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28/01/2020

Os Auto Retratos

Leonardo Da Vinci - Salvator Mundi (detalhe) / Leonardo Da Vinci - Mona Lisa (detalhe) - imagens wikipedia

Moacir Pimentel
Hoje abrimos o post com uma imagem que mistura dois pedaços de dois quadros famosos de Leonardo da Vinci: o rosto do Salvator Mundi com um olho da Mona Lisa...
Porque o Salvator Mundi - a pose curiosa, o sorriso inescrutável, a mão perfeita, o olhar indecifrável - é primo legítimo da Mona Lisa. Essas miradas semelhantes e hipnóticas e sua insuperável qualidade, ao fim e ao cabo, são aquilo que prende o olhar do observador nas pinturas do florentino e dei de pensar que quase todos os olhos de Leonardo eram os mesmos: os dele, não os físicos, mas a visão dele.
Há muuuito tempo prometi à comentarista Flávia que conversaríamos sobre esse Salvator Mundi desaparecido do pintor renascentista, uma obra de arte que sempre foi cobiçada e cuja história foi uma viagem que atravessou as fronteiras da Itália, o oceano Atlântico e muitos séculos.
Quando ressurgiu há quase uma década atrás, como sempre acontece quando das atribuições de obras desconhecidas a artistas famosos, o Salvator Mundi “causou” como diz a juventude tanto rebuliço acadêmico quanto frenesi midiático. Pudera: era um patinho feio e virou o Príncipe da Pintura!  Talvez todo esse burburinho  não seja surpreendente, pois a pintura é o único retrato individual que Leonardo pintou do Cristo adulto e com uma  postura atípica, frontal, bem diferente dos perfis oblíquos ou “três quartos” de seus retratos seculares.

Quando o contemplamos na National Gallery londrina, em 2011, devo confessar que essa sombria e um tanto estranha imagem de cabelos ruivos nos convenceu exatamente pela sua estranheza  e, é claro, pelo carimbo da Galeria que, no catálogo da maior exposição já realizada das pinturas e desenhos do Mestre, descreveu-a como “uma obra recém-descoberta de Leonardo da Vinci”, cometendo uma atribuição na extremidade superior da escala Richter do mundo da arte! Após cinco séculos de obscuridade, o Salvador Mundi virou uma celebridade internacional.

Só que o painel também ajudou a mudar alguns paradigmas sobre Leonardo da Vinci. Que, por exemplo, não acreditava na religião como a ditava a Igreja, mas pensava por si mesmo, claramente ciente de que as lições da Bíblia haviam sido distorcidas, Ele escreveu:
“Muitos que possuem a fé no filho só constroem templos em nome da mãe”.
Isso significava que o artista acreditava que aqueles que seguiam a Igreja estavam mais inclinados a adorar a Virgem do que a seguir os ensinamentos do Cristo. Não é de se admirar que ele e seus quadros fossem às vezes considerados sacrílegos.
Para entender a pintura do florentino antes é preciso lembrar que a mente brilhante de Leonardo tinha concepções heréticas que não se aproximavam de qualquer religião. Como muitos outros de seu tempo, ele era muito mais um filósofo esotérico do que um cristão e preferia o Cristo bíblico aos dogmas da Igreja.
Um dos meus livros prediletos é uma rara edição em papel couchê chamado Leonardo da Vinci - Complete Paintings, editado em 2000 e da lavra do acadêmico italiano Pietro C. Marani, uma das maiores autoridades sobre a obra do artista. É um livro enorme, ricamente ilustrado com duzentas e noventa e cinco fotos das obras de Leonardo, a maioria delas a cores.
Ele tem cinquenta centímetros de altura por quarenta centímetros de largura e então, quando o abro nas páginas centrais onde estão as fotos das pinturas e desenhos, elas surgem à minha frente com quase um metro de pura beleza e encaro as faces e mãos feitas por Leonardo, maiores até do que as minhas.
Cada lascadura na camada de tinta é visível e em algumas das imagens ampliadas podem ser vistas inúmeras impressões digitais do artista, que usava a ponta dos dedos para misturar as tintas sobre a tela e conseguir aqueles famosos sfumatos, o cerne da qualidade de seus trabalhos.
No livro - que no momento está aqui à minha beira e faz justiça pela sua beleza física à obra do gênio renascentista – moram, além das suas quatorze telas conhecidas, todos os mais importantes esboços do gênio, que podem ser, às vezes, mais bonitos do que as próprias pinturas.
As fotos, de grande qualidade, me revelam de forma sempre renovada o extraordinário sentido de luz e sombra, de cor e atmosfera, aquela fugitiva e intangível qualidade do pintor que, na falta de melhor palavra, dizemos leonardesca.
Leonardo é um artista elusivo cujos trabalhos a gente contempla como objetos de rara beleza mas que são verdadeiros quebra-cabeças que em vão se tenta montar e interpretar e reinterpretar indefinidamente.

        Os personagens do pintor nos fascinam porque fogem de nós e aquilo que os mantém vivos é justamente o que lhes permite escapar (rsrs). Alguns mistérios são mais interessantes que outros mas das coisas de Leonardo nunca se pode ter certeza.

       Na imaginação popular Leonardo é um criador de milagres, um gênio, um cara que gera obsessão em acadêmicos e amadores. De fato, é difícil olhar para os trabalhos dele da mesma maneira como vemos as obras de outros artistