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12/10/2021

O encanto do ouriço, do caramujo e do tatuzinho

 

Aquarela Ana Nunes

Ana Nunes

Hoje comecei celebrando o dia chuvoso cinza e brilhante com uma caneca diferente, tipo café irlandês ou o que seja: café batizado com whisky. É bom viu gente?!!!   
Junto celebro meus mortos amigos, mortos família, completa angústia.    
Depois falo disso. Porque quero mesmo é falar da “elegância  do ouriço”. E da maravilha do saber!

Meu filho me impôs uma faxineira. Pobre de mim, descobri que estou velhinha, velhinha, como a minha querida Laura! Mas minhas dores artríticas melhoraram tipo metade.
A minha faxineira me assombra cada dia. Tudo bem, é histérica com poeira e achou aqui, nesse mercado persa que é nossa casa, um ninho fértil.  Mas ela me diverte, sem saber, com sua alegria e eloquência. E bota eloquência nisso! E fiquei animada. E quando fico animada sou insuportável...e estou introduzindo na cabecinha de cinquenta e três anos dela o vírus da arte. Tive o primeiro retorno ontem, depois de falar da Fridinha Kalo e de xilogravura. Quando pendurávamos um quadro de gravura em metal ela disse- Estou aprendendo tanta coisa de arte! Quase saí rodando e bailando pela sala.      
Em vez disso prometi emprestar livros. Mal sabe ela que tenho planos de para casa...

Nada disso importa hoje. É só um pouquinho de partilhamento de blá blá blá. 
O fato mesmo é que é um encanto vê-la comer. Delicada, bocados pequenos e uma paciência do sem fim. Tão diferente de mim! (Até rimou!) parece estar comendo o doce dos deuses. E pode ser mexerica que já dou descascada (sim, faço isso) ou um pedaço de bolo ou apenas uma fatia de mamão. E ontem, no meio da manhã, fiz uma abacatada e fomos comer juntas na cozinha. Eu no banquinho e ela na escadinha. E fiquei admirando sua educação. E ali sentada, ouvindo, pensando e partilhando, me lembrei do livro A elegância do Ouriço que curti cada página como se fosse a última. E depois muitas vezes assisti ao filme. É uma delicada estória da zeladora (concierge no livro) que mora no prédio onde trabalha e que nenhum dos esnobes moradores sabe da sua intelectualidade e finesse. Apenas uma menina diferente que é sua amiga e um senhor japonês mudado há pouco. Só eles a conhecem na intimidade dos seus livros e desfrutam de sua companhia.

E fiquei pensando, porque o pensamento vem até mesmo quando não queremos nada com ele, que é um privilégio essa tal de alegria do saber. A gente vai vivendo e ajuntando experiências. Vai lendo e colecionando personagens e seus modos de ser e pensar. Aprendemos com eles como se estivessem vivos. A gente vai viajando seja mato adentro ou mundo afora e vai guardando imagens e culturas, bebendo nessa fonte de palavras que nem entendemos bem.... Minha mãe sapeca em Israel sempre que entrava em um shopping dizia “Shalom!” para o segurança. E eu pensava: ainda pegam essa velhinha! Tremia de medo esperando a reação do homem! E quando menina, viajando de jipe com meu pai roça afora , eu ganhava café bem doce da dona da casa visitada. E conhecia um mundo muito diferente do meu. Singelo, simples, hospitaleiro. Era tão menina que nem sabia disso. Mas hoje eu sei que já sabia disso! Se não, como lembrar?

E nesse aprendizado eclético, que nem é só escola nem família, é a própria vida (como já disse GGil, “e só por ela ser”), fazemos conexões surpreendentes até mesmo para nós mesmos! Assim como eu liguei essa pessoa à criatura criada da personagem do ouriço. Imagino, ou tento, as sinapses dessas criaturas muito lidas e viajadas, que vão virando googles domésticos, do que são capazes quando conversam ou veem ou leem! São outros livros, outros filmes, outras vidas.

Seja conhecer um truque de arrumação, seja saber de um solo especialista em peneirar água da chuva, o Teko explicou tudinho sobre nosso solo rico e generoso, seja conhecimento das galáxias, dá-lhe Mochileiro, seja um simples olhar para o caramujo despojado que leva a casa nas costas ou um tatuzinho que se enrosca e se esconde em si mesmo para se proteger do ultraje. Para depois continuar incólume seu caminho desconhecido. E o ouriço que espeta na elegância.

Gente, é a pura e insubstituível alegria do saber!

 

Este post dedico ao Chicão, que para quem não o conheceu foi a nossa querida e verdadeira “elegância do ouriço”.

 

28/09/2021

Adeus, companheiro!

 


Wilson Baptista Junior

Recebi faz pouco uma notícia triste, o nosso amigo e companheiro de blog Francisco Bendl, o Chicão, o gauchão valente, às vezes destemperado, corajoso, contador de histórias, amante da ópera, apaixonado por sua terra e sua gente, que nos regalou com tantos posts partiu hoje às 06:45 para o andar de cima.

Deve estar agora, tenho certeza, conversando com o Flávio Bortolotto, o gentil cavalheiro de tantos comentários refinados nos nossos escritos.

Vai, Chicão, fica tranquilo, deixas por aqui muita saudade, uma bela família e muitas lembranças boas. Até mais ver!

12/09/2021

Um sonho no fio da folha

 


Ana Nunes


Hoje eu tive um sonho.

Com um personagem da minha estória. Ou devo já dizer história?

Dele não sei a cor nem os passos. E nem conheço a voz. Só sei mesmo dos bigodes brancos e da palavra livre.

E nessa estória inventada pela minha mente oculta, da qual também sei tão pouco, esse personagem remete de longe um livro para o amigo que vive comigo.

 

E era um livro que queríamos muito e nunca compramos, de lombada dourada e papel bem fino. Pequeno e gordo como uma pequena bíblia. E sobre uma das primeiras folhas descobri a dedicatória para o amigo. Era em letras finas e douradas que me fez desejar uma caneta assim. Adoro canetas e lápis (deveria ser lápises, repito porque já disse antes) pretos macios e de muitos coloridos. Nessa dedicatória de nenhuma lembrança guardei mesmo foi a assinatura, elegante e espichada quase sem dar para ler. Assinatura curiosa que fiquei tentando escutar as letras para saber o dono.

O amigo ficou contente. Demais. E para estragar um pouco essa festa coloquei em dúvida a postagem do pacote: -Não veio de longe, veio daqui mesmo. Conheço a livraria. Mas como, o personagem esteve aqui tão perto e não quis nos ver? Procurei a embalagem do correio para configurar certezas. E nessa incerteza veio a tristeza que acabou com o sonho! Pena mesmo, o livro era lindo! E o amigo, saudoso!

 

Esse sonho veio no fio do livro que lia antes de adormecer. Um livro bonito e mais para pequeno, de lombada vermelha e folha amarelada, capa macia gostosa de pegar. Tudo bem alaranjado.  De um japones que para mim nada tem a ver com as outras estórias japonesas que já li. Disso se incube um filho que sabe das novidades literárias, parece uma traça ele, e se incumbe da minha intelectualidade. Intelec atualidade mesmo, porque da antiga cuidou minha mãe querida. Com ela fiz desde cedo amizade com Sartre, Dostoiewsky e Stendhal, Jorge Amado que me levaram pelas vinhas da ira e campos de girassol, pelo recôncavo baiano e pela neve que nunca vi. Nem peguei para sentir o frio. Mas vivi plena no sertão do Guimarães.

 

Esse delicado livro de lombada cor do mercúriocromo dos cortes da infância, agradável ao toque, tive vontade de dividir com o querido deitado ao lado mas,por artes do demônio, desisti. Queria mesmo era falar da maciez ao pegar, das folhas amareladas de fio vermelho, e das letras bem cuidadas. Tem livros novos que as capas brilhantes me dão gastura na gastrite atrófica e fico pegando neles com ajuda de papel. E esse de hoje me dá conforto e gratidão. Além do que, o mais importante, o conto, que descreve as miudezas e imperfeições dos humanos através do inteligente olhar de uma robozinha menina de nome Klara, que aos poucos vai colecionando e desenvolvendo imagens. Não sei se é isso mesmo. Mas com a Klara ou através dela também vou colecionando e desenvolvendo imagens. E desembrulhando o livro.

 

Esse livro deixou no seu rastro do quase dormir o sonho do livro quase dourado e do amigo sumido. Quando, nesses dias de pandemia, o que mais tenho tido são sonhos no mundo dos mortos.

28/08/2021

A segunda banda de agosto

 

Vista aérea de Acari (imagem Job Drone)

Heraldo Palmeira

Ainda é agosto em Acari. Não há mais o rebuliço da primeira quinzena, tempo da festa da padroeira. Chegou a segunda banda do mês, voltou a calmaria tradicional de uma pequena cidade do interior. A costumeira falta de pressa, o mesmo calor do semiárido nordestino, a velha contagem progressiva até agosto do ano que vem, onde faremos tudo de novo para louvar Nossa Senhora da Guia.

Para começar o dia, um desjejum sertanejo antes do passeio de catamarã pelo açude Gargalheiras, Paulinho Gargalheiras pilotando e os Dedés de Milton a postos na companhia, fotografias e profunda amizade – Robertão de Davi não foi localizado, estava comendo estrada nos afazeres costumeiros. Ocasião de visitar muitos recantos adormecidos na memória da infância, oportunidade de ver de perto e em outros ângulos surpreendentes imagens conhecidas sempre avistadas de longe ou aproximadas pelo zum das câmeras.

A quantidade de água represada ainda permite atividade pesqueira. As vazantes estão enfeitadas por pequenos roçados de feijão, batata e capim para o pasto que mantém pequenos rebanhos leiteiros, os animais sabiamente refestelados próximos à margem.

No alto de um dos serrotes de pedras e caatinga da cordilheira, uma grande colmeia que chamamos de arapuá em razão do nome da abelha que abriga – sem ferrão, louca por se enroscar nos cabelos de quem chega perto, produz pouco mel (que não desperta interesse comercial) e cera de odor desagradável. Mais adiante, as flores de alguns tipos de cáctus demonstram a convivência harmônica entre aridez e fertilidade.

Os lugares reservados do grande açude testemunham o milagre da natureza em pleno viço dos seus ciclos de transformações. Plantas, flores, pássaros, camarão, tucunaré e outros peixes... Tudo ali, compondo um belo ecossistema.

Um cachorro da melhor linhagem dos vira-latas nos recebe desconfiado à margem de uma propriedade sem vivalma. Mas leva pouco tempo para, amparado em algum tipo de parâmetro insondável, nos considerar confiáveis e passar a nos seguir animado pelas terras férteis das vazantes. Uma casa de taipa dos velhos tempos é uma viagem no tempo, inclusive pelo abandono e o estado de semidestruída.

No reembarque, nosso guardião tomou um belo banho de açude e, por pouco, não subiu na embarcação para continuar suas mesuras de anfitrião. Ou para aproveitar o encantamento das novas amizades.

Já em terra firme, um banho reconfortante e a pequena viagem de carro até Acari. Caminhar pelas ruas semidesérticas é um bom exercício de reencontro com o silêncio repleto de memórias. O casario vai passando como cenário do que foi vivido atravessando tempos ancestrais, inclusive pelos nomes dos velhos moradores que vão surgindo nas lembranças.

A praça principal em obras retirou de cena o velho coreto e a sede da difusora onde dei meus primeiros avisos ainda com voz infantil – palpitações seminais do meu amor de vida inteira pelo rádio. Reconstruídos, não serão mais os meus, permanecerão em velhas fotos esquecidas em gavetas e baús.

Mais adiante, uma casa senhorial enorme, que já representou a opulência dos coronéis da agricultura e da pecuária. Hoje, celebrando seu primeiro centenário de construção, peleja para não virar escombro e recuperar um pouco da antiga imponência.

Em busca de providências de restauração, a velha casa que pede socorro pode esticar o olho adiante e enxergar uma construção erguida entre 1878 e 1887. Concebida nos moldes do Brasil Império como Casa de Câmara e Cadeia, juntou no mesmo espaço a Câmara Municipal (parte superior) e a Cadeia Pública (parte inferior, que funcionou no local até meados dos anos 1980). O prédio foi tombado em 1964 pelo IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, coroando o seu valor histórico e arquitetônico. Depois de várias utilizações como sede de biblioteca, de ações sociais da prefeitura e da banda de música, hoje abriga o Museu Histórico de Acari.

Dominando a cena da praça principal a bela Igreja do Rosário, que um dia foi simples capela. Dizem os historiadores, erguida por exigência da mãe de um senhor de terras e pecuarista pioneiro, que se instalou quando tudo era sertão inóspito, incerto e infinito habitado por índios valentes, pouco amistosos e embrenhados na caatinga.

Dona Maria da Purificação, mãe do desbravador, colocou uma única condição para vir viver com o filho: ver erguido o primeiro abrigo de Nossa Senhora da Guia, nossa padroeira, de quem era devota – muitos garantem que ela nunca pisou nossa terra.

Manuel Esteves de Andrade, que mandou construir para atender o capricho materno, ganhou a honraria histórica de fundador da cidade talvez pelo fato de que, naqueles povoados de outrora, tudo se formava ao redor das igrejas. Ainda mais num povo de proeminente religiosidade.

Ali ao lado, razoavelmente conservada, está a casa senhorial do homem que dominou a atividade do algodão, cujas usinas viraram ruínas e não dizem nada a respeito da riqueza que geraram há poucas décadas. Até as lendas sobre a devastação da cultura do “ouro branco” pela praga do bicudo começam a amarelar pelo efeito do tempo.

Mais adiante, o ponto onde Toinho do Quentão estaciona todas as noites sua velha kombi branca – um legítimo food truck muito antes desse conceito virar moda – para oferecer deliciosos cachorros-quentes e outras coisas ligeiras, sem contar o cafezinho gentil e gratuito. Quase vizinho de parede-meia imaginária da Barraca de Nossa Senhora da Teima, que só funciona de manhã, onde Mané de Barnabé vende suas confecções populares sem deixar a prosa esfriar, quente feito a sopa espetacular que ele serve em casa para privilegiados como eu.

Reverenciando esses dois amigos comerciantes embiquei na chamada rua da Matriz, pensando que o tempo fez o pequeno povoado virar vila e depois cidade, e uma nova matriz foi erguida no alto do que chamamos “colina sagrada”, exatamente no topo daquela rua. Até hoje permanece ladeada pelo Grupo Escolar Tomaz de Araújo e o antigo Jardim de Infância de Acari (agora Biblioteca Maria de Jesus Bezerra, homenagem a uma das nossas matriarcas e mãe de diversos acarienses ilustres).

Não causa qualquer desconforto subir até lá pela ladeira suave, que mantém parte do casario antigo dos dois lados da rua larga onde vivem descendentes das famílias tradicionais. Apesar das reformas arquitetônicas em algumas das casas, ainda é possível respirar um resto da história. As árvores do canteiro central oferecem sombra suficiente, com bancos para um momento de reflexão olhando para o nada do tempo ou para a matriz majestosa.

Hora de subir a escadaria do átrio, mandada construir em tempos mais recentes. Talvez porque as novidades são raras numa pequena vila como a nossa, a obra virou assunto de todas as rodas de ponta de calçada e redes sociais. Despertou paixões a favor e contra, gerou toda sorte de opiniões como uma barraca da teima ampliada. Hoje, dá solenidade ao templo e tem grande eficiência para, nas grandes celebrações campais, abrigar idosos, pessoas com deficiência e até a banda de música que tanto nos orgulha.

Entrei na velha matriz como quem entra em casa, revendo meu lugar solene de oração desde menino. A mesma beleza, o mesmo silêncio, a mesma sensação de frescor que acolhe e acalma o espírito – dei sorte, não havia mais ninguém além de mim naquele momento.

Ainda estamos processando uma grande mudança. Na verdade, aprendendo a compreender o fato de nossa matriz ter sido elevada à dignidade de basílica menor pelo papa Francisco. Sim, somos sertanejos fervorosos, mas essas grandezas litúrgicas estão distantes do nosso cotidiano simples por natureza.

O que conhecíamos apenas como a casa de Nossa Senhora da Guia recebeu retoques arquitetônicos – desnecessário lembrar que o trelelê sobre as obras foi enorme – para seus novos desígnios de basílica menor. Passou a ser um templo diretamente ligado à Santa Sé. Levará um tempo para inserirmos tanta pompa e circunstância ao cabedal de devoções que conhecíamos até aqui.

Para estabelecer uma sintonia fina com a nova realidade é preciso visitar um corolário – nos diz o dicionário que corolário “é uma verdade que decorre de outra, que é sua consequência necessária ou continuação natural”. Uma volta no tempo até 1737, onde os registros históricos guardam a petição assinada por Manuel Esteves de Andrade para construir a capela de Nossa Senhora da Guia – há versões dando conta de que obras foram iniciadas dois anos antes e o tal documento apenas oficializou a realidade.

Veio a inauguração em 1738, com a bênção episcopal. No altar, a chamada “imagem primitiva”, de estilo barroco popular cujas feições e demais traços indicam que pode ter sido talhada por algum santeiro paraibano, hoje mantida em pequeno altar da casa paroquial.

O povoado começou a se formar ao redor da capela que passou por obras de reforma e ampliação em 1792, quando adquiriu o belíssimo formato atual, cujo porte permite avaliar a pujança do lugarejo naqueles tempos.

Em 1833, a vila de Acari conquistou sua emancipação de Caicó e tornou-se município. Em 1835, com a criação da paróquia de Nossa Senhora da Guia, o templo erguido pelo fundador foi elevado à dignidade de igreja matriz.

Décadas depois, o padre Thomás Pereira de Araújo – desde seu ancestral português, o quarto homem de mesmo primeiro nome na família – era o pároco da comunidade. Diante da ameaça de o poder público confiscar as propriedades das irmandades religiosas, ele simplesmente vendeu as fazendas de gado e passou a dispor de bom capital em espécie nos cofres da paróquia.

Dotado de grande visão de futuro, fez uma análise econômica do ambiente rural e urbano e vislumbrou a tendência de crescimento da comunidade. Assim, lançou-se ao empreendimento mais reluzente do seu legado: a construção da nova matriz no alto da colina sagrada dos acarienses. A obra, que teria começado em 1853, estendeu-se por doze ou catorze anos. O visionário ergueu um templo cuja imponência e beleza impressionam até hoje. É justo deixar os pudores de lado e reconhecer ali uma das mais belas igrejas católicas do estado.

No Natal de 1862, quando a capela-mor já se encontrava coberta, foi celebrada a primeira missa, presidida pelo padre Thomás. A obra foi concluída em 1863 – a data alusiva está impressa no alto da fachada principal –, “quando ela ficou coberta e fechada”, conforme crônica da época.

Foram mais quatro anos de preparação, com a construção dos altares em madeira, pintura, paramentação (alfaias que permitem o funcionamento pleno de uma grande igreja, tais como roupas e vasos litúrgicos, toalhas, pia batismal etc.). E, óbvio, a belíssima imagem de Nossa Senhora da Guia, de estilo barroco, adquirida especialmente para a trasladação da antiga matriz, ocorrida na abertura da festa em 5 de agosto de 1867.

Realizada a cerimônia, a antiga matriz foi dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Hoje, além da condição de a mais antiga do estado que ainda permanece de pé, é mais uma joia do patrimônio histórico, também tombada pelo IPHAN em 1964.

Em 2013, foi realizada uma grande reforma na matriz para comemorar o sesquicentenário daquele 1863 que está no alto da sua fachada principal. Para mim, um ano de redobradas alegrias porque lancei o filme documentário Agosto em Acari, onde a própria comunidade deixou gravados sinais claros de que a fé dos nossos antepassados estava preservada numa atmosfera religiosa perene e que vai atravessando gerações. Valeu cada minuto dos cinco anos que levei para realizar o projeto.

Também naquele ano histórico de 2013 ocorreram as primeiras ideias e conversas a respeito da elevação da matriz à dignidade de basílica. A partir de 2018, o processo finalmente ganhou corpo.

O documento foi publicado pelo Vaticano em 19 de março de 2021, dia consagrado a São José, tão caro a nós sertanejos – ainda mais se chover, sinalizando inverno e farta colheita nas nossas crenças populares.

No dia 25 do mesmo mês tivemos a solenidade de dedicação, rito de consagração da matriz e do novo altar, e a publicação do Decreto Pontifício que elevou a nossa matriz à dignidade de basílica menor. Ali, a paróquia de Acari passava a desfrutar de um honroso privilégio pontifício, a ligação de seu principal templo por um vínculo especial de comunhão à Cátedra Romana de Pedro, ao papa atual e seus sucessores.

Fechando a cerimônia, nos céus de Acari a fumaça da enorme quantidade de fogos parecia anunciar ao mundo “Habemus basílica!” (Temos uma basílica). Nos demos conta de que aquela matriz majestosa tatuada em nossos corações é agora a Pontifícia Basílica Menor de Nossa Senhora da Guia do Acari, a primeira basílica do Rio Grande do Norte.

Correndo os olhos pelo decreto Domus ecclesiae (Casa da Igreja) da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, onde estão listadas as normas para concessão do título de basílica menor, encontramos outras pistas importantes para tamanha conquista:

“A igreja, para a qual se pede o título de basílica, deve ser dedicada a Deus com o rito litúrgico e tornar-se, na diocese, um centro de atividade litúrgica e pastoral, sobretudo para as celebrações da Santíssima Eucaristia, da penitência e dos outros sacramentos, sendo exemplar quanto à preparação e desenvolvimento, fiéis na observância das normas litúrgicas e com a ativa participação do povo de Deus.”

“A igreja goza de certa fama em toda a diocese […] ou ainda porque se venera em modo particular alguma imagem sacra. Se considerem também o valor da igreja, ou seja, a importância histórica e a sua beleza artística […] pede-se ainda um suficiente número de ministros e um apropriado coral, para favorecer a participação dos fiéis também com a música e com os cantos sacros.”

A presença do acariense Eugenio de Araújo Sales na história recente da Igreja deve ser considerada com relevo. É inegável que ele deu conhecimento à Santa Sé do nome da cidade e sua fervorosa e secular vivência religiosa.

O trabalho virtuoso e incansável, bem como a serenidade dos sacerdotes Fabiano Dantas, Flávio Medeiros e Raimundo Sérvulo, dos quais sou feliz testemunha, ergueram e acomodaram cada cristal do projeto no devido lugar e sem nenhum trincado.

E o corolário volta ao ritmo cronológico pelas mãos do padre Emanuel Medeiros, que está sendo acolhido agora pela comunidade como novo pároco da cidade. Quem achou que ele teve sorte por chegar com a obra da basílica pronta ainda não entendeu o rumo dessa prosa.

