Glorinha Oliveira - capa de disco (fotografia de Giovanni Sérgio) |
Chorei,
chorei
Até
ficar com dó de mim
E me
tranquei no camarim
As perdas são certas, as notícias
delas são péssimas. E ouvi a notícia no rádio, dada com suavidade por dois
amigos do rádio. Aliás, foi no rádio que tudo começou.
A voz nunca
teve igual por nossas paragens, o vibrato era celestial, não havia senões na
afinação. Anos e anos e anos de música, como se a vida não tivesse dado trancos,
como se os barrancos vencidos com tanta dignidade fossem apenas melodias esquecidas.
Todos ao
redor já disseram tudo, as frases e adjetivos que não podiam faltar. Seria
melhor que não tivesse chegado a hora de serem ditos, mas o Tempo é senhor de
tudo. Traz e leva sem perguntar, sem querer saber o que a gente acha.
GLORINHA
OLIVEIRA foi assim, maiúscula! Eu era um menino velho besta – como dizemos “aqui
em nós” –, na altura dos meus catorze anos. Comecei a vencer a disputa das
promoções com os ouvintes e ganhar os brindes do programa Show da manhã,
apresentado pelo querido e saudoso Ademir Ribeiro. Isso era 1974, Natal uma
deliciosa província feliz, aquilo era a histórica Rádio Poti, emissora dos
Diários Associados. Que um dia foi Rádio Educadora de Natal. Que um dia teve
uma moleca magrela fazendo campanha para arrecadar dinheiro destinado à sua construção.
De tanto
ir buscar meus brindes no programa de Ademir Ribeiro – a entrega era sempre aos
sábados –, terminava vendo aquela senhora dentro do “aquário” começando a
apresentar o programa Almoço musical, que começava depois do Show da manhã.
Comecei a entender quem era quem naquele jogo do bicho.
Foram uns
três anos nessa onda AM. O suficiente para, já sem interesse naqueles brindes
de ouvintes, eu usufruir um prêmio maior, ser o responsável pela programação
musical do Almoço musical dos sábados. Como se não bastasse, aquela
senhora distinta me colocou sentado ao lado dela, me transformou em coapresentador
do programa!
Aquilo virou
uma farra tremenda, nos divertíamos a valer. De vez em quando, eu resgatava a
GLORINHA radioatriz com a personagem Dona Escolástica, uma velha
ranzinza que chegava aos gritos e fazendo balbúrdia. Aqui e acolá era a vez de Lili,
a menininha criada a partir da interpretação que ela fazia, com voz de criança,
para a canção americana Hi, Lili, hi, Lili, hi lo, tema do filme Lili
(1953).
Parecia coisa
de maluco, eu conversando com uma velhota impaciente e uma menininha inocente
ao mesmo tempo, dentro de um estúdio de rádio. Muitos ouvintes achavam que as
personagens eram reais e estavam presentes no programa, tamanho o talento dela
para aquelas incorporações (de personagens) e de fazê-las conversar
alegremente.
Naquele tempo
éramos todos muito precoces na busca e no amor pela arte. Eu já vivia enfurnado
na produção de shows, nas picapes das boates (Apple e Augustus) e na noite da
cidade. Alcateia Maldita, Almir Padilha, Arruda Sales, Babal Galvão, Banda Imaginária,
Carlinhos Moreno, Carlos Pontanegra, Carlos Santa Rosa, Carlos Zens, Cleudo
Freire, Fluidos, Galvão Filho, Gato Lúdico, Lelé Alves, Léo Ventura, Nelson Coelho,
Pedro Mendes, Rachel Grossman, Romildo Soares, Sueldo Bibiano, Tarcísio Flôr, Tico
da Costa, Wigder Valle... Estávamos todos colocando as caras à tapa, pisando os
primeiros palcos, fazendo o circuito dos bares, participando de festivais. Onde
houvesse música e horizontes, lá estávamos todos nós.
GLORINHA
já era soberana há muito tempo, a nossa mais querida e acolhedora unanimidade. Continuava
ativa na noite e passou a me levar para cantar junto em bares. Passamos um bom
tempo na Galeteria do Chiquinho, na esquina da Prudente de Moraes com a Miguel Castro.
GLORINHA
e Toinha Palmeira, minha mãe, tinham a mesma idade, vieram ao mundo no mesmo
ano da graça de 1925, com diferença de poucos meses entre suas datas de
nascimento. Tornaram-se, por minha causa, amigas. Eu pedi a mamãe o direito de
chamar GLORINHA de mãe musical – ela não precisava abrir seus palcos para mim,
aquilo foi mesmo coisa de mãe.
Nas nossas
noitadas, cantar Ave Maria no morro, o clássico de Herivelto Martins, virou
obrigatório, uma espécie de carimbo musical dos nossos duetos, as pessoas
ficavam pedindo.
GLORINHA seguia
inteira, mas distante do reconhecimento que merecia. Aliás, ela mesma me disse
algumas vezes, andava cansada das tradicionais tapinhas nas costas, das
palavras bonitas, dos títulos que marcam apenas papel de jornal e falas ao
vento. Até ali, haviam feito com ela discos que não foram suficientes para
traduzi-la no tamanho exato, muito menos estavam à sua altura.
Eu já não
morava em Natal, mas comecei a matutar a respeito de um álbum concebido para ela
como alta-costura, na medida certa e exata. Contei com quatro amigos, o parceiro
musical Nelson Freire, o jornalista Roberto Medeiros, a professora Patrícia
Whebber e o jornalista Zé Wilde, acompanhando de perto com apoios diversos,
sugestões e entusiasmos.
É claro
que a aventura de fazer um disco no Rio de Janeiro àquela altura da vida levou GLORINHA
aos tempos de mocinha assustada com o mundo. Claro que ela estava insegura nos
primeiros dias, o que era ótimo para apimentar as emoções que precisariam ser entregues
à cápsula daquele magnífico microfone Neumann. Não tive dúvidas em levar na
viagem o filho Aécio Oliveira, seu fiel escudeiro. Que ainda nos brindou
tocando harmônica em uma das faixas. Não demorou, ela estava senhora de tudo,
com todo mundo no bolso.
Eles ficaram
hospedados num hotel da rede Luxor, do outro lado da calçada do prédio em que parte
da minha família vive, no bairro do Leme. Todos os dias, Alduir Oliveira ou PC
Vieira, nossos carioquíssimos transportadores, nos pegavam e traziam. Nos fins
de semana, nada de gravações. Saíamos a bater pernas e tomar umas biritas,
porque ninguém é de ferro e aquilo era Rio de Janeiro em tempos bem mais
amenos.
Eu não
tive qualquer dúvida, o nome do álbum seria Meu tempo, o tempo dela.
Compus a música-título em parceria com Pedro Mendes. Um reggae, exatamente
para tirar GLORINHA daquele armário cheio de amarras do tempo. Claro que tive
todo o cuidado com o repertório e os arranjos que ajudei a conceber, mas eu
sabia o tamanho da fera, da versatilidade tão pouco explorada. Claro que eu
cantei a música junto, como forma de ela se sentir segura para dar passos tão
distantes da zona de conforto. E foi uma delícia, parecia que a gente estava
surfando num litoral feliz, abrindo o álbum como quem entra no mar e vai navegando
sob um céu de estrelas.
Escolhi algumas
canções conhecidas, recebi outras de Babal Galvão, Diógenes da Cunha Lima, Nelson
Freire, Regina Justa e uma parceria da própria GLORINHA com Fernando Luiz. Também
compus em parceria com João Salinas a música Tema, uma das coisas mais
emocionantes onde pus minha assinatura – perdi a conta de quantas vezes chorei enquanto
produzia essa canção. Lembro dos olhos arregalados que traduziram o enlevo da
cantora Jane Duboc, quando nos visitou no estúdio!
Altamiro
Carrilho, Ademilde Fonseca, Clauton Alves (Neguinho), Milton Guedes, Mingo
Araújo, Sérgio Cleto e Victor Biglione aceitaram meu convite e vieram ajudar na
festa, deixando participações especiais memoráveis.
Escolhi grandes
músicos para executar os arranjos escritos pelo inesquecível maestro Sérgio
Cleto, um amigo extraordinário que tanto ajudou nos meus caminhos no Rio de Janeiro,
e que certamente recebeu GLORINHA agora nos portões do céu.
Na hora
em que ela foi colocar a voz em Tema, pediu que eu ficasse lá dentro,
juntinho dela. Paramos a gravação várias vezes, emocionados. A partir de
determinado momento, estendeu a mão e ficamos de mãos dadas, como se quisesse de
mim um pouco mais do espírito da música. Imagino que se não tivesse acabado eu
teria perdido um pedaço do coração.
Como
posso falar do privilégio de ter estado ali ao lado dela, em silêncio litúrgico,
ouvindo-a cantar redundantemente divina, palavra a palavra, e de forma
definitiva, uma música que Salinas e eu havíamos composto especialmente para
ela?
As
gravações foram avançando e chegamos ao momento de cantar juntos Ave Maria
no morro. Falamos um pouco a respeito da sorte de estarmos ali, com um clássico
esperando por nós. Não deixamos de lembrar que tínhamos um elemento especial,
tudo que aquele dueto significava em nossas vidas, tantas foram as vezes repetidas
entre amigos, bebidas e aplausos nas mesas das noites da vida. Chegamos à
conclusão de que seria uma oração musical de agradecimento a Maria. E assim
fizemos.
A gravação
de História difícil, um famoso “trava-língua”, foi sensacional! Primeiro,
pela raridade da música, de poucos registros. Depois, pela presença
ilustríssima da também potiguar Ademilde Fonseca, considerada a rainha do choro
cantado, e do monumental flautista Altamiro Carrilho.
A sessão
começou pelo reencontro de três velhos amigos que há muito não se viam, afetos
e gargalhadas a granel relembrando boas histórias. Na hora da função, as duas amigas
no velho duelo da cantoria em grande velocidade. Ao fim, empate técnico justo e
merecido daquelas duas vozes tão especiais.
Todos os
que naqueles dias de 1999 estiveram no estúdio novinho em folha na Barra da
Tijuca – foi GLORINHA quem estreou a agenda de gravações –, fizeram questão de
se curvar respeitosamente diante de uma grande dama da música. Eram todos
especialistas com anos de estrada, tiveram a exata noção do que estavam vendo, vivenciando
e, mais do que tudo, ouvindo. Era uma mulher de setenta e quatro anos com uma
voz cristalina, plena em sua música de vida inteira e aberta a todas as ousadias
que propus como produtor.
Claro que
também nos divertimos muito, demos risadas incontáveis nos chistes da alegria
sempre companheira de GLORINHA. Fizemos juntos o álbum Meu tempo, e hoje
entendo de onde tirei esse nome para o disco e para a música-título: GLORINHA guarda
na voz as chaves do tempo.
Deixei o
estúdio com a convicção antiga renovada, e que seguirá perene, de que GLORINHA é
um diamante verdadeiro. Agora atemporal.
Quem sabe,
um dia, a gente tenha a glória de cantar no céu Ave Maria no morro diante
de Maria Santíssima?
Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo
assim
Trechos
de Bastidores (Chico Buarque) citados no texto.
Ouça aqui Meu tempo, Tema e Ave-Maria no morro: