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28/03/2021

Um tango sempre

Sabrina y Hector fotografia de Carlos_Luque


Heraldo Palmeira

Há uma frase atribuída ao escritor Ernesto Sabato que resume tudo: “O tango é um pensamento triste que se pode dançar”.

O tango é uma das duas sínteses do extremo sul da América do Sul. A outra é o gaúcho, o ginete de cavalos girando o laço sobre os pampas. Outra certeza, são inúmeras as versões a respeito de sua origem e os mitos que lhe cercam. E mais uma, não se pode falar dele sem envolver paixões.

Já foi dito que, muito antes de a imigração europeia chegar à região do Prata, o tango teria nascido na África. Na verdade, “tango” é um termo originário de línguas africanas para designar um pequeno tambor africano e a dança executada ao som dele.

A musicóloga francesa Isabelle Leymarie fez um traçado a respeito do assunto em seu livro Del tango al reggae. Ela defende que a origem do tango vem da mesma vertente do candombe e está no século dezessete, nos ambientes dos rituais religiosos repletos de tambores, cânticos, transes e danças que os africanos praticavam em suas comunidades na Argentina. Algumas dessas celebrações já eram denominadas candombes (rezar aos deuses), tambus ou tangos.

Em 1813, com a abolição da escravidão argentina, os negros passaram a se reunir para suas práticas nas casas de tango, também chamadas quilombos, casas de tambó ou sítios. Os locais terminaram fechados em razão da agitação e as músicas foram proibidas. Em pouco tempo a palavra “tango” virou sinônimo dos bailes negros realizados principalmente no bairro de Concepción, em Buenos Aires.

Além disso, na Montevidéu de meados da década de 1840, os negros recém libertados da escravidão realizavam candombes – cantos e danças executados ao som de pandeiros – no Recinto, localizado nas cercanias entre a rua Yerbal e o rio da Prata. Provável palco da integração cultural com imigrantes.

Em 1887, a comunidade negra instalada no bairro El Mondongo, em La Plata, inventou uma dança que, inspirada diretamente no candombe, passou a ser chamada de tango.

Os brancos imigrantes da Europa foram aderindo, os símbolos religiosos enfraqueceram, a coreografia mudou e tudo foi virando o baile de casais miscigenados das classes populares em clubes de má fama dos subúrbios.

A África é redundância: se está na base da civilização, imagine da música. Difícil é discordar que o tango nasceu (ou renasceu) no lado de baixo do equador, precisamente no extremo sul da América do Sul, a partir de diversas influências. Não adianta, a esta altura, tentar argumentar que o tambor é africano, o bandoneon é alemão ou Gardel seria francês. Eles apenas foram atraídos pelo magnetismo daquela força insana dos guetos e ganharam tripla cidadania: argentina e uruguaia, além das que carregavam de origem.

Carlos Vega (considerado o pai da musicologia argentina), Vicente Rossi (escritor uruguaio) e Carlos Saenz Peña (escritor e jornalista argentino) também realizaram pesquisas respeitáveis a respeito da origem do tango. Chegaram a conclusões diferentes, todas válidas. A aparente incoerência dos resultados joga luz sobre a amplitude do ambiente em que o gênero foi sendo construído e das influências que formaram o legado que temos hoje.

Os três pesquisadores apontaram apenas a certeza de que tudo começou clandestinamente no ambiente marginal do rio da Prata, no trecho entre Buenos Aires e Montevidéu.

Nas duas margens daquele mar de água doce sobram dúvidas e uma unanimidade bem larga: os primeiros movimentos teriam ocorrido entre 1880 e 1890 – esse intervalo de dez anos deu asas a inúmeras versões a respeito do momento exato da origem. Era um tempo fértil, de transformação. Na parte de cima do equador estava nascendo o jazz norte-americano.

Nos primórdios, o tango era executado de forma instrumental com piano, violino e flauta – violão e letras apareceram depois. Tinha ritmo mais acelerado e era dançado exclusivamente por duplas masculinas. Os homens, alguns com um cravo na orelha, jamais se olhavam enquanto dançavam, talvez temessem o incêndio de algum fogo ingênuo das paixões. Por isso, os rostos eram virados em direções opostas e permaneceram assim como elemento cênico.

As duplas masculinas também dançavam nas esquinas. Talvez evitassem o calor infernal dos salões lotados. Talvez aproveitassem ao mesmo tempo o som que vinha deles e o frescor da noite. Talvez quisessem manter distância dos olhares indiscretos.

Na margem uruguaia, o escritor Vicente Rossi assegurava que tudo começou nos arredores das ruas Buenos Aires e Yerbal. Uma zona conhecida como El Bajo, no lado sul da cidade velha de Montevidéu, repleta de bordéis, cassinos clandestinos e uma vida religiosamente fora da lei.

Na margem argentina, “foi no bairro de quem conta a história”, como disse o escritor Jorge Luis Borges andando sobre memórias da geografia portenha daquele período. Ele mesmo reconhecido apreciador de diversas hipóteses, sempre aberto a endossar novas narrativas, ciente da importância de personagens arquetípicas e dos mitos infindáveis da cidade.

O cinema adotou a versão da origem no subúrbio portenho, quase sempre dando ênfase para os cortiços do bairro operário La Boca del Riachuelo. Compreensível, há ali a esplêndida fotografia que o conjunto urbano entrega às câmeras. Tem o enfeite de artistas de rua e de barracos de zinco em cores vivas que ocupam Caminito desde sempre. Tem as docas antigas parecendo reviver as cenas dos primeiros tempos da imigração, onde os europeus desembarcavam sem a menor noção da história fantástica que ajudariam a construir.

Borges, com a autoridade de um dos maiores mestres da literatura e profundo conhecedor da sua terra, achava que a versão dessa origem nos arrabaldes ganhou o imaginário popular em razão dos filmes insistirem nela. Ele sempre defendeu que tudo se deu nos prostíbulos espalhados por diversos bairros de Buenos Aires sem nada premeditado, porque eram “lugares de reunião” e que “havia gente que frequentava essas casas para jogar às cartas, para beber uma cerveja, para se encontrar com amigos”.

Ele valeu-se da literatura poética do período para demonstrar que os instrumentos musicais predominantes – piano, violino e flauta – estavam relacionados com a cidade. Ao contrário do violão, eram pouco populares e bem distantes da realidade econômica dos tocadores e da clientela tradicional dos bordéis de beira de cais. Tudo isso podia conter sinais, segundo o escritor, de que a origem do tango teria ligações com pessoas de “meios econômicos superiores”, que frequentavam lugares mais bem equipados.

Fora das telas do cinema, permaneceram válidas as versões menos glamorosas, talvez mais próximas da verdade, que apontam para a rua Chile, os prostíbulos das ruas Junín e Temple, o bairro Retiro... Era uma Buenos Aires incipiente, provinciana, composta de casas baixas e de estruturas muito similares, exceção aos palacetes da avenida Alvear.

A mesma cidade onde os imigrantes genoveses começaram a montar seus cortiços de zinco e pintá-los com as tintas de cores vivas que sobravam das oficinas do porto. O local foi abandonado em 1928 após o fechamento da ferrovia que passava pertinho. Renasceu em 1959, quando os moradores, entre eles o famoso pintor Quinquela Martín, resolveram restaurar o beco – foi Quinquela quem rebatizou como Caminito, numa referência ao tango El caminito; o grande amigo Juan Filiberto era um dos autores.

Diante da falta de registros históricos precisos sobre a origem do tango, algo natural em construções coletivas ocorridas no cotidiano de tempos menos documentados, Borges, sabiamente, dizia aceitar todas as possibilidades. Falava do surgimento da dança a partir “da miscigenação entre o negro e os estrangeiros da imigração romântica. Daí que o pensamento triste baila e com ele o compadre, o jovem de bem, o patoteiro e a mulher da vida”.

O mestre das letras também considerava a história urbana de Buenos Aires, o porto e os bairros repletos do lirismo violento de palavras rudes, punhos, navalhas, sangue, histórias de amor, corações partidos e morte. Dizia que conhecer o tango era conhecer o lado negro e o melodrama da alma portenha, “o tango dá-nos a todos um passado imaginário”.

A opinião heterodoxa do escritor estava baseada nas inúmeras conversas que manteve com a própria mãe, a tradutora Leonor Suárez, ela mesma envolvida numa polêmica se teria nascido na Argentina (mais provável segundo a documentação existente) ou no Uruguai. E figuras ilustres das artes como Bioy Casares, Ernesto Poncio, Enrique Saborido, Vicente Rossi, Vicente Greco, além de cantores obscuros da noite, figuras lendárias de Buenos Aires e tantas personagens mais.

Um tempero importante entrou na receita na parte final do século dezenove, a imigração de europeus. Ela foi incentivada por uma ainda jovem Argentina carente de mão de obra mais qualificada e de horizontes técnicos e culturais mais amplos.

Vem daí a fama orgulhosa de Buenos Aires como a mais europeia das cidades sul-americanas, pois de 1870 a 1914 chegaram mais de seis milhões de europeus, principalmente homens. Em determinado ponto, havia mais estrangeiros que argentinos no grupo de pessoas entre vinte e quarenta anos.

Não demorou, a enorme quantidade de imigrantes solitários animou o ambiente para, apenas em Buenos Aires, existirem mais de duzentos prostíbulos. Diante da imensa demanda, as filas de espera pelo sexo tornaram-se comuns e avançavam pelas calçadas. As casas passaram a oferecer shows musicais de grupos diversos. O repertório era dominado por candombe uruguaio, milonga espanhola e platina, polca checa e habanera cubana.

Esse imenso caldeirão cultural formou a receita do bolo da nova linguagem. Nasceu como música urbana, apresentada em bordéis, bares e cafés, tanto em Buenos Aires (principalmente) quanto em Montevidéu.

Naquele período a milonga e a habanera eram muito populares nas duas cidades. Não é de estranhar que esses dois gêneros estejam tão presentes na estrutura musical do tango. Além disso, como boa parte dos músicos não sabia ler partituras, a música nascente era quase sempre tocada em simples derivações rítmicas sobre as estruturas já conhecidas.

Segundo Borges, “o tango surge da milonga e, no início, é valente e feliz. Depois vai desanimando e ficando triste”. Também afirmava que a tristeza se completou quando aportou no bairro italiano de La Boca. Pode ter sido esse o processo que construiu a frase célebre atribuída a Sabato.

Ainda faltava um componente fundamental que ninguém conhecia. Veio à luz criado pelo músico alemão Heinrich Band e suspeita-se que chegou à região do Prata por volta de 1870, no meio da bagagem dos imigrantes alemães e italianos.

Matias Rubino tocando tango no bandeoneon - fotografia de Jorge Royan


O bandoneón, derivação do sobrenome do criador e membro da família dos acordeons, não demorou a ser adotado. Impregnando tudo com sua dolência magnífica, ajudou a delinear o estilo musical e a assinatura sonora definitivos do tango. Além de grande tessitura, oferecia o som capaz de provocar dor e afagar ao mesmo tempo.

O instrumento foi desenvolvido para acompanhamento de música popular alemã e hinos litúrgicos das congregações luteranas mais pobres, que não dispunham de recursos para comprar harmônios e órgãos de tubo para suas igrejas.

Na incorporação argentina o marccato percussivo ganhou destaque, a técnica foi ganhando mais apuro e formando solistas, surgiram os virtuoses e os resultados conhecemos. O argentino Alejandro Barletta é considerado o maior bandoneonista de todos os tempos. Ao redor de 1915, as fábricas da Alemanha produziam quase que exclusivamente para o mercado argentino.

