Capa por Paula Taitelbaum para a edição digital da Editora Piu |
Wilson Baptista Junior
Nesta
pandemia tenho lido alguns livros interessantes. Um deles foi um livro
publicado pela primeira vez dois séculos atrás, em 1821, com o título inusitado
de “O Piolho Viajante – Viagens em Mil e Uma Carapuças”, de Antonio Manuel
Policarpo da Silva.
O
narrador é um piolho (isso mesmo) que viaja por setenta e duas cabeças – na época
piolhos eram muito comuns qualquer que fosse o nível econômico e social de seus
hospedeiros – e de caminho vai nos contando um pouco da vida e atitudes dos seus
portadores. E com isso fazendo uma crítica divertida e muitas vezes mordaz à
sociedade e aos costumes da época.
O livro
chegou a ser uma das obras mais lidas no Brasil, na época, e o imperador Dom
Pedro I usou como pseudônimo para suas escritas em jornais o apelido “Piolho
Viajante”. Por isso o seu retrato na capa que ilustra o post.
As cabeças
são de pessoas as mais variadas – de estudante a filósofo, de poeta a juiz, de
boticário a médico. E o narrador se isenta de qualquer veleidade literária ou
filosófica (embora o autor filosofe por ele nos prólogos que antecedem cada uma
das partes em que se dividem os capítulos) ao nos avisar que “Sou piolho,
mas o meu espírito é verdadeiro. Não sou capaz de lisonjear e também incapaz
sou de levantar testemunhos. Sou um verdadeiro e hábil retratista”.
O autor começa
o livro explicando como conseguiu a obra do piolho:
“Tendo-me
ocupado em algumas coisas sérias, nunca me renderam nada. Eu, que sempre fui
muito inclinado a traduzir línguas alheias, ainda que, a falar verdade, não sei
muito bem a minha, encontrando este manuscrito em poder de um Mouro, que esteve
cativo em Argel, e achando os caracteres muito estranhos, porque alguns
pareciam-me caranguejos, fui desenganado pelo dito Mouro, mas debaixo de muito
segredo, (e o mesmo peço a todos, que este lerem) que era língua piolha, obra
antiquíssima, feita no tempo em que se inventaram as esteiras. E todos sabem
que as esteiras é invenção dos Orientais, e que ainda hoje são as suas camas.
Esta obra foi achada numa terra que ainda se não descobriu, mas que brevemente
se espera esteja descoberta.
E passa a
palavra ao Piolho, que nos informa que nasceu na Ásia e, com a morte do seu
pai, catado pela pessoa que hospedava a família depois de sentir coceira por
causa de uma briga entre ele e o professor que namorava a mãe com a desculpa de
dar lições ao filho, o que resultou na morte dos dois rivais, sua mãe “vendo
em mim a causa de sua desgraça, além de eu já estar bastante robusto e fazendo
bem por viver, pôs-me à vida, dando-me alguns conselhos e um abraço, de que lhe
fiquei muito obrigado, porque entre nós há pais que nem isto dão.”
E com
isso o Piolho foi procurar sua primeira cabeça (ou “carapuça”) fora de casa.
Como são
ao todo setenta e dois capítulos, embora curtos, correspondendo às setenta e
duas carapuças, vou falar aqui apenas de um ou outro mais significativo, que
interessantes são todos eles.
Esteve na
cabeça de um dono de armazém, que tirando parte de honesto roubava no peso.
Vale a pena mostrar algumas frases:
“Numa
cabeça destas é que é estar! Então que caridade de homem! Ensinava o público a
ser económico, tirava nos molhos de carqueja ramos para fazer mais e dizia: —
Quanto mais grandes são, mais gastam.
Os
queijos, para serem mais frescos, punha-os em parte onde houvesse água para
receberem aquela humidade; e ainda que entravam mais no peso eram menos
salgados. Manteiga sempre a pesou em papel grosso e sujo. Tinha uma receita
para disfarçar o vinagre que ninguém diria senão que era água. Medida de
azeite era como alcatruz, sempre tinha buraco no fundo. Medida de pau, toda
tinha dois fundos, o natural e outro pela banda de dentro.
(...)
Ouviu
dizer uma vez a um médico que a aguardente secava e mirrava a gente por ser um
espírito muito forte. Olhe lá, não a tornasse ele a vender sem lhe botar
primeiro uma terça parte de água! Está na neve: Sabem o que ele fazia ao arroz
para lhe tirar a pedra e não entrar no peso? Lavava-o, esfregava-o e botava-lhe
areia e desta forma unia o asseio ao benefício.”
E por aí
vai.
Esteve na
cabeça de um boticário, especialista em vender aos clientes receitas que de
nada valiam e convencê-los de que eram úteis:
“Tinha
também o tal boticário uma receita para olhos que era coisa nunca vista e a um
seu vizinho que teve esta moléstia curou-o em três dias. Quero dizer a receita
por ser coisa útil. Meteu-o numa casa às escuras e depois sacou-lhe todos os
trastes da casa e pintou-lhe vários bonecos com carvão pelas paredes. Disse ao
homem que podia sair, que estava bom. O doente, que não viu traste nenhum em
casa, clamou que estava pior porque não via nada. Mas o boticário teimou que
era mentira e perguntava-lhe: — Vossemecê não vê estas pinturas pelas paredes?
— Vejo sim senhor, respondia o pobre homem. Reperguntava-lhe: — E vossemecê,
antes de eu o curar, via-as? — Não senhor. — Então para que se queixa, se
vossemecê está vendo tão bem? Até vê o que não via antes da cura.”
Depois de
muitas peripécias foi ter à cabeça de uma cigana, daquelas que tirava a sorte e
lia a buena dicha. Que, para convencer um velho em que estava de olho de que
era capaz de adivinhar qualquer coisa, lhe disse:
“— Eu hei
de adivinhar quanto vossa mercê traz no pensamento e sente no coração. Primeiro
que tudo, mande vir um copo de água e umas brasas com alfazema. Mande recolher
todos aos seus quartos, as janelas fechadas, as portas da rua abertas e quatro
velas acesas. Mande vir tinteiro e papel, retirem- se todos para dentro, feche
as portas para lá e em eu dando três espirros, saiam, abram as janelas, e leia
o que estiver escrito no papel. E se não for tudo verdade, eu corto a cabeça.
Mas é preciso cuidado em não espreitar, senão tudo se perde e o mesmo é preciso
para quando vossa mercê a fizer, depois de eu lhe ensinar.
Fez-se
tudo como a arengueira quis, estando todos com a boca aberta e eu vendo em que
parava aquela tramoia. Que foi apenas a cigana se viu só na casa, e com todos
fechados, sacou as velas dos quatro castiçais (que eram de prata), pingou sobre
as bancas onde as segurou, agarrou numa bandeja de prata que estava sobre a
banca de um tremó e depois escreveu sobre o papel estas palavras: — Levo
quatro castiçais e uma bandeja. Desceu pela escada abaixo, pôs-se ao fresco
e eu com ela, que senti bem não ver a espera dos três espirros, mas creio que
ainda iria a horas, porque lá estarão à espera pois ainda não se deu o
primeiro. E então, adivinhou ou não adivinhou? E é o que tal cigana sabia
fazer. Era uma embusteira redonda.”
E por ali
à frente foi o nosso narrador, que se fossemos falar de todas as cabeças em que
andou melhor seria se copiássemos aqui o livro, o que não posso nem quero fazer
por respeito aos herdeiros do autor. E quanto mais interessante a cabeça maior
seria o trabalho do copista.