Caberá a Emanuel ratificar o fervoroso trabalho de Fabiano e conduzir o primeiro tempo de sedimentação da nova relevância do nosso templo diante do povo de Deus. Operar como pastor para que a chama da fé nos permita fazer a conexão espiritual da matriz que guardamos por séculos com a plenitude do seu significado de basílica. Que ninguém se iluda, um trabalho tão hercúleo quanto foi o de quem colocou tijolo sobre tijolo do edifício da nossa fé, desde aquele longínquo ano da graça de 1737. Ou até antes, quando o sopro divino parece ter tocado o espírito de dona Maria da Purificação criando o ponto zero do nosso corolário religioso, que caberá a cada vigário transmitir ao seu sucessor e assim por diante.

O mais firme alicerce sempre esteve na comunidade, que transformou Acari numa referência litúrgica a partir do fervor que nos guia desde os tempos dos desbravadores. Somos o povo que, acostumado a desafios, vai honrar mais e mais a dignidade que nos foi concedida pelo santo padre. Não há o menor perigo de ser diferente.

Findei minhas orações e permaneci absorto na observação da parte interna da basílica. De repente, começou a entrar pelas enormes portas e janelas o aroma que saía das cozinhas das casas ao redor, sinal definitivo de que a hora do almoço sertanejo era chegada. Claro, eu também sou filho de Deus, merecia prato, talheres e copo.

Levantei-me devagar de um banco qualquer no meio da nave central, onde sempre costumo ficar durante minhas orações – como também é bom uma igreja vazia! Já de costas para o altar, olhei para o alto e, na balaustrada do mezanino do coro, enxerguei o brasão da basílica, boa fonte de tradução da nova realidade daquele templo.

Fui correndo a vista de alto a baixo, lembrando do que me ensinaram sobre ele o padre Fabiano Dantas e Canindé da Igreja Medeiros.

Brasão da Basílica de Acari (imagem: divulgação da paróquia)


Umbrelino basilical: em listras vermelhas e amarelas que representam as cores do pontificado, é uma insígnia exclusivamente pontifícia e presente em todas as basílicas, sempre ao lado do tintinábulo (sineta). Nas antigas liturgias eram utilizados quando o papa em pessoa participava de uma procissão, a umbrela para lhe proteger do sol ou da chuva e o tintinábulo para anunciar sua presença. As basílicas, por sua dignidade, recebem esses dois símbolos visíveis para designar sua profunda comunhão com o sucessor de São Pedro e representar sua prontidão para receber o santo padre.

Chaves petrinas: uma amarela, uma prata, cruzadas, guarnecem o escudo central demonstrando a sintonia da basílica com o papa e a Igreja universal. O cordel vermelho que as mantém atadas representa o sangue que o vigário de Cristo deve se dispor a derramar pela Igreja.

Cadeia de montanhas: na cor prata e na posição de proeminência no topo do escudo, faz referência ao território de Acari com as cordilheiras que representam a fortaleza natural dada por Deus em nossa geografia. A parte verde (mais abaixo) remete aos tempos de chuva e à exuberância da natureza em viço, conforme consta nas segunda e terceira estrofes do hino da padroeira.

- Desde o serrote florido até o rio corrente [...] se o campo em festa floresce, se o perfume a flor derrama.

Ondeado: em azul e prata, é uma referência ao rio Acauã que banha nossas terras e guarda as origens de Acari. No campo espiritual revela as águas batismais que fazem brotar inúmeras gerações para o louvor católico de Deus.

Estrela de seis pontas: em amarelo, aplicada sobre a cadeia de montanhas, representa Nossa Senhora da Guia. O fundo prata sobre o qual está aplicado também representa a aurora de Deus.

Monograma mariano: em amarelo, coroado, e calçado pela lua prateada, faz alusão à própria Virgem Maria no Livro do Apocalipse e igualmente na invocação de sua novena. O fundo azul, na arte cristã, remete à virgindade de Maria.

Cristograma: em amarelo, representa a presença de Jesus Cristo como rei e centro, princípio e fim de todas as coisas. O fundo vermelho representa o sacrifício na cruz como meio de salvação.

Listel: em letras pretas sobre fundo prata, traz a inscrição “DEVOTIO MARIAE ACARYENSIS GLORIA” (Devoção a Maria, glória do acariense), que reproduz trecho da homilia proferida pelo acariense cardeal Eugenio de Araújo Sales na missa de 15 de agosto de 1995, celebrando os 160 anos da criação da paróquia de Nossa Senhora da Guia.

Devemos aprender e compreender o significado da basílica como uma coroação histórica. O ato de transmitir tamanho valor à nossa posteridade será uma forma de gratidão aos nossos antepassados, um meio de manter viva a história religiosa que eles começaram e que é nosso papel dar seguimento.

Uma nova realidade provavelmente se instalará, Acari poderá virar destino de peregrinações e turismo religioso. Que Nossa Senhora da Guia, de sua basílica, nos dê sabedoria para manter nossa tradição de religiosidade e de acolhimento cristão a quem chega. E que nos guie para operar as mudanças em benefício da obra pastoral e da comunidade que vimos construindo desde que o pequeno povoado foi se formando ao redor da capelinha erguida por Manuel Esteves de Andrade.

Os coroinhas começaram a chegar para, liderados por Canindé, grande sacristão que formou gerações deles, iniciarem a salva do meio-dia. Hora dos avisos paroquiais bradados pela voz alegre dele nas difusoras instaladas nas torres frontais e na parte mais alta do fundo da basílica – parte integrante do grande projeto de sonorização que desenhei, ajudei a comprar (com outros três devotos) e instalei (com técnicos especializados que trouxe de São Paulo e Brasília) na grande reforma de 2013.

Estava próxima a hora de o campanário oferecer o belo ritual da linguagem dos sinos. Fui saindo devagar e desci a escadaria solene. Restava o tempo certo de chegar à mesa do almoço e ouvir o sinal da fé sertaneja espalhado sobre nossa comunidade em ondas sonoras. Por coincidência, o som do carro começou a tocar algo que pareceu coisa combinada.