Quando as letras foram incorporadas tratavam de situações libidinosas comuns ao ambiente dos prostíbulos em que o tango estava instalado. Eram dotadas de machismo desabrido e o lugar da mulher sempre o pior possível – desleal, ambiciosa, adúltera, malvada, puta... Não é de estranhar que alimentasse a repulsa dentro do moralismo reinante, impedindo a aceitação da novidade fora do seu reduto original e afastando as mulheres da sua prática.

Mas as prostitutas dos bordéis terminaram entrando na dança. É óbvio que aqueles contornos femininos tiveram grande importância para bordar os componentes principais que caracterizam o tango como expressão cultural: a carga dramática, a tristeza, a paixão e a sensualidade. Até o amor, arrisco dizer, pois também pode ser visto perambulando em antros. Quase sempre sufocado, dolorido, imortal no silêncio que reina quando tudo passa, depois que alguém morre por causa dele.

Em 1907, marinheiros franceses de passagem pelo Prata embarcaram na viagem de volta para casa o belíssimo tango La Morocha, do uruguaio Enrique Saborido. Ao fim da travessia do Atlântico, aportou no melhor lugar do mundo para qualquer amor, a cidade de Paris, que também se apaixonou por aquela dança exótica e sensual. Isso permitiu que muitos artistas uruguaios e argentinos passassem a frequentar e até morar na Cidade Luz.

O caminho aberto pelos marujos foi alargado por imigrantes que retornavam para a Europa e não abandonaram aquela deliciosa companhia do Cone Sul. Por volta de 1910, a partir de Paris o tango foi se espalhando por Berlim, Londres, São Petersburgo, Viena... Atravessou o mundo e chegou aos Estados Unidos e Japão.

Pouca gente falava espanhol/castelhano em tantos lugares. Na incompreensão do idioma, as letras “infames” viravam apenas itens melódicos somados à beleza da música e à força da dança como meios de encantamento arrebatador de novas plateias. Os ataques moralistas foram perdendo a força.

Alguns norte-americanos levaram um professor de dança de Cleveland à Justiça, por imoralidade. Na audiência, ele colocou cem alunos dançando diante do júri e foi absolvido. Não seria surpresa encontrar algum relato de que o julgamento terminou em festa.

Religiosos renitentes seguiram demonizando. Em resposta, o tango chamou o Vaticano para dançar e uma apresentação foi organizada com o intuito de merecer a avaliação do papa Pio X. Terminou aprovado pelo pontífice sem qualquer senão, embora não haja registro de que ele próprio tenha tentado algum passo no salão. Pena, aquele carmim tradicional dos sapatos papais faria belo efeito em cena.

O tango recebeu moldes finais adicionando novas influências europeias e letras com temas palatáveis aos conservadores. Já com ritmo mais lento, a plasticidade da dança aumentou. Começou a ser compreendido como arte além dos ambientes vadios. Chegou à soleira da elite platina e ganhou os salões refinados da sociedade depois do acolhimento que recebeu fora do Prata, a partir de Paris e do Vaticano, dando início à primeira fase de ouro.

Algumas personalidades argentinas e uruguaias – os escritores Fernán Valdez, José Castillo e diversos outros artistas – começaram a se interessar e divulgar aquela novidade, que cada vez mais se consolidava como extraordinária manifestação popular.

Em pouco tempo, ainda nos anos vinte, o tango viveu a primeira fase de ouro pela força popular de nomes como Augustín Magaldi, Azucena Maizani, Carlos Gardel, Enrique Discépolo, Ignácio Corsini, Libertad Lamarque, Rosita Quiroga e Tita Merello. Com a nascente indústria fonográfica em ação, ultrapassaram as fronteiras platinas.

Com um sucesso crescente e impressionante, Gardel começou a descolar dos demais, assumindo um papel cada vez mais superlativo. Ao se apresentar em palcos pelo mundo e protagonizar diversos filmes, internacionalizou definitivamente aquilo que o consagrou e começou a erguer o próprio mito.

A origem de Carlos Gardel esteve sempre cercada de mistérios, com três cidadanias aparentemente comprovadas por documentos: francesa, uruguaia e argentina. Parece que Borges tinha razão ao acolher todas as versões das histórias que cercam o tango, ele mesmo um contemporâneo privilegiado de tantas delas.

Uma delas dá conta de que Gardel seria filho bastardo de Carlos Escayola, um influente latifundiário uruguaio, fruto de um romance clandestino com a própria cunhada Maria Oliva, de apenas treze anos. O menino, batizado Carlos, teria nascido em 1887 em Tacuarembó, Uruguai. Indesejado, foi entregue a Berthe Gardès, uma fançarina francesa de passagem pela região num show de cabaré. Ela levou a criança para a França, até que em 1893 voltaram como imigrantes para Buenos Aires, a bordo do navio SS Don Pedroe.

Outra versão se baseia no fato de que Berthe era uma mulher comum de Toulouse, dedicada a serviços de lavanderia de roupas, e jamais teve qualquer atividade artística. O menino Charles Romuald Gardès nasceu naquela cidade, em 1890. Tanto que, já adulto, costumava brincar dizendo que nascera “em Buenos Aires aos dois anos de idade”, referindo-se ao momento em que chegou à cidade com a mãe.

No desembarque, ela declarou-se viúva diante da imigração e o menino foi registrado como Charles Gardès. Supõe-se que tenha resolvido deixar a França para ficar livre do estigma de ser mãe solteira, já que tivera um romance com Paul Laserre, um homem casado que foi embora de Toulouse antes do nascimento daquele filho.

