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18/12/2019

A Casa Encantada

fotografia Heraldo Palmeira


Heraldo Palmeira
Era casa era jardim
Noites e um bandolim
Os olhares na varanda
E um cheiro de jasmim
Era um telhado e um pombal
Melodia e madrigal
E ninguém nem percebia
Que o real e a fantasia
Se separam no final
A casa estava ali no cantinho dela, numa rua pequena e bucólica.
A rua era reservada e eu entrei com a curiosidade da primeira vez, deixando o portão para trás, vencendo os degraus da escadaria amarela. E logo me instalei como se estivesse em casa, vivi os primeiros tempos como se fossem os de sempre, tal foi a intimidade que senti.
Escrevi tantas linhas que perdi as contas, porque a casa me inspirava com seu sossego, sua janela que desfraldava um grande vale além dos telhados da rua calma, cheia de árvores e pássaros e outros pequenos animais. Bastava abrir as cortinas para ter à vista uma cidadezinha do interior dentro da metrópole, uma aquarela de coisas antigas tão boas de viver que parecia mentira ou um sonho bom.
Numa folha qualquer
Eu desenho um Sol amarelo
E com cinco ou seis retas
É fácil fazer um castelo
Vi os traços amarelados nas velhas fotos dos meninos soltos pelos espaços amplos, o desenho do que foram e viveram antes de virarem homens feitos e comprovarem que o real e a fantasia se separam no final – aos poucos, eles foram indo embora cuidar das próprias vidas, deixando seus silêncios e ausências como lembranças cada vez mais vagas e que não voltam nas visitas ocasionais.
Os cabelos foram ficando grisalhos e quietos, uma espécie de contabilidade registrando os lucros e prejuízos acumulados, um balanço das marcas do tempo que não poupa ninguém.
Eu vi a chegada de um novo amor tomar e arejar a casa em pleno outono daquelas vidas, que esquentou o inverno, trouxe as flores da primavera e o calor do verão, e ficou para repetir muitas vezes as quatro estações. De tão feliz, transformou a prata dos cabelos num reflexo da Lua.
Eu vi a pequena menina correndo pela casa, tão especial, tão catarina, peça da engrenagem de marcar o tempo, de renovar a vida com sua inocência de acreditar nas vozes que inventei e criar um gato falante – e a fábula foi atribuída ao gato da casa. O mesmo que me faz companhia sem dizer palavra, que tem certeza de ser o dono da casa.
fotografia Heraldo Palmeira

Eu desconfio que há ali uma magia ajudando a montar o sonho de que a vida pode ser boa.
No quintal por trás de casa
Tem um pé de sonho
Que não para de florar
Florar a noite inteira
Eu vivi as delícias e os medos de todos os tempos, do calor e do frio, das garoas, chuvas e tempestades, das brisas, ventos e ventanias, das pessoas simples e complexas, das presenças e saudades, das tristezas e alegrias... Todas as lições ensinando que nem tudo pode ser como se quer, mas pode ser que seja como der para ser.
Há varandas e quintais com flores e frutos da temporada e temporãos, uma vida que passa por casas, calçadas e lojas, carros apressados, gente que está ali todos os dias com algum sentido – sim, ainda resta sentido e isso é bom.
Varandas e quintais
Oitões do amanhecer
Um galo, um canto de cristal
O rubi do dia no céu
Vem no fio da ventania
Na dança dos varais
Na água dos lençóis
Na dança dos varais
Varandas e quintais
Memórias infantis
Menino, pasmo os olhos
Eu me entrego
E me atiro em mim
Pelas varandas e quintais
Eu vejo as madrugadas pela janela – que virou minha –, porque haverá sempre uma janela e uma madrugada, namorada, de onde pensar o movimento de bater pernas atrás da vida. Não importa o tamanho do passo, basta abrir o compasso e traçar o círculo do mundo e o raio de caminhar.
Numa folha qualquer
Eu desenho um navio de partida
Com alguns bons amigos
Bebendo de bem com a vida
De uma América a outra
Consigo passar num segundo
Giro um simples compasso
E num círculo eu faço o mundo
Há o tempo de ir e de voltar, de sair e de chegar, de querer ficar. E haverá o tempo de parar em algum lugar, que ainda não sei como é ou será. Como há o tempo de ainda não pensar, de aproveitar o resto, de desviar do óbvio.
Preferi ver tudo se enfeitando para o fim de ano, as combinações para as festas. Era o tempo daquele mesmo balanço de todos os anos, do que ficou e do que se espera. Não custa renovar os desejos, fazer planos, acreditar que um velhinho de vermelho e uma virada de noite com algazarra e fogos têm algum condão, alguma magia. Por que não?
Amanhecerá o ano-novo já envelhecendo tudo o que fizemos até a véspera, oxidando a vida, descolorindo um pouco mais os desenhos que fizemos em qualquer papel de desenhista, em qualquer guardanapo, em qualquer papel de embrulhar pão.
Numa folha qualquer
Eu desenho um Sol amarelo
Que descolorirá
E com cinco ou seis retas
É fácil fazer um castelo
Que descolorirá
Giro um simples compasso
E num círculo eu faço o mundo
Que descolorirá
Nenhuma cor é eterna. Nenhum castelo terá um único tempo e um único rei. Toda casa perderá o encanto quando as pessoas se forem. Nenhuma certeza fará incerta a dor, mas será possível fazer tudo de novo, descobrir o poder da alegria e do desejo, sair da lona dos nocautes cotidianos.
A casa reabrirá suas portas e janelas, ficará arejada. Memórias voarão para os seus cantos de esquecimento ou insignificância. Crianças correrão livres, infantis. Adultos nem pensarão que um dia elas irão embora adultas porque deixaram de ouvir gatos que falam. E virão novos viajantes do destino que ajudarão a contar histórias e irão embora de novo – que talvez sejam parecidos comigo ou sem qualquer semelhança, apenas viajarão.
Haverá a mesma rotina dos ciclos, os balanços de fim de ano indo e vindo na algazarra, Papai Noel em seu mistério de ser ou não ser – o que importa a verdade?
Não fique triste, acredite. A vida é assim mesmo, ora límpida e clara como um cristal ora um amontoado de cacos imprestáveis dos cristais que se foram. Nada que uma boa faxina não resolva.
A casa encantada pode ser qualquer uma, pode estar em qualquer lugar porque, na verdade, ela estará em nós. Ao fim, a gente percebe que ela não é alegre ou triste, é a poesia que foi escrita nela enquanto o tempo passava. Sim, é bom lembrar que cada verso tem a nossa caligrafia.
Casa em Tiradentes - fotografia WBJ




Feliz Natal e um ano-novo dos bons!
-> Para a casa querida de Perdizes e todas as vidas que nela importam.

Trechos de:
Canção em dois tempos (Vital Farias)
Aquarela (Maurizio Fabrizio-Guido Morra-Toquinho-Vinícius de Moraes)
Pé de sonhos (Petrúcio Maia-Brandão)
Varandas e quintais (Babal Galvão-Jotabê Campanholi)



14 comentários:

  1. Léa Mello Silva19/12/2019, 11:18

    Fechando com chave de ouro o ano que termina, o Natal que se aproxima !
    Seu texto é uma linda poesia e encanta !
    Agradeço pelas suas memórias de um passado que todos guardamos na memória
    Parabéns !
    Vamos celebrar a vida !!
    Um abraço especial de fim de ano

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    1. Heraldo Palmeira22/12/2019, 01:02

      Léa,
      Fico feliz com essa "chave de ouro". E honrado por perceber que minha casa encantada nos colocou a pensar em coisas boas, nas memórias individuais, no desejo de celebrar. Um abraço especial, boas festas!

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  2. Beleza de post, Heraldo. Cada um de nós tem a sua casa encantada em algum lugar da memória, com suas mágicas bem guardadas no coração. A minha não é mais nossa, mas resiste bravamente a caminho de seus oitenta anos, mesmo com a avenida tranquila em cujos canteiros gramados costumávamos brincar transformada num corredor de trânsito pesado e a vista distante da Serra da Piedade com o pontinho branco da ermida no alto e das torres da igreja matriz de Santa Luzia, lembranças dos bisavós Mestre Augusto e Dona Cocota que víamos da varanda de cima nos dias de sol, tampadas pelos prédios que foram crescendo.
    Cada vez em que a vida me leva a passar à sua frente olho para ela e vejo minha infância e juventude me espiando das janelas altas... E as alegrias delas renascem um pouco no fundo do coração.
    Muito obrigado por esse presente de Natal.

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    1. Heraldo Palmeira22/12/2019, 01:07

      Mano,
      Fiquei tentando imaginar sua casa encantada, que não é mais sua, mas está de pé como uma tela de cinema passando uma parte tão especial do seu filme pessoal. Presente ganhei eu por saber que as janelas altas que ainda estão lá renovam a memória à luz do tempo.

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  3. Flávio José Bortolotto19/12/2019, 13:30

    O ilustre Autor, Sr. HERALDO PALMEIRA, escreve muito bem. Seu elogio da "Casa Encantada" do Bairro Perdizes - SP ( e todas as Vidas que nela importam ), é Poesia do mais puro quilate.

    Também lembramos do nosso Rancho, nosso Lar, doce Lar.

    Feliz Natal e um doce Ano Novo, ao Sr. HERALDO PALMEIRA e sua ilustre Família, extensivo a TODOS(AS) Leitores do excelente "Conversas do Mano".

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    1. Heraldo Palmeira22/12/2019, 01:10

      Flávio,
      Que a casa encantada seja o ponto de encontro de todos nós com as memórias mais caras que guardamos, e que elas nos sirvam como um sopor de vida. Boas festas.

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  4. Olá Heraldo,
    Reflexões íntimas ou poesia com você é sempre assim: não sei se os versos se alongam em linhas ou se as linhas se encontram em combinações poéticas. Naquele ponto onde " o real e a fantasia se separam mas que serão sempre o que der para ser".
    Não façamos balanço do que já fizemos até as vésperas. De qualquer maneira a vida sempre oxidará e o colorido descolorirá. Em vez, vamos pegar o pão quente na padaria da esquina e desenhar no seu papel. E, nessa casa que vai conosco onde estivermos, vamos tomar um café recém feito, quente e forte, com esse pão desembrulhado.
    Na melancolia do seu escrito e na alegria do continuar vivendo agradeço de coração.
    E na esperança do ano novo
    Até muitos mais.

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    1. Heraldo Palmeira22/12/2019, 01:54

      Ana,
      Obrigado pelas palavras sempre generosas. Sim, vamos nos dar ao luxo de ficar assistindo com interesse o ritual do café sendo passado.

      Nada como o prazer de sentir aquele cheiro insuperável exalado no exato momento em que a água fervente vai ficando cheia de bossa e de cor depois de passar pelo pó no coador.

      Só mesmo o pão quentinho, velho pareceiro do café novinho, porque, além de tudo, nos oferece o papel para rabiscar.

      Ao ano-novo, com todas as esperanças preparadas no Natal. Até muitos mais.

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  5. 1) Gostei de ler o texto do Heraldo, entremeado poesia e prosa, sobretudo pelas lembranças que me ocorreram, parabéns !

    2)Minha casa encantada fica, ainda existe, mas não moramos mais lá...na cidade satélite do Gama, DF... porque foi lá que aprofundei as minhas leituras adolescentes, não tínhamos TV em casa.

    3)E foi numa época natalina, nas férias do então Colégio do Gama, 1966, eu fiz uma estante de madeira, para guardar os preciosos livros que estavam se acumulando.

    4)Fiquei felicíssimo com a minha habilidade de carpinteiro.

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    1. Heraldo Palmeira22/12/2019, 01:57

      Antonio,
      A casa encantada com memórias, estantes construídas e livros permitem que o real e a fantasia se encontrem no final. Abraço.

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  6. Francisco Bendl22/12/2019, 07:35

    Parabéns, Palmeira!

    Escreveste um texto lírico, sentimental, mesclando realidade e sonho, onde a realidade muitas vezes é o sonho, e o sonho muitas vezes é a realidade.

    Volto a dizer:
    Tens um talento extraordinário em adicionares às tuas crônicas, que tanto aprecio, trechos de poesias de outros autores, que se tornam um recheio saboroso nesta tua especialidade de nos fazer sentir o gosto legítimo de um trabalho admirável, bem feito, e com a mesma qualidade de sempre.

    Um forte abraço.
    Saúde.
    Feliz Natal e Próspero Ano Novo, junto aos teus amados.

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    1. Heraldo Palmeira22/12/2019, 13:37

      Bendl,
      Obrigado pela leitura e pelas palavras tão gentis.

      A qualidade mais especial contida nas letras escritas ao longo da História, as pretinhas (como diz nosso Caríssimo Moacir) sobre o papel branco, é a capacidade de juntar pessoas tão diferentes e que sequer se conhecem pessoalmente de forma quase íntima, pela sintonia das emoções comuns a todos.

      E essas emoções comuns a todos claramente estão nesses trechos de músicas que me marcaram um dia e seguem feito tatuagens. e presentes em alguns dos meus textos.

      Agradeço e retribuo os votos, seus e de todos os que têm mesa cativa neste Conversas. Que o ano-novo venha dos bons e permita nossos encontros pelas letras. Saúde!

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  7. Moacir Pimentel22/12/2019, 11:06

    Mestre Heraldo,
    Chego atrasado e apressado para lhe dizer que sua belíssima prosa e essa trilha sonora Aquarela são mais poéticas até mesmo do que aqueles versos de pé quebrado do Mário de Andrade que nunca esqueço : "Minha casa...Tudo caiado de novo!É tão grande a manhã!É tão bom respirar!É tão gostoso gostar da vida!...A própria dor é uma felicidade.."
    Até porque no momento estou em uma guerra tentando salvar a minha casa encantada - que também tem uma parede amarela texturizada (rsrs) - de uma praga persistente de cupins! Sucede durante a segunda batalha ajudando os cupinicidas a arrastar os móveis terminei arrebentando as costas. "Êita lasqueira!"
    Mas não tem bicho nem lesão muscular capazes de nos tirar a alegria da "Consoada", o calor dos afetos reunidos em volta da mesa com os narizes tintos de bom vinho. Aos copos e Boas Festas para você, todos os seus e todos nós e todos os que importam nas nossas vidas.
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira23/12/2019, 18:28

      Caríssimo,
      Aqui o tempo não conta, basta chegar. Tenho certeza de que sua casa encantada vai dizimar esses adversários minúsculos que se tornam poderosos pela quantidade insistente. Só não entre em guerra com suas costas, porque essa batalha é mais complicada. Sim, vamos em frente com todos esses sabores especiais do Natal ao lados dos nossos especiais. Abração.

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