Já bate o sino, bate na catedral

E o som penetra todos os portais

A igreja está chamando seus fiéis

Para rezar por seu Senhor

Para cantar a ressurreição

Já bate o sino, bate no coração

E o povo põe de lado a sua dor

Esquece a sua paixão

Para viver a do Senhor

 

Agradecimentos a Adriano Campelo, Canindé Medeiros, Fabiano Dantas, Jobel Araújo, Maria Izabel Medeiros e Netinho de Pinta.

Trechos de:
Hino de Nossa Senhora da Guia (Felinto Lúcio Dantas-Palmira Wanderley)
Paixão e fé (Tavinho Moura-Fernando Brant)

14/08/2021

A velhice das dobradiças

Bico de pena e aquarela

Ana Nunes 

Passados dias talvez anos falei de uma velhice que não vem só nas rugas e no esquecimento, no andar pesado e nas dores do inverno, mas também nos jardins dos envelhecidos. No começo do descuido, na ervinha sem vergonha que invade o espaço das flores, nas folhas murchas que se debruçam no concreto, no desolamento do musgo que sobe na parede e tenta em vão chegar à janela e espiar lá dentro.

A velhice vem em toda a casa do envelhecido.  
Nas casas abonadas ela está no amontoado dos móveis escuros e pesados do passado onde a poeira sorrateira faz cama nas dobras da madeira e nos puxadores vaidosos. No vão trabalho da cera e do aspirador de pó que também sofre as cores do tempo e já nem aspira tanto assim. E aparece também no cheiro de caixas fechadas, de uma antiga alfazema nas roupas que nem servem mais.        
Nas casas menos ricas que lutam dia a dia para permanecerem o que já foram esse tempo passado de presente sem talvez futuro aparece nas almofadas desbotadas, no brilho desgastado da mesa de jantar que traz memórias em sulcos e riscados de desenhos de netos, na sombra de um vinho derramado, no esgarçado de um lençol, no fiapo quase buraco da toalha de mesa.   
Nas casas desfavorecidas da pobreza, esse tempo sem devaneios se instala na parede descascada, no prato branco de beirada lascada, no chão onde o cimento já se faz fino de tanta vassoura e detergente. Entre sofás puídos que se disfarçam com mantas floridas e uma cadeira que faz do apoio na parede sua perna quebrada, a tv nova que agride sem mercê o tempo que passa no caixote da feira.

Tudo isso porque, desde muito, me entristecem e me fazem pensar as marcas inglórias que o envelhecido encontra na sua cozinha. E não importa se abonado ou abandonado! Se com jardins de flores murchas deitadas na calçada ou apenas uma escada para se chegar. Os armários de cozinha são cruéis quando falam de tempo.        
A primeira vez que me dei conta foi quando voltei, depois de um bom tempo, à casa da minha avó que morava em Macondo onde a poeira vermelha tudo cobre e onde parece que o tempo não passa. Mas passou na cozinha onde essa alemã brava e ordeira reinava absoluta entre brilhos e aromas. Os armários então, cansados de servir, já não fechavam direito entre parafusos soltos e trancas emperradas. Vi então o abandono da minha avó envelhecida, seu DNA alemão ou polonês, sei lá, quem se ocupa disso é minha irmã que herdou os genes, desgastado no caminho da vida.       
Um choque de verdades onde a gente percebe ou se questiona o que vale a pena.        
Para onde leva essa exigência descabida no trato com os sabores e o destrato das panelas e a chatice do fogão com o leite derramado. Tudo em vão?

Mais uma vez a realidade me parou no corpo e nos pensamentos quando fui ao velório de uma tia torta, rica de passado, bonita e bem vestida, de olhos azuis curiosos e coração generoso, que teve o luxo de ser velada em casa. E lá, nessa casa ampla e distinta, me deparei com o armário sob a pia da cozinha lamentando a falta de uma porta. Assim como um sorriso lamenta um dente perdido! Muito triste, muito real, muita vida corrida! E a angústia me assola de novo e traz perguntas sem respostas.

Na cozinha da minha querida mãe a história se repete. Mas tomamos providências e agora tem até uma porta camarão, seja lá o que isso for! Pena mesma que ela tenha aproveitado tão pouco dessas portas novas e gavetas ágeis acolhendo seus talheres e panos de prato alvejados! E passados tantos anos ainda me pergunto por quê. Por que a pressa de ir embora e deixar sua cozinha toda renovada. A incerteza do tempo... a vã labuta do dia a dia.

E agora cabe a mim chorar na cozinha dobradiças que perderam parafusos e portas que se recusam a fechar. Portas exigentes que só obedecem a comandos conhecidos como acomodá-las juntas antes de fechar, um tapinha aqui, um tapinha ali... quem conhece, sabe! Como sabe!  
Uma tira de fórmica rebelde que se solta inteirinha, como pode? Como um breve aviso da brevidade da vida! E as perguntas sem respostas continuam as mesmas mas a crueldade do inútil se faz real.  
Mas já providenciamos consertos. Ou concertos? Porque soa como música aos meus ouvidos!

Bem fez minha querida prima Léa que trocou tudo antes das falências múltiplas de porcas e parafusos e guarda agora sua louça em pompa e circunstância.

E viva a vida! Com armários ou sem! Porque o que vale mesmo é aquele cafezinho na cozinha, encostada na pia ou sentada num banquinho, até serve uma pequena escada, trocando uma conversa fiada e um riso manso com quem a gente gosta!   
E nessas horas não tem essa de armário velho ou panelas que não brilham!


07/08/2021

O descanso do sol

Açude Gargalheiras - fotografia de Heraldo Palmeira


Heraldo Palmeira

As enormes janelas de vidro estavam ali há anos sobre as mesmas paredes, descortinando a vista. Não sei se de tirar ou de dar fôlego, mas colocando diante de mim um arquivo vivo do tempo da infância e redivivo tantas vezes nos anos seguintes.