Muitos anos depois, Laserre foi a Buenos Aires encontrar Berthe. Pretendia casar-se com ela e legitimar o filho. Gardel, então com vinte e oito anos, foi taxativo ao dizer à mãe que, se ela não precisava daquele homem, ele muito menos: “Não desejo nem mesmo vê-lo”, encerrou o assunto.

Seguindo esta linha que o considera imigrante francês, o menino cresceu falando espanhol num ambiente de pobreza no distrito de San Nicolás, nas cercanias de onde hoje está o famoso Obelisco da avenida 9 de Julio com Corrientes. Era chamado de Carlos e Carlitos e desde muito cedo revelava o sonho de ser cantor. Por isso, costumava sentar-se à porta de casa e cantar, no que era cercado de crianças. Por causa dessas relações, costumava ser levado pelas famílias e ficar dias inteiros em casa de amigos. A esta altura, sua mãe já tivera o nome nacionalizado, era conhecida como Doña Berta.

Mais adiante, o menino começou a desaparecer de casa por longos períodos. Costumava ter problemas com a polícia e, aos catorze anos, passou uma temporada no presídio de Florencio Varela, detido por vadiagem.

Já era 1920, Gardel tornara-se uma figura conhecida, mas a documentação irregular impedia que viajasse para além dos países vizinhos. Sua ficha criminal não permitiria a emissão de passaporte argentino. Ele aproveitou novas regras para regularizar a situação de uruguaios indocumentados no exterior, que exigia apenas o depoimento do requerente e de mais duas testemunhas.

Era o momento ideal para aquela providência, pois estava na iminência de uma viagem profissional à França. Lá, teria problemas legais porque, como cidadão francês, estava obrigado a se alistar no Exército durante a Primeira Guerra Mundial – nunca foram encontrados registros do seu alistamento.

Como o Uruguai manteve uma política de neutralidade durante a guerra, a cidadania uruguaia teria dupla utilidade: isentava-o da responsabilidade militar francesa e facilitaria a obtenção da sonhada cidadania argentina. Assim, ele declarou-se nascido em Tacuarembó, obteve a documentação de uruguaio nato e, logo em seguida, obteve a nacionalidade argentina, constando na carteira de identidade (argentina) a nacionalidade do país vizinho. Em pouco tempo, o tão desejado passaporte estava emitido, liberando seu acesso ao mundo e à glória internacional.

Em 1931, Gardel lavrou um documento onde foi taxativo: “Sou francês, nascido em Toulouse, em 11 de dezembro de 1890, filho de Berthe Gardès” – o nascimento em Toulouse foi confirmado em 2012, quando pesquisadores localizaram sua certidão de nascimento.

Naquele mesmo 1931, o cantor estava realizando shows e filmes em Paris, quando, por sugestão do amigo jornalista argentino Edmundo Guibourg, selou uma parceria definitiva em sua carreira com o poeta e crítico brasileiro Alfredo Le Pera, que vivia na cidade legendando filmes na sede francesa dos estúdios Paramount.

A partir dali passaram a compor juntos e trabalharam em filmes em que o roteirista Le Pera tentava mostrar o cantor famoso com sua cara cotidiana – cavalheiro, criminoso, sedutor, amante latino –, algo que caiu no gosto do público hispânico.

Em 1933, se estabeleceram em Nova York e fundaram a empresa Éxito Producciones, associada à Paramount. Le Pera, de origem abastada e intelectual refinado, além de letras e roteiros, passou a cuidar também da administração e das finanças da carreira do amigo famoso.

A parceria rendeu pérolas da história do tango e anedotas. Ante as exigências do famoso perfeccionismo, Gardel, certa feita, disse que o parceiro não havia captado seu estilo. Le Pera reagiu com humor: “Carlos, você não precisa de um letrista. Você precisa de um alfaiate”.

Em 1934, depois de encerrar as gravações dos filmes Cuesta abajo e El tango na Broadway, Gardel viajou à França. Dentre seus compromissos, uma visita a uma certa senhora Berthe Gardès, em Toulouse.

Em 1935, teve início a produção de El dia que me quieras, quinto filme da Éxito Producciones. Durante as gravações, em Nova York, Gardel recebeu no hotel uma peça de artesanato, um gaúcho entalhado em madeira. Quem fez e enviou o mimo foi um certo don Vicente, patriarca de distinta família argentina de origem italiana que vivia na cidade. Ele adorava cantar tangos antigos, era fã incondicional do artista. Mesmo assim, designou o filho de treze anos para entregar a encomenda.

O menino chegou ao hotel e foi parar direto no quarto do hóspede ilustre, sem fazer a menor ideia de quem era aquele homem que encontrou vestido em pijama de bolinhas. Na verdade, o tango não lhe dizia muito, gostava de jazz e seus ídolos eram Duke Ellington e Cab Calloway.

Gardel simpatizou de imediato com aquele sujeitinho despachado e fez questão de conhecer sua família. Aproveitou a temporada e passou a frequentar a casa em que viviam no Village, onde viu o garoto tocando o bandoneón que ganhara do pai anos antes.

Em retribuição pela acolhida, el pibe logo virou guia da equipe portenha na Big Apple. O cantor era incapaz de pronunciar qualquer palavra do inglês e o menino também era craque na geografia do lugar, por onde costumava perambular com os amigos. Para completar, ainda ganhou uma participação no filme. Contracenou com o novo amigo numa breve cena em que apareceu vendendo jornais. Os US$ 25 de cachê representavam uma fortuna naqueles tempos.

Carlos Gardel e Rosita Moreno em cena de "El día en que me quieras" (foto Paramount Pictures)


Na festa de encerramento das gravações, Gardel convidou o menino para tocarem juntos Arrabal amargo. Aquela foi a primeira apresentação pública do jovem músico executando um tango. E dividindo a cena com ninguém menos, apenas os dois no palco.

Dali o cantante partiria para uma grande turnê e convidou o menino para fazer parte da banda. A aventura foi abortada pelos pais, don Vicente e dona Asunta, com o socorro do sindicato dos músicos. A pouca idade tocou mais forte.

Dois aviões trimotores Ford F-31 taxiavam na pista de Medellín. Atribui-se a fortes ventos contrários o rompimento do eixo do trem de pouso direito, na hora da corrida para decolagem da aeronave em que estavam Gardel e sua banda. Descontrolada, chocou-se com a outra – que aguardava sua vez de decolar – provocando grande explosão. Das dezenove pessoas a bordo (dos dois aviões), dezessete morreram, inclusive o brasileiro Le Pera, considerado um dos poetas mais importantes e personagem dos mais representativos do tango.

Em meio à comoção internacional, passaram a circular algumas versões para o acidente. Imperícia do piloto, muito jovem e incapaz de perceber o perigo de decolar contra uma ventania. Uma cortina imensa e pesada que Gardel ganhara da Paramount e passara a levar para os shows, inadequada para a capacidade do pequeno avião. E, no limite do extremo, uma briga que teria havido dentro do avião por conta de carteado – alguém teria dado um tiro no contendor e acertado o piloto por engano. Não bastasse a perda do seu principal ídolo, o acervo de lendas que cercam o tango saiu enriquecido.

O filme El dia que me quieras foi lançado postumamente em Havana, apenas onze dias após a tragédia de Medellín. Virou o último capítulo da fase de ouro que o cantor vivera com o cinema norte-americano e com a própria carreira. A partir dali teve início uma nova fase literalmente incorpórea, a do mito.

Gardel catalisou todos os sentimentos contidos e instrumentalizou o tango como perfeita expressão cultural daquela nova sociedade em formação. Traduziu como ninguém as mudanças de costumes causadas pela imigração. Elevou à condição de arte a música gerada pela miscigenação entre platinos, negros e europeus.

O último adeus de Carlos Gardel
Fundación Internacional Carlos Gardel


O sucesso internacional curvou as elites portenhas que, protegidas por uma severa divisão de classes, costumavam expressar xenofobia e desprezar a cultura local de origem popular.

Em determinado momento, estava posto o simbolismo de que todos os portenhos carregam em si algo de Gardel, como se ele tivesse definido a identidade argentina e portenha em particular. Como se tudo isso fosse pouco, ele fez a Argentina internacional e encheu de orgulho as duas margens do Prata

Havia rumores de que, na intimidade, Borges atribuía a Gardel o entristecimento do tango. Certa feita, o escritor falou cheio de vírgulas, como se fosse um bandoneón se contorcendo entre notas estudadas: “E há, além disso, um nome, um nome que os senhores, sem dúvida, estarão à espera de ouvir, e que é um nome um tanto posterior, de Carlos Gardel. Porque Carlos Gardel, além da sua voz, além do seu ouvido, fez algo com o tango, algo que tinha sido tentado antes, mas de um modo parcial, e que Gardel levou, não sei se à perfeição, mas a um ponto culminante”.

A partir dos anos 40, o tango experimentou uma segunda fase de ouro e nova onda de internacionalização. Como se fosse um novo passo, o legado dos mestres pioneiros foi renovado por Aníbal Troilo, Armando Pontier, Astor Piazzolla, Carlos di Sarli, Francisco Canaro, Juan D’Arienzo e Osvaldo Pugliese.

Foi ali que o mundo conheceu o fenômeno de popularidade Juan D’Arienzo, e um segundo mito tanguero, o genial Astor Piazolla.

Piazzolla bebeu no clássico e destilou no tango, embarcou na influência do jazz e deu um lustro pop art na linguagem do gênero. Enlouqueceu os puristas com as inovações aplicadas à harmonia, ao ritmo e ao timbre. Pecado dos pecados, ousou inserir a guitarra elétrica em 1955. O sotaque da modernidade ficou forte demais e muitos gritaram que aquilo não era tango! Soava muita ousadia um quase estrangeiro, cosmopolita, tentar perturbar a zona de conforto dos senhores dos palcos tangueros. Nem todos eram gaúchos hábeis, muitos corriam o risco de cair daquele cavalo selvagem.

Guardadas as proporções de épocas tão distintas, havia uma certa simetria com a ação renovadora de Enrique Discépolo, que ousou, nos primórdios “infames”, trazer ares intelectuais para o tango, inserir assuntos completamente inusuais nas letras.

O mundo traduziu o que Piazzolla propunha como a “música ciudadana” contemporânea de Buenos Aires, com sua lírica, seus símbolos e sua mítica expostos como as vísceras da cidade. Uma alegoria do próprio espaço urbano onde se construía a identidade nacional argentina. Aquele tango cotidiano que passou a tocar nas casas das famílias e confeitarias respeitáveis com um toque de infâmia singela. Uma música processada de forma cerebral, um passo além dos meneios físicos, dos suores, das pelejas vocais dos repentistas e das lutas de punhos e facas dos rufiões dos prostíbulos ancestrais.

Mesmo assim, houve dor e levou tempo. Piazzolla guardou o bandoneón por um período e passou a trabalhar em composições eruditas, trilhas sonoras para o cinema e arranjos de orquestras. Ziguezagueou entre Buenos Aires, Paris e Nova York, até parar numa temporada de estudos em Paris com a professora Nadia Boulanger, que conduziu sua energia criativa de volta para o tango. Roma foi o próximo refúgio.

Os conflitos somados ao espírito independente, imprevisível e de difícil trato moldaram uma vida ora de garras expostas ora de afagos. Essa torrente emocional, claramente impressa na obra, legou a Piazzolla o apelido de “Gato”, sutileza com precisão milimétrica criada pelo maestro Aníbal Troilo. Dono de larga experiência à frente de orquestras e acostumado a administrar talentos e egos, Troilo conheceu bem o perfil do gênio em anos de convivência e trabalho.

De pouco adiantou a gritaria. Piazzolla estabeleceu a nova linguagem, seguida até hoje. O que “não era tango” terminou virando nuevo tango. Óbvio que mantinha intrínsecas ligações com o sentimento geral, o masoquismo, a nostalgia, as dores afetivas, fontes comuns de inspiração das letras. A própria melancolia da saudade da pátria que Nonino sentira enquanto viveu imigrado em Nova York.

Décadas depois, empresários da noite portenha também tentaram se apoderar do tango e criaram shows para turistas, com o prodígio de colocar até cavalos zanzando pelo palco! Mesmo sem notícias de cavalos nos bordéis de Buenos Aires e Montevidéu da virada dos séculos dezenove para vinte, dá um certo trabalho associar o gaúcho tradicional e o resto com tal extravagância.

Em 2009, o tango, em seu conjunto completo desde a “origem infame” citada por Borges, passou a fazer parte da lista honrosa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, da Unesco. Por uma questão de justiça, associado igualmente à Argentina e ao Uruguai.

O que pensariam músicos, bêbados, malandros, marinheiros, cafetões, distintas damas, seus clientes e todos que andaram naqueles ambientes de penumbra e fumaça dos tempos pioneiros? Quase certo, estariam boquiabertos ao ver o tango, o filho bastardo que conceberam por acaso, frequentando em trajes de gala os mais nobres salões, estúdios, vitrolas, rádios, televisões, cinemas e salas de espetáculo ao redor do mundo.

Lembrando o que me ensinou um velho amigo argentino, quem quiser entrar no verdadeiro mundo que vicejou às margens do Prata não precisa de muito: há lugares pequenos e simples, frequentados pelos locais. Basta perguntar aos recepcionistas de hotéis e motoristas de táxi. Neles, encontrará o bastante: poucas mesas, boa comida, bons tragos, garçons elegantes, serviço impecável, um pequeno palco repleto de músicos e dançarinos excelentes. O resto é tango!

A propósito, aquele distinto don Vicente que vivia em Nova York com a família, tornou-se mundialmente conhecido pelo apelido Nonino, dado pelo filho. É muito provável que, se ele mesmo tivesse ido entregar o entalhe a Gardel no hotel nova-iorquino, o mundo do tango não seria o mesmo.

Seu filho, aquele menino que ele impediu de acompanhar Carlos Gardel, escapou da tragédia aérea que matou o cantor na Colômbia. Talvez tenha sido salvo Por uma cabeza, que é tango, que é Gardel e Le Pera em simbiose perfeita.

Era uma criança fragilizada pelo defeito congênito num dos pés, que conheceu os discos de Gardel, do sexteto de Julio de Caro e o próprio bandoneón – com a exigência de grande empenho no estudo – pelas mãos do pai, o grande referencial para que se transformasse num homem autoconfiante e obstinado.

Salvo pela prudência familiar que o fez permanecer em Nova York diante do convite honroso de Gardel, tornou-se um dos maiores músicos do século 20 e o outro mito do tango: Astor Pantaleón Piazzolla.

Astor Piazzolla - fotografia de Pupeto Mastropasqua
Astor Piazzolla e Carlos Gardel em cena de "El Día En Que Me Quieras" 
Fundación Internacional Carlos Gardel

Em 1985, Piazzolla “reencontrou” Gardel ao assinar a trilha sonora do filme Tangos, el exilio de Gardel. Nele, o diretor argentino Fernando Solanas serve um caldeirão da Argentina: a crise política, gente exilada na mesma Paris de sempre, a eterna dualidade do tango, que se apresenta com personalidade platina mas terminou cosmopolita pelas origens diversas, construção repleta de imigrantes, exilados de nacionalidades dúbias, todos os encontros e desencontros possíveis e a diáspora latino-americana.

“Parece que sem pôr de sol e noites em Buenos Aires não se pode fazer um tango”, disse Borges, cujo preferido era El choclo. Parece uma verdade, apesar de tantas outras.

Como a do escritor e jornalista argentino Leopoldo Lugones: “O tango, esse réptil de lupanar!”. Um retrato fiel daquele ambiente original onde floresceu cercado de todas as forças e antagonismos. E música. E dança. E tragédia.

Como a do escritor argentino Damián Tabarovsky, que enxerga o tango do século vinte e um como um anacronismo – os intérpretes adotam perucas e tinturas nos cabelos, quase sempre horríveis, como meio de tentar disfarçar o desgaste do tempo, a fragilidade trazida pelo envelhecimento deles mesmos e da própria mensagem transmitida por um gênero que se propõe másculo, forte.

Segundo ele, “não se renovou esteticamente e permanece apenas como objeto turístico e como clichê nostálgico de um mundo antiquado”. Também já não enxerga no tango o espírito e as histórias de Buenos Aires e dos portenhos, acha que está resumido a material de estudo acadêmico. “Desconfio imensamente, sobretudo numa cidade que vive de seus mitos e glórias passadas: Gardel, o doce de leite, a avenida mais larga do mundo, a Paris da América do Sul”, conclui Tabarovsky.

Mesmo diante de tantas visões, parece justo afirmar que o tango é uma enorme correnteza que se formou a partir do encontro das águas das culturas africana, americana e europeia, às margens do Prata. Algo que emergiu das classes populares e inundou as elites. Muito mais do que gênero musical, transformou-se nas tintas que traduzem orgulho e identidade nacionais.

É compreensível que o tempo tenha envelhecido seu ímpeto, outras novidades e outros assuntos tenham ocupado parte do espaço e modificado o interesse coletivo que despertava. Nada diferente do que aconteceu com tantos gêneros e a própria maneira de relacionamento cultural e artístico ao redor do mundo.

Talvez isso explique a importância do filme Cafe de los maestros, lançado em 2008 pelo diretor americano-argentino Miguel Kohan, que traça um emocionante painel para a memória do tango. De beleza ímpar, atemporal, roda como boa história composta por capítulos precisos, uma peça que sempre valerá ser apreciada.

A grande sacada foi registrar os laços interpessoais daquele bando de velhos amigos, que apenas estavam vivendo suas vidas. Mostrar os mestres como personagens típicas do cotidiano de Buenos Aires – casas, ensaios, instrumentos, estúdios, bares, corridas de cavalos, ternos pretos impecáveis.

Aqueles senhores e senhoras talentosíssimos partilharam uma história gloriosa. Bastou uma centelha para uma nova explosão. Voltaram à cena que ajudaram a construir desde a década de 1930, representando as quatro magníficas escolas de tango, de Aníbal Troilo, Carlos Di Sarli, Juan D’Arienzo e Osvaldo Pugliese.

O filme é uma grande viagem que não revela nostalgia e chega ao gran finale no teatro Colón, todos vestidos a rigor. Ao contrário, entrega ao mundo a energia renovada daqueles mestres como um recado de que o tango segue na pista. No trailer oficial do filme, uma frase justa: Una película sobre la música que conmueve al mundo.

Depois de ouvir tanto, e tantos magníficos, é impossível não citar Adiós Nonino. Depois de compô-lo como réquiem ao pai morto, Piazzolla foi taxativo: “Talvez eu estivesse rodeado de anjos. Foi a mais bela melodia que escrevi e não sei se alguma vez farei melhor”. Só aceitou que recebesse letra muitos anos adiante, emocionado diante da poesia da cantora argentina Eladia Blázquez – ela renunciou a todos os direitos autorais a que poderia ter direito em favor de Piazzolla, pois sua ideia sempre foi apenas homenagear o amigo e seu pai Nonino.

Mantenho Libertango preferido. Por mais explícito que toque, há nele algo misterioso que Piazzolla soube resgatar dos labirintos da alma para grudar na partitura, da primeira à última nota.

Gravada em Milão, em 1974, na fase italiana do artista, talvez traduza o dilema pessoal que ele viveu para se libertar do tango tradicional e difundir a liberdade compositiva do seu tango nuevo. Ainda bem, entrou de armas, bagagens e trazendo impensáveis bateria, naipe de cordas, guitarra elétrica e orquestra. Uma liberdade que pode ter sido mais acessível pela possível dor de estar distante da Argentina para se enxergar melhor.

Libertango batiza um álbum famoso (é a primeira faixa) que deve seguir tocando inteiro. E a versão do Gotan Project leva tudo ainda mais adiante. O tango insiste em viver.

Agradecimentos especiais a Victor Biglione e Wagner Tiso.

(*) Ouça Libertango aqui:

Astor Piazzolla

https://www.youtube.com/watch?v=k_pLL278zoM

Gotan Project

https://www.youtube.com/watch?v=9qdj4dV1Nwc

 

 


23/03/2021

Ela voltou!

Fotografia de Carlos Monteiro


Carlos Monteiro

A ‘Lady Godiva de Pilares’ voltou novamente. Não havia partido contente, pois seu saldo andava devedor, as tentativas de compras eram recusadas e os salários estavam escassos e intermitentes. Estou feliz por ela, como terá se mantido nestes dois meses? Lépido pelos leitores, curiosos e ávidos por informações da nossa personagem e por mim que voltei a ter matéria-prima para elucubrar e escrever meus devaneios baseados no perfil de suas compras. Um estudo antropológico-filosófico-comportamental-psicossocial – caramba, de onde tirei isso? Essa, nem juntando Lévi-Strauss, Nietzsche, Skinner, Jung e, de quebra, Freud para explicar.

Seu retorno foi triunfante, tal qual a original numa cavalgada pelas ruas do bairro suburbano carioca na Zona da Leopoldina, sim, a imperatriz, cujo nome, pela quantidade de sobrenomes, mais parece a relação de aprovados no ENEM, articuladora da Independência do Brasil e que deu nome a um ramal ferroviário com partida de estação homônima, prédio histórico, hoje desativada, abandonada, sucateada, caindo aos pedaços, na avenida Francisco Bicalho. Este ramal é atendido atualmente pela Supervia, mas tudo isso é tema para outra crônica. Voltemos a nossa protagonista que, moderna, anda de Uber e 99, cantarola "Don´t Stop me Now" - "I'm a racing car, passing by like Lady Godiva" do Queen e não tem parentesco com a xará de Irajá, criação de Fausto Fawcett, se bem que dia desses batemos à casa dos 40°.

Acho que a Diva, como é conhecida pelos íntimos, anda meio descontente, desesperadamente. Serão desilusões de amor ou ansiedade de tempos bicudos? Quem sabe, mais pé no chão, necessidade mesmo. Dois meses sem crédito fazem uma brutal diferença no orçamento doméstico. Suas primeiras investidas, com a plaquinha mágica de plástico, se deram em três estabelecimentos cujo CNAE - não sabe o que é? Dá uma googlada -, se refere à venda de produtos alimentícios. O do menor preço total – não é jabá, mas bem que poderia ser para garantir o jabá nosso de cada dia -, Pexinchete de Pilares e Supermercado Intercontinental. Compras tímidas, muito provavelmente de gêneros da cesta básica.

Anda fazendo obras, ou pelo menos manutenção. Deve estar dando aquele trato na casa, uma pintura moderna, cores vibrantes para a cozinha. Antenada, apostou nos tons alaranjados. O emboço do muro, fazia tempo que ansiava por isso, uma tomada extra para os equipamentos eletrônicos, afinal, a JBL tonitruante na sofrência jamais poderá estar descarregada. Uma lâmpada led, furta-cor, para o quarto e os embalos no catre de todas as noites de amor, com nuances mais românticas e animação... O reparo do chuveiro, que há muito nem amorna, está descartado. Com temperaturas, pelo Hells de Janeiro, na morada dos 45° à sombra, a própria caixa d’água já se incumbe de tal tarefa. Terá lembrado das carrapetas e do reparo da descarga? Com geosmina ou sem geosmina, isso parece até marchinha de Carnaval, as contas andam pela hora do Ângelus. Só rezando quatro vezes ao dia para suportar. Tudo devidamente providenciado no Depósito Opção 1, Plastema Comércio de Plásticos e na Priscila Irlyn Silva – foi lá duas vezes, ah esse faz-tudo que nunca sabe a quantidade certa.

Outra passada importante foi na Utilicasa de Pilares. De tudo um pouco; a decoração está a pleno vapor. Aquelas almofadas matizadas, a mesinha de centro, apoio para as geladas e os tira-gostos, panos de prato temáticos, uma jarra para água na geladeira. Já não aguentava mais a velha garrafa de suco de uva, ainda que reaproveitar tenha aderência em sua existência e dois bons incensos de arruda com sal grosso para uma defumação. Salve a defumação, meu Pai Oxalá!

Nossa heroína, com ninguém é de ferro, fez duas boquinhas à tarde e, provavelmente, está se preparando para o Carnaval no sofá da sala ou na alcova ledana. Passou no Delícia na Lenha e mandou ver aquela picanha suculenta e o pão de alho crocante. Mais tarde deu uma chegada no Quiosk da Sueli: dois salgados e rodízio de caldo de cana. Promoção da ‘fome vespertina’, tudo por dez Reais. A folia está garantida na Distribuidora Imperador; Brahma na promoção e olha que é latão. Levando uma mala e não é a chata da balconista, a segunda tem 50% de desconto. Uma maravilha proporcionada por Sabazius, o deus-cabrito. Sabática? Qual o quê: domingática, segundática, terciática ‘pra’ tudo se acabar na quarta-feira, cinzas de um Folguedo que não houve, a história pitoresca da volta dos que não foram.

Noturna e notívaga, nossa Diva divina espaireceu no Churrasquinho do Bigode. Às quartas, o litrão de Antarctica faz a festa dos comensais, e, principalmente dos ‘bebensais’. Espetinho para lá, mais um copo para cá, a noite fresca e inebriante, desce mais uma, outra, e mais outra... A noite promete. Horas tantas: “Bigooooooodeee, passa a régua”. Parece que nossa querida musa congeminadora exagerou: duas tentativas de pagamento com senha inválida. Estava trocando as pernas e os números. Foi para casa (ou não) de Uber, perto, bem perto. A corrida saiu por pouco mais que cinco reais.

A reinação de Momo promete!

 

18/03/2021

Os Ombros de Jesus

Jesus Cristo levando a cruz - Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, na Via Sacra do Santuário Bom Jesus do Matozinhos, em Congonhas do Campo


Antonio Carlos Rocha

Gosto muito de ler sobre as vidas e as obras dos santos. Santos Católicos, Anglicanos, Ortodoxos, Budistas e de outras religiões.

Durante a minha recuperação (que ainda continua) da queda na escada do prédio onde moro, estava lendo outro dia sobre São Bernardo Claraval (1090-1153), nascido na França. Foi um conceituado monge cisterciense: escritor, pregador, doutor da Igreja.

Belo dia, em oração, ele perguntou a Cristo qual tinha sido a maior dor que ele sentira durante a crucificação. Jesus respondeu que, pouca gente sabia:

“Eu tinha uma chaga profundíssima no ombro sobre o qual carreguei a pesada cruz; essa chaga era a mais dolorosa que as outras. Os homens não fazem dela menção, porque não a conhecem. Honra, pois, esta chaga e farei tudo o que por ela me pedires”.

A fonte está no livro “Orações e Santos Populares”, do Padre  Paulo Scopel, editora Salles que já vendeu mais de 1 milhão de exemplares, 240 páginas.

Eu fiquei surpreso porque nunca tinha pensado nisso. De fato, imagino que Cristo deve ter sofrido demais durante a crucificação, a maldade humana não tem limites. Até hoje ainda é assim.

Paralelamente à informação biográfica, há um modelo de oração e a dica para a pessoa, quando fizer o pedido, rezar sete ave-marias.

Eu estava com o braço e ombro esquerdos enfaixados na tipoia, dormindo sentado como se estivesse em uma cadeira de avião. Mentalmente eu pedia aos santos amigos que me levassem neste “voo” para a cura dos ombros e braços que hoje, seis meses depois ainda doem, agora já deito reclinado.

Claro que fiz a “Oração à Chaga do Ombro de Jesus” que eu nem sabia que existia. Respeitando-se as devidas proporções eu também havia sentido na hora do tombo e depois dores até então inimagináveis e me solidarizei com Jesus.

Através do raio X o médico me mostrou a fratura e explicou por que os ombros são tão sensíveis, um complexo de ossos, músculos, cartilagens e afins.  Bem sei que existem dores maiores do que esta, mas escrevi na minha agenda:

“Me perdoem, mas eu não gosto de sentir dor...”.

Ainda bem que os amigos santos me entendem, talvez com vinte anos não sentisse tanta dor, mas agora aos sessenta e oito, foi terrível.

Escrevo estas linhas com todo o respeito aos que tem abordagens diferentes dos santos.

Mas hoje, aqui no RJ, está um calorão, é dia 20/01/21, Dia de São Sebastião e também é outro que sofreu muito com as flechadas que recebeu. Minha solidariedade, amigo.

Quanto a São Bernardo Claraval, gratidão pelo Ensinamento!