Andou nas
cabeças de procurador, de estudante, de mentiroso, de homem ciumento, de moça
formosa e solteira, de viúva rica, de corretora de criadas, que ensinava a
servir e a roubar, de bêbado, de político, de dentista, de mestre de esgrima, de
estalajadeiro, de caseiro de quinta, de arrendatário e muitas mais. E a
história de cada uma dessas cabeças é uma crônica deliciosa de época e de
costumes misturada com os esforços de sobrevivência do narrador sempre ameaçado
pelas unhas dos seus hospedeiros.
Ao leitor
que se interessar recomendo o livro, existe, foi reeditado e anda por aqui em
novas roupagens nas casas dos livreiros e nessa coisa chamada a nuvem, que no
seu tempo só trazia a chuva. E perceberá ao ler que muita coisa que deveria ter
mudado mudou pouco, ou nada, daquele tempo para cá...
Que leitura antiga ...e divertida
ResponderExcluirImaginação fértil !
Como sempre gosto dos seus comentários
E esta pandemia dá lucros para todos nós
Um abraço e parabéns pelas bodas de ouro, dia 8, para vc e Ana desejando ao casal uma união sempre harmoniosa ❤️
Prima Léa,
Excluiro livro é muito divertido, sem deixar de ser uma crítica porecisa.
Muito obrigado pelos votos de Bodas de Ouro, e um abraço do Mano
1) É a terceira vez que tento postar.
ResponderExcluir2)Ótima resenha, parabéns Wilson !
3) O livro me pareceu muito bom.
Mestre Antonio,
Excluiro livro é bom, e como já está no domínio público está disponível na Web em vários formatos, se te interessar.
Os comentários do autor dariam para um interessante ensaio filosófico :)
Um abraço do Mano
Excelente sugestão, Mano.
ResponderExcluirNão li este livro e o desconhecia por completo.
Eu até vim ao Conversas para saber que história era essa de "piolho viajante".
Interessante a forma como o autor imaginou criticar a sociedade:
criativa, sarcástica, ferina ... que deve ter atingido seus objetivos.
Certamente alguns capítulos te fizeram rir, significando que nesses tempos difíceis, "rir é o melhor remédio", conforme título de algumas anedotas da antiga Seleções.
Um forte abraço, parceiro.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Amigo Chicão,
Excluirno livro realmente se ri a cada capítulo, e impressiona a justeza dos comentários do autor sobre a situação social da época, que, em muitos aspectos, não mudou lá grande coisa...
Um abraço do Mano
Excelente dica de Leitura de nosso ilustre Editor-Moderador Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR, "O Piolho Viajante", ( 1.821 ), de ANTONIO MANUEL POLICARPO DA SILVA.
ResponderExcluirDentro do espírito dos Antigos Romanos de Ridendo Castigat Mores, o Autor vai viajando na cabeleira de 72 Personagens e vai fazendo uma crítica bem-humorada de seus comportamentos.
O próprio Autor começa dizendo: Que tendo se dedicado a algumas Obras sérias, estas não lhe tinham rendido Nada...então produz uma Obra "Não Séria" na esperança de ter bom Rendimento, com a tradução da Língua Piolha de antiquíssimo Livro " O Piolho Viajante", teve grande sucesso e Rendimento.
Pelo trailer nos apresentado pelo Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR, ao viajar pela cabeça de Dono de Armazém, que tirando parte de Honesto, furtava no peso e além disso usava de todos os truques da Honrada Profissão, que iam desde adicionar água a quase todos os Líquidos, começando pela cachaça...adicionar areia fina ao arroz... etc, etc.
Parabéns, Excelente dica de boa Leitura, junto as nossas Saudações.
Caro Bortolotto,
Excluiré bem dentro do espírito de Juvenal e Lucilius, ainda que honestamente nos avisando antes que o seu objetivo era ganhar dinheiro, que o autor se propõe a nos engambelar com a história do livro que lhe chegou às mãos por acaso, truque muito usado por escritores, principalmente os de ficção científica, para se eximirem ante o leitor desprevenido das invenções mirabolantes que nos entregam. Creio que você se divertiria com o livro.
Um abraço do Mano