Escolhi a mesa do canto encostada na vidraça entreaberta. Garantia de brisa fresca do fim de tarde do sertão e cento e oitenta graus de paisagem com lajeiros, caatinga, passarada e água doce represada. Tudo sob o olhar silencioso da cordilheira de serrotes de pedras que terminou apelidando minha terra de Cidade das Cordilheiras.

Sim, estou no alto de um dos serrotes com aquele desfiladeiro ocupado por um mar de água doce – somos exagerados – ali abaixo. A grande parede curva de concreto fechou a garganta entre dois grandes serrotes e criou o açude Gargalheiras, ponto turístico e nossa grande riqueza quando a terra fica estorricada pela seca.

Uma das minhas grandes aventuras em tempos idos foi atravessar a parede de concreto por dentro, numa escadaria infinita e úmida em descida até as profundezas e depois subida (e vice-versa no retorno), onde pequenos lagartos, pássaros em seus ninhos escondidos, insetos e até serpentes transitam como se estivessem em casa.

Apesar das águas abundantes trazidas na última estação das chuvas, o nível do grande açude, que os de outras bandas da Terra tratam por represa, está por volta da metade apenas. É mesmo muito leito para inundar e não costumamos ter dilúvios no semiárido nordestino, onde o clima é quase sempre quente e seco e vamos aprendendo desde cedo a conviver com o tal do mormaço.

Aqui chamamos de inverno o período em que as chuvas caem driblando a regularidade da ausência. Elas chegam quase sempre no verão e no outono – não interessa, é nosso inverno e pronto! Às vezes, passam anos sem dar sinal, formando a seca que ganhou fama dolorosa na literatura, na música, no teatro, no cinema, nas artes plásticas e nos desvios de verbas oficiais. Uma realidade cruel que gerou gerações de retirantes, indústria de fisiologismo político e segue aguardando o milagre de uma tal transposição do São Francisco prometida desde os tempos do imperador Pedro II.

Nem eu nem o vento estamos interessados agora nesses fenômenos da natureza ou nas desditas humanas. Preferimos a brisa sempre presente no cimo da colina, aqui e acolá com um rugido ou um silvo, como se fosse exercício vocal passeando pelas extensões graves, médias e agudas. Aqui e acolá ele desce veloz até à lâmina da água e mexe nela, como uma travessura de quem faz cócegas por brincadeira. Exímio, não mergulha, não arrisca se afogar.

Lá longe um cristão atravessa de um lado para outro remando sua canoa. É o fim do dia de labuta e a volta para casa levando provisões trazidas de alguma bodega da cidade, que em outros lugares aprenderam a tratar por mercadinho.

Foi preciso aprender a conviver em paz com as mudernidades, esses vernizes aplicados aos substantivos comuns que aprendemos com os antepassados. Foi preciso aprender a não entrar em choque ao encontrar pela estrada meninos vaqueiros cavalgando vestidos em seus couros inferiores apenas – os gibões superiores substituídos por camisetas de algodão. Sem contar os lendários chapéus de couro trocados por bonés de tecido com a logomarca de um time nova-iorquino de beisebol – a pirataria, tratada coniventemente como “indústria de réplicas”, não alisa, seus tentáculos enormes estão em toda parte.

Uma disrupção – olhe eu aí metendo verniz substantivo na ruptura dos costumes – que também permite àqueles meninos chicotear smartphones no alto das selas. Seria mesmo surpresa encontrar um belo aplicativo de GPS instalado ou um chip inserido num cavalo mais valioso? É... as antenas precisam estar ligadas, há um tal de georreferenciamento demarcando os aboios de hoje em dia.

Alguns poucos quilômetros adiante, na planície, o nosso arraial querido está enfeitado por conta da Festa de Agosto, montada a cada ano em honra da padroeira – aqui somos descendentes de índios nativos denominados “caboclos bravos”, europeus colonizadores, judeus sefarditas (da península Ibérica) em fuga da Santa Inquisição, e ainda temos o toque materno de Nossa Senhora da Guia.

Não há imodéstia, é apenas telurismo quando dizemos “A Festa de Nossa Senhora da Guia é a melhor festa do mundo. Viva Nossa Senhora da Guia!”. Fica ainda mais simbólico dito por Gata, o músico decano da Filarmônica Maestro Felinto Lúcio Dantas, verdadeiro doutor do ritmo, grande seresteiro, tirador de onda profissional e uma espécie de alegria ambulante da cidade, porque, ao fim, ele acrescenta “E me dê licença!” como uma vinheta de assinatura.

Não há pedantismo quando digo que já vi muitos pôres do sol por aí. Os de Colonia del Sacramento, praia do Jacaré, Ouro Preto, Punta Ballena, Nazaré, Arpoador, Key West, serra do Caraça, San Francisco, serra da Mantiqueira ficaram inesquecíveis na memória de viajante. Mas tenho o meu, também inesquecível e que posso renovar todos os anos, quando me retiro aqui, em devoção à padroeira mãe da minha fé – cuja matriz acabou de ser elevada à dignidade de basílica menor pelo papa, mais um motivo para estufar o peito!

É lá onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada e as melhores expressões da nossa devoção. É cá nas alturas da minha colina que louvo o Sol do fim da tarde, indo embora sem querer ir, enquanto o vento, senhor das cordilheiras, se apresenta em rugidos e silvos trazendo bandos de pássaros para fazer algazarra nas ramadas da caatinga.

Sim, existem pôres do sol majestosos pelo meio do mundo crentes que são os mais bonitos de todos! Tudo bem, não há sentido em contrariar os vaidosos, todo narciso acha feio o que não é espelho.

