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18/02/2021

Amor nos tempos do Cólera

 

Ana Nunes - Guache e colagem

Ana Nunes

O título é emprestado de um amor antigo.

Mas o texto é meu. Mas tem tudo a ver.

Ao longo da vida coisas antigas vão ficando mais antigas. Vão perdendo sua significância e outras novas tomam seu lugar. Projetos conseguidos ou confiscados, desejos, afãs e entusiasmos vão ressecando, perdendo folhas no vento das estações. Natural, parte do viver.

A pandemia entretanto faz o tempo passar mais rápido no marasmo do confinamento. Isso é um paradoxo mas se existe a palavra é porque existe o fato.

E se, nesse tempo de um ano e uma vida, fiz planos, fiz falar atividades caladas, elaborei listas de coisas desejadas e não terminadas, tirei pó de livros de alongamentos, peguei o Cervantes de jeito, tudo aos poucos foi perdendo a graça. As listas caíram no desuso, os planos perderam sentido, os papéis aconchegados de volta ao escuro da gaveta, a vitalidade dos alongamentos adormecida no mormaço do dia, os sonhos escandalosos do Cervantes acalentados no sossego da noite. O cansaço triste das cruzes em terra fofa recente do cavar, a solidariedade vã ao luto alheio, o sem fim das bobices incríveis cotidianas secaram até o desenho no caderno preto.

Parece que estou brincando de ser feliz e alegre, de bem lidar com a saudade dos abraços e dos beijos, do cheiro dos filhos e do calorzinho dos netos, do perfume das irmãs. Pensei até ter perdido a sensibilidade e emoção no dia a dia do brincar de casinha.

Preocupei comigo e preocupei com tudo. E a perda da amiga antiga que, juntas nos ajudamos tanto, a alegria e gratidão dos velhinhos vacinados me fez chorar lágrimas esquecidas. Poucas e sofridas. E descobri que os calafrios que sinto temendo ser covid, são as lágrimas secas percorrendo a pele na sua identidade com a tristeza do mundo.

Pensei tanto tanto nesse ócio forçado entre arrepios e incertezas que descobri paradoxos e realidades, incoerências utópicas. Tudo tudo embrulhado em papel pardo amarrado com barbante em pacotes disformes bem dentro de mim.

Meu grande amor foi à primeira vista. Olhei para ele e disse para mim mesma, esse cara servia para casar comigo! Mas que coisa, não acredito em amor à primeira vista!

E quanto ao casamento, ah!, não acredito no casamento! Todo o realismo do meu pensamento racional abagajado com lampejos de psicologia, rabiscos de sociologia, vagas insinuações da biologia, me diz, casamento não é um bom projeto, não pode dar certo, não é justo lutar pelos próprios direitos e enfrentar a dureza da luta de duas liberdades todo dia, todo dia! Não pode ser desejo! E ainda criar crianças, o completo desafio do desconhecido! Não pode dar certo! É mais como os paulistas dizem, casamento começa no Paraíso e termina na Consolação! Muito barulho por nada.

E pensando assim chegam-me as Bodas de Ouro. Sem aviso sem permisso.

O que é isso? Sozinhos os dois velhinhos perdidos na quarentena dos mil dias, maldita e sombria, mantendo os queridos à distância, que vídeo é bom mas não é corpo, calor e cheiro?

E aí, as incoerências do pensamento, o pragmatismo das elocubrações pandêmicas viram ruínas como morro em tempo de chuva fina.

E ganho de surpresa a mais bela e amorosa festa virtual dos filhos! Perfeita no planejamento secreto de meses, no amor maior que pais podem esperar! Ganhamos, eu e o companheiro do caminho, eu incoerente de paradoxos e ele tranquilo de certezas, brinde de bolhas douradas e sabores inesquecíveis preparados por queridos sobrinhos, gratidão!, junto com os irmãos e irmãs numa live feliz e única, que de outras eu não soube! Uma reunião de amor cheia de bagunça e falas atropeladas, do jeito que gosto! Sem sobrinhos, isso é triste, porque a família é grande e a tela pequena. E foi pequena pra tanta surpresa e felicidade!

Fomos dormir, eu e ele, nós, felizes, ainda em bolhas douradas, entre lençóis macios de tantos fios e quantas tramas!

E vamos juntos até quando der.

Porque já o disse lindamente Gibran Khalil Gibran: 

“Enchei a taça um do outro, mas não bebais na mesma taça...     
 Pois as colunas do tempo erguem-se separadamente,
 E o carvalho e o cipreste não crescem à sombra um do outro”.   

18 comentários:

  1. Carlos Monteiro18/02/2021, 10:07

    Lindo texto Ana!

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    1. Querido Carlos,
      É um elogio a mais que você tenha gostado!
      Gratíssima .
      Até mais.

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  2. Nuuu!!! Como sempre maravilhosa!

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    1. Tita querida,
      Assim vou ficar "cheia de si"!
      Adoro estar na famîlia.
      Beijo.

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  3. 1)Parabéns ao casal Ana e Wilson pelas Bodas de Ouro.

    2) Eu ia escrever de brincadeira "Casal 20", então me veio a intuição e agora escrevo:

    3) Parabéns ao "Casal 20 Bodas de Ouros", ou seja, como budista explico: vcs estiveram juntos em vidas anteriores e continuarão juntos nas próximas, em outras dimensões.

    4) Bela crônica Ana e ilustração.

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    1. Querido Antonio,
      É tempo demais, você não acha?
      Foram carinhosos seus elogios.
      Gratidão.
      Até mais.

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  4. Léa Mello Silva18/02/2021, 12:27

    Tempos difíceis e o amor também sofre com a ausência das pessoas queridas
    Mas o casal continua firme e com presenças pela internet
    Sempre uma alegria e que tem seu lugar nos nossos corações
    Parabéns !

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    1. Léa prima do coração,
      Gratidão.
      Beijo.

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    1. Olá Agulhô,
      Maravilhas são as suas palavras postas em netos e recantos!
      Adoro seus escritos!
      Obrigada.

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  6. Flávio José Bortolotto19/02/2021, 14:49

    Prezada Autora Sra. ANA NUNES,

    Como a senhora Escreve bem e faz Quadros de grande bom-gosto. A Crônica
    " Amor nos tempos do Cólera", trata de nossas vidas nesse ano singular de Pandemia Covid-19 e seu consequente evitar aglomerações de Pessoas, começando por nossa Família, e tomando todos os cuidados para evitar o contágio, até a vinda das benditas Vacinas que nos imunizarão.

    Não resisti, Googlei, e descobri que o Título " Amor nos tempos do Cólera" é um Livro do famoso Escritor GABRIEL GARCIA MARQUES que conta uma história incrível mas com final Feliz.

    Nessa nossa "entocagem", ficarmos na toca para evitar contágio com Covid-19, temos mais tempo para pensar. E a Sra. ANA NUNES, grande Artista Plástica e Escritora analisa várias coisas.
    Sobre o "Amor a primeira Vista", sobre o Casamento, sobre a Família e as Amizades, Leituras, Pinturas e Desenhos no Caderno Preto...

    Sobre o Casamento digo que é melhor viver a dois do que só. Embora devamos ter espaços autônomos em abundância.
    O ETERNO quando mandou os Hebreus serem recenseados, estipulou que pagassem cada um 1/2 Ciclo de Prata, indicando com isso que cada um Ser Humano só seria COMPLETO, Casado.

    E assim, chega-se as Bodas de Ouro (50 anos de casado), mais Felizes do que se tivéssemos vividos só.

    Parabéns pela bela Crônica e seu ilustrativo Quadro de tempos de Pandemia, que graças as Vacinas imunizadoras, está chegando ao Fim.

    Parabéns e nossas Saudaçõs.

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    1. Querido Flávio Cavalheiro,
      Que esse amor nos tempos do corona seja paz nos tempos de vacina. Estão chegando.
      Vamos seguindo com os cuidados com o vírus e com o casamento. Acho que vamos bem, ainda não ficamos doentes e ainda estamos juntos.
      Fiquem também vocês dois cuidadosos na espera da abençoada vacina..
      Gratíssima pelo comentário generoso.
      Até mais.

      Querido Flávio Cavalheiro,
      Que esse amor nos tempos do corona seja paz nos tempos de vacina. Estão chegando.
      Pois sigamos todos nos cuidados e na expectativa.
      Um abraço para vocês.
      Obrigada muito pelo comentário e elogios.
      Até mais.



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    2. Flávio, desculpa - foram dois... Escolha o melhor :)

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    3. Flávio José Bortolotto20/02/2021, 13:02

      Prezada Sra. ANA NUNES,

      Fico com os Dois. Muito Obrigado.

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  7. Francisco Bendl19/02/2021, 16:27

    Quando penso que não serei mais surpreendido pela Aninha, me deparo com o aproveitamento do título de um livro de autoria do colombiano Garcia Marques, que se adapta perfeitamente aos tempos de hoje.

    Então, de novo, a nossa escritora, poetisa e artista plástica, nos manda um recado sub-reptício dizendo que, nós, os homens, não sabemos de nada!

    Logo, como eterno aprendiz da inteligência, cultura, sagacidade, de notáveis conhecimentos sobre o gênero humano que as mulheres possuem, inicio afirmando que as dúvidas são muitas, porém as certezas são poucas;
    Os desejos são vários mas, concretizá-los, apenas um que outro.
    Nesse vai e vem de frustrações, ansiedades, expectativas, decepções, alegrias, poucos momentos de felicidade, realizações, progresso, estudos, trabalho, distração, meios de se relaxar e descansar, o tempo segue incólume levando com ele a razão da nossa existência.

    Como diz o ditado:
    “Na estrada da vida não existe retorno”, pois somos obrigados a seguir em frente, e sempre tendo dentro de nós as célebres dúvidas que nos acompanham permanentemente:
    como será o futuro?

