fotografia Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
Era casa era
jardim
Noites e um
bandolim
Os olhares
na varanda
E um cheiro
de jasmim
Era um
telhado e um pombal
Melodia e
madrigal
E ninguém
nem percebia
Que o real e
a fantasia
Se separam
no final
A casa
estava ali no cantinho dela, numa rua pequena e bucólica.
A rua era
reservada e eu entrei com a curiosidade da primeira vez, deixando o portão para
trás, vencendo os degraus da escadaria amarela. E logo me instalei como se
estivesse em casa, vivi os primeiros tempos como se fossem os de sempre, tal
foi a intimidade que senti.
Escrevi
tantas linhas que perdi as contas, porque a casa me inspirava com seu sossego,
sua janela que desfraldava um grande vale além dos telhados da rua calma, cheia
de árvores e pássaros e outros pequenos animais. Bastava abrir as cortinas para
ter à vista uma cidadezinha do interior dentro da metrópole, uma aquarela de
coisas antigas tão boas de viver que parecia mentira ou um sonho bom.
Numa folha
qualquer
Eu desenho
um Sol amarelo
E com cinco
ou seis retas
É fácil
fazer um castelo
Vi os traços
amarelados nas velhas fotos dos meninos soltos pelos espaços amplos, o desenho
do que foram e viveram antes de virarem homens feitos e comprovarem que o real
e a fantasia se separam no final – aos poucos, eles foram indo embora cuidar
das próprias vidas, deixando seus silêncios e ausências como lembranças cada
vez mais vagas e que não voltam nas visitas ocasionais.
Os cabelos
foram ficando grisalhos e quietos, uma espécie de contabilidade registrando os
lucros e prejuízos acumulados, um balanço das marcas do tempo que não poupa
ninguém.
Eu vi a
chegada de um novo amor tomar e arejar a casa em pleno outono daquelas vidas,
que esquentou o inverno, trouxe as flores da primavera e o calor do verão, e
ficou para repetir muitas vezes as quatro estações. De tão feliz, transformou a
prata dos cabelos num reflexo da Lua.
Eu vi a
pequena menina correndo pela casa, tão especial, tão catarina, peça da
engrenagem de marcar o tempo, de renovar a vida com sua inocência de acreditar
nas vozes que inventei e criar um gato falante – e a fábula foi atribuída ao
gato da casa. O mesmo que me faz companhia sem dizer palavra, que tem certeza
de ser o dono da casa.
fotografia Heraldo Palmeira |
Eu desconfio
que há ali uma magia ajudando a montar o sonho de que a vida pode ser boa.
No quintal
por trás de casa
Tem um pé de
sonho
Que não para
de florar
Florar a
noite inteira
Eu vivi as
delícias e os medos de todos os tempos, do calor e do frio, das garoas, chuvas
e tempestades, das brisas, ventos e ventanias, das pessoas simples e complexas,
das presenças e saudades, das tristezas e alegrias... Todas as lições ensinando
que nem tudo pode ser como se quer, mas pode ser que seja como der para ser.
Há varandas
e quintais com flores e frutos da temporada e temporãos, uma vida que passa por
casas, calçadas e lojas, carros apressados, gente que está ali todos os dias
com algum sentido – sim, ainda resta sentido e isso é bom.
Varandas e
quintais
Oitões do
amanhecer
Um galo, um
canto de cristal
O rubi do
dia no céu
Vem no fio
da ventania
Na dança dos
varais
Na água dos
lençóis
Na dança dos
varais
Varandas e
quintais
Memórias
infantis
Menino,
pasmo os olhos
Eu me
entrego
E me atiro
em mim
Pelas
varandas e quintais
Eu vejo as
madrugadas pela janela – que virou minha –, porque haverá sempre uma janela e
uma madrugada, namorada, de onde pensar o movimento de bater pernas atrás da
vida. Não importa o tamanho do passo, basta abrir o compasso e traçar o círculo
do mundo e o raio de caminhar.
Numa folha
qualquer
Eu desenho
um navio de partida
Com alguns
bons amigos
Bebendo de
bem com a vida
De uma
América a outra
Consigo
passar num segundo
Giro um
simples compasso
E num
círculo eu faço o mundo
Há o tempo
de ir e de voltar, de sair e de chegar, de querer ficar. E haverá o tempo de
parar em algum lugar, que ainda não sei como é ou será. Como há o tempo de
ainda não pensar, de aproveitar o resto, de desviar do óbvio.
Preferi ver tudo
se enfeitando para o fim de ano, as combinações para as festas. Era o tempo
daquele mesmo balanço de todos os anos, do que ficou e do que se espera. Não
custa renovar os desejos, fazer planos, acreditar que um velhinho de vermelho e
uma virada de noite com algazarra e fogos têm algum condão, alguma magia. Por
que não?
Amanhecerá o
ano-novo já envelhecendo tudo o que fizemos até a véspera, oxidando a vida, descolorindo
um pouco mais os desenhos que fizemos em qualquer papel de desenhista, em
qualquer guardanapo, em qualquer papel de embrulhar pão.
Numa folha
qualquer
Eu desenho
um Sol amarelo
Que
descolorirá
E com cinco
ou seis retas
É fácil
fazer um castelo
Que
descolorirá
Giro um
simples compasso
E num
círculo eu faço o mundo
Que
descolorirá
Nenhuma cor
é eterna. Nenhum castelo terá um único tempo e um único rei. Toda casa perderá
o encanto quando as pessoas se forem. Nenhuma certeza fará incerta a dor, mas
será possível fazer tudo de novo, descobrir o poder da alegria e do desejo, sair
da lona dos nocautes cotidianos.
A casa
reabrirá suas portas e janelas, ficará arejada. Memórias voarão para os seus
cantos de esquecimento ou insignificância. Crianças correrão livres, infantis.
Adultos nem pensarão que um dia elas irão embora adultas porque deixaram de
ouvir gatos que falam. E virão novos viajantes do destino que ajudarão a contar
histórias e irão embora de novo – que talvez sejam parecidos comigo ou sem
qualquer semelhança, apenas viajarão.
Haverá a mesma
rotina dos ciclos, os balanços de fim de ano indo e vindo na algazarra, Papai
Noel em seu mistério de ser ou não ser – o que importa a verdade?
Não fique
triste, acredite. A vida é assim mesmo, ora límpida e clara como um cristal ora
um amontoado de cacos imprestáveis dos cristais que se foram. Nada que uma boa
faxina não resolva.
A casa
encantada pode ser qualquer uma, pode estar em qualquer lugar porque, na
verdade, ela estará em nós. Ao fim, a gente percebe que ela não é alegre ou
triste, é a poesia que foi escrita nela enquanto o tempo passava. Sim, é bom
lembrar que cada verso tem a nossa caligrafia.
Casa em Tiradentes - fotografia WBJ |
Feliz Natal e um ano-novo dos bons!
-> Para a casa querida de Perdizes e todas
as vidas que nela importam.
Trechos de:
Canção em
dois tempos (Vital Farias)
Aquarela (Maurizio Fabrizio-Guido Morra-Toquinho-Vinícius de Moraes)
Pé de sonhos (Petrúcio
Maia-Brandão)
Varandas e
quintais
(Babal Galvão-Jotabê Campanholi)