Acredite quando digo que até hoje não encontrei nenhum pôr do sol que me desse de presente as melhores memórias da infância, inclusive com bandos de galos-de-campina que meu pai adorava e de concrizes que eram paixão da minha mãe. E nem me importo quando aplicam vernizes aos nossos substantivos para chamá-los de cardeais e corrupiões.

Agora sinto saudade e preguiça, o lusco-fusco está deixando minhas letras sonolentas e tudo ao redor em meia-tinta. Já está a caminho uma noite envolta em silêncio e escuridão, um grande benefício para a alma e que anda cada vez mais raro num mundo que resolveu imitar o Sol e ficar acordado o tempo todo.

O astro rei, mais sábio, aliou-se com a Lua e finge que dorme na noite de um lado do mundo enquanto brilha em dia na outra banda da Terra. Assim, inventou nascente e poente e dia e noite para reinar como se não houvesse amanhã.

Amanhã, talvez eu esteja aqui esperando o Sol chegar pelo outro lado do horizonte. Amanhã, talvez eu apenas chegue aonde está o dia eterno do Sol, depois de viajar a noite inteira no meu sono enquanto o mundo gira e eu não consigo ficar parado no tempo. Amanhã, talvez haja só a lembrança de ontem e a expectativa do futuro. Amanhã, talvez...

Trechos de Cálix bento (Tavinho Moura) e Sampa (Caetano Veloso) citados no texto.

  

03/08/2021

Os Sete Lemas dos Neuróticos Anônimos

 

Fotografia: Reprodução - paraibaonline.com.br

Antonio Carlos Rocha

São sete pequenos princípios de grande importância para vivermos melhor. Aparentemente tão simples, mas de grande significado, desdobramentos e reflexões. Numa leitura apressada podem até parecer risíveis. Eis os sete indicadores da felicidade, a nosso ver. Claro, lógico e evidente que existem muitos outros indicadores das alegrias do viver, mas, estes são básicos, digamos, pontos de partida:

1 – Fazer primeiro as coisas primeiras.

2 – Devagar se vai ao longe.

3 – Viver e deixar viver.

4 – Viver na Graça de Deus.

5 – Esquecer os prejuízos.

6 – Recomendar-se a Deus incondicionalmente.

7 – Só por hoje.

Vejamos o item primeiro: acontece que muitas vezes temos várias coisas ao mesmo tempo. Então precisamos fazer um lista de prioridades, caso contrário corremos o risco de tentar fazer três ou mais compromissos ao mesmo tempo e não dar certo. Isso vai nos causar estresse e talvez ansiedade, desespero, nervosismo...

O segundo nos faz lembrar um antigo ditado popular: “Eu vou devagar porque tenho pressa”. Em muitas ocasiões trocamos os pés pelas mãos, na correria da Vida e a emenda pode sair pior do que o soneto. Logo, calma e toque a alma para a frente.

O terceiro é importantíssimo, como os demais. Deixemos os outros viverem as suas vidas como querem, claro – no sentido de pessoas adultas, maiores de idade. Quantas vezes, pelos mais diversos motivos implicamos com a roupa, com o cabelo ou com a sexualidade de cada um. Pura perda de tempo. Viver e deixar o próximo viver como ele quer para que possamos viver melhor. Reside aqui um dos baluartes da Democracia, aceitar o outro, o diferente, o contraditório, ainda que não concordemos.

O quarto também é belo, O Deus aqui, como já nos referimos em artigo anterior, é Deus como cada um o concebe, sem preconceitos, sem fanatismos. E mesmo que a pessoa não tenha Deus ou seja ateia. Então sugere-se viver na Graça da Natureza, do Ecossistema.

O quinto acho belíssimo. De que adianta ficarmos chorando o leite derramado? O que passou... passou... Não guardemos mágoa de ninguém. Raiva, já está mais do que provado pela Ciência, faz mal à saúde. Também podemos dizer sobre este lema: desapegar-se, desligar-se, não esquentar a cabeça...

A sexta recomendação também é boa, ou seja, ficarmos integralmente, sob a Luz do Criador, qualquer que seja a forma que o reverenciamos. Eu não seguro problema, dificuldade, chatura... passo tudo para as mãos de Deus e assim ele me ajuda a resolver, por isso, sou sempre grato, vivo com Gratidão por todas as coisas, pessoas e situações.

Por fim, chegamos à sétima proposta, aparentemente simples, tola, mas como falei antes, uma frase fundamental, a nosso ver. Se ocorrer algo bom, tenha consciência que logo depois pode passar e cabe a nós, trabalhar e retrabalhar o fato para que não fiquemos nos lamentando, nos lamuriando, fazendo-nos de vítima, de pobres coitados, uma esmolinha, uma migalha pelo amor de Deus...

Por outro lado, se o que estamos passando é muito difícil, muito doloroso, muito falho, tenhamos consciência de que a chatura vai passar. Então, levantemos a cabeça e sigamos em frente.

Este artigo foi só uma abordagem, não esgotamos o assunto, existem muitas outras colocações, visto que os N/As são milhares em todo o mundo. E cada um pode ter uma visão diferente, outro ponto de vista... eis a necessária Democracia.

 

25/07/2021

Brincadeira da vida

 

Argila, vergalhão e arame - Ana Nunes

Ana Nunes

Do vergalhão curvado em vão

Sobrado em tiras de mentiras

Teci o solo e a terra.

E cavei buracos

E completei o chão.

Fiz o esteio da vida

Em volta de povoação.

Na argila sem memória

Plasmei moradias primitivas

Empilhadas no ferro fundido

E engarranchei a igreja no morro

Em escadas sem corrimão.

O arame fino foi amarras e fundação.

Com ele mesmo alinhavei casas

E costurei vãos.

Como corda segurou roupas

Que acharam secar ao sol.

Combinei janelas e portas

Para juntar paredes

Num bordado de relevo

De fazer falar.

No ensaio sem sentido

No embate da solidão.