    (continuo)

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  8. Francisco Bendl19/02/2021, 16:29

    Ana e Wilson, que comemoraram 50 anos de casados, um tempo juntos onde poucos conseguem e por várias razões, mostram para todos nós uma certeza absoluta, incontestável, indiscutível:
    A união de um casal pode ser mesmo duradoura, sólida, indissolúvel.
    O amor que os uniu, e que ainda os move neste caminho até o seu final existe, e é outra afirmação importante que nos ensinam, e magnificamente utilizada pela Aninha nesta sua crônica.

    A vida sempre terá seus altos e baixos, mas quando estamos ao lado de quem amamos será sempre mais fácil, mais leve, mais suportável enfrentar as vicissitudes, os imprevistos, os acontecimentos que nos deixarão tristes inevitavelmente.

    Repito:
    As dúvidas são imensas;
    As certezas são raras mas, quando as temos – e 50 anos de casado é uma das maiores e mais importantes demonstrações dessa convicção -, temos chance de sair vencedores nesta jornada difícil, com muitos percalços, armadilhas, buracos, trechos íngremes e outros em grande desnível.

    O título desta crônica que a Aninha escolheu foi primoroso, atual, exatamente de acordo com o momento que estamos vivendo, um mundo em cólera.
    Tanto doente pela pandemia, que ceifou a vida de dois milhões e meio de seres humanos neste planeta, por enquanto, como constatamos que há muita revolta, indignação, raiva, pelo fato de sermos vítimas de graves injustiças sociais e do medo incontrolável da solidão.

    O antídoto para tantos temores e receios encontramos na união do homem com a mulher que, juntos, possuem o poder da criação e da sequência da espécie humana, para que esta siga em frente.
    Filhos, netos, bisnetos ... são a extensão de uma família que se consolidou pela união, cujo tempo a tornou inquebrantável, profunda, sólida, inabalável, alimentada pelo amor verdadeiro que engloba tolerância, renúncia, paciência mas, é o que existe de mais importante nesta existência, de maior significado pelas suas consequências que podem ser auspiciosas, positivas, que enaltecem duas pessoas ou uma relação desastrosa, infeliz, decepcionante, cujos resultados inevitáveis ocasionarão aos descendentes o grave sentimento da solidão, do abandono, da falta de amor.

    O amor nos tempos de cólera é exatamente este momento tão bem entendido pela Aninha, que mais uma vez nos brinda com um texto de excelente qualidade, pontual, pois a decorrência desta época de inúmeros percalços pode nos proporcionar mais solidão, mais distanciamentos entre as pessoas, mais abandono, mais vazios dentro de cada ser humano, e que irão se expandir porque o coração está vago ou tomado pela cólera, revolta, indignação, injustiças, e a sensação amarga de impotência, de nada se poder fazer para mudar as circunstâncias, então mais frustrações, decepções, uma vida que poderia ter acontecido se o ser humano se esforçasse para dar-lhe sentido, menos ficar ruminando a raiva, a ira, e culpar as demais pelo que não foi, jamais sentiu e nunca foi alvo, do amor.

    O único antídoto para os tempos de cólera a Aninha nos forneceu:
    Ame com paixão, com ternura, com força, mas ame sempre!
    Faz 50 anos que a Aninha tem comprovado o recado que nos deu nesta obra brilhante, bem feita, arquitetada, onde foram utilizados os ingredientes adequados e essenciais para não sermos contaminados pela solidão, pela distância, pelo abandono.

    Parabéns, Aninha, pois tocaste na essência de se viver e de suportar o que a vida nos proporciona de testes difíceis.
    O Certificado ou o Diploma para quem logrou êxito está na relação duradoura, estável, e que somente um casal que se ama de verdade irá conquistar esse galardão.

    Um abraço afetuoso e fraterno.
    Saúde e paz, extensivo aos teus amados.

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    1. Querido incorrigível Chicão,
      Acho que você me explora para falar da super mulher moderna do seu imaginário ideal. Se eu fosse metade do que vocês falam EU seria a Mulher Maravilha ou, pelo menos, a velhinha maravilha! Longe disso!
      Sou muitas, é verdade. Sou do lar mas não recatada nem bela,sou da casa e sou da rua, sou dos pobres e dos loucos que com eles trabalhei e nunca fui tão realizada, sou do lápis e da borracha, sou mãe e avó, que delícia! E agora sou mulher de bodas douradas. Diz Manuel meu filho que peguei perpétua...rsrs!
      E agora uma velhinha em construção!
      Gratidão do seu tamanho!
      Até mais.

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  9. Wilson Baptista Junior21/02/2021, 23:01

    Ana, minha companheira de vida e de blog, não sei o que me comoveu mais, a ideia e a realização dos nossos filhos que nos fizeram dormir e sonhar entre bolhas douradas ou este post direto do coração que me faz sentir, uma vez mais, que não imagino haver alguém no mundo com quem eu pudesse ter sido mais feliz por ter passado estes cinquenta anos e estar passando esse ano de tristezas e preocupações e os que virão pela frente e não sabemos como serão. Muito obrigado por ter estado junto comigo em todo este caminho.

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