pelos ventos
onde nunca voaram nem a águia nem a cotovia

E enquanto com a alma silente e elevada pisei
a alta e intocada santidade do espaço
estendi a mão e toquei o rosto de Deus.

 


7 comentários:

  1. Léa Mello Silva10/12/2020, 09:24

    Como sempre vc nos envolve nos seus textos e nos convida a voar desta vez
    Um desejo que os homens sempre tiveram e conseguiram
    Obrigada pelas memórias de um menino é o lindo poema

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    1. Wilson Baptista Junior13/12/2020, 19:01

      Obrigado, Léa, o poema me comoveu na primeira vez em que o li e nunca mais me esqueci dele.
      Um abraço do seu primo Mano

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  2. Flávio José Bortolotto10/12/2020, 12:05

    Nosso ilustre Editor-Moderador Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR com este bonito Artigo presta justa homenagem a esse grande Ás da Aviação Americana, e primeiro Ser Humano a voar mais rápido do que o Som, 1235 Km/h (1947), Gen. CHUCK YEAGER ( 1923 -2020 ) 97, recentemente falecido.

    Para nós Brasileiros que temos a honra de contar entre nós " O maior dos Pais da Aviação - ALBERTO SANTOS-DUMONT", maior porque Projetou, Pilotou em Testes e venceu Prêmios em Aparelhos "Mais Leves que o Ar", e também Projetou, Pilotou em Testes e venceu Prêmios em Aparelhos "Mais pesados que o Ar", e que temos a 3° maior Fabricantes de Aviões do Mundo, a EMBRAER SA, orgulho da Engenharia Brasileira, um Herói da Aviação como o Gen. CHUCK YEAGER nos é muito caro.

    Até 1947, todos os que tentaram romper a barreira do Som o faziam em voos picados, a maioria morreu na tentativa.
    O Projeto de Avião impulsionado a motor Jato, X-1 da Bell Laboratories propunha a fazê-lo em voo ascendente, o que dava mais confiança ao Piloto para a retomada de nível.

    No 50° voo de testes, 14 Out 1947, CHUCK YEAGER rompeu confirmadamente a barreira do Som, dizendo que próximo ao limite o X-1 trepidou, vibrou, mas que passada a barreira do Som, os comandos ficaram macios e obedientes e o voo extremamente suave.
    Como as operações eram Secretas, nada saiu na Imprensa, e somente em Dezembro 1947, a Imprensa publicou algo sobre o depois famosos voo, ainda sem confirmação oficial pela USAF.
    Outra curiosidade contada em sua famosa Biografia é que os Pilotos de Testes da BELL tinham altíssimos Seguros, mas CHUCK YEAGER por ser Oficial da USAF não tinha nenhum.

    Só um pouco mais tarde CHUCK YEAGER ficou famoso por romper a barreira do Som, e SOBREVIVER.

    Nossas Saudações.


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    1. Wilson Baptista Junior13/12/2020, 19:02

      Caro Flávio, vejo que você também é, com justiça, um admirador do piloto. E que, por comentários passados, também leva no coração o amor pelo voo. Bom ler você aqui, como sempre.
      Obrigado e um abraço do Mano

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  3. 1) Sonhos infantis, adolescentes, juvenis, todos tivemos.

    2)Mas a vida nos leva a voar por outros caminhos. E assim o Wilson cronicando belamente uma pouco da aviação.

    3) Tudo de bom, Feliz Natal e Próspero Ano Novo para todos (as).

    4) Bons voos !

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    1. Wilson Baptista Junior13/12/2020, 19:03

      Mestre Antonio, sim, somos todos um pouco produto dos nossos sonhos. Mesmo que aa vida nos tenha levado a caminhos diferentes. Na verdade, ao seu caminho próprio, que tentamos fazer com que seja o do meio.
      Tudo de bom para vocês também.
      Um abraço do Mano

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  4. Francisco Bendl14/12/2020, 18:58

    Todos sabem da minha admiração pelo Mano, do meu reconhecimento ao blog extraordinário que possui, e que denomino como um oásis cultural.

    Portanto, fica extremamente difícil eu comentar um artigo de sua autoria, pois naturalmente bem feito, pesquisado, redigido e útil também como informação.

    Se eu me estendo nas palavras, dou a entender que o elogio exageradamente;
    Se posto um texto meio lacônico, deixei de reconhecer o talento brilhante do blogueiro, penso.

    Uma ideia:
    O Mano escrever muito mais vezes.
    Com o tempo, nos acostumaremos com a qualidade de seus textos e temas escolhidos, e bastará escrevermos “muito obrigado e até amanhã”.

    E é o que vou fazer, inaugurando eu mesmo a minha proposta, antes que eu me decepcione com o silêncio que serei vítima!

    Obrigado, Wilson.
    Até amanhã.
    Saúde e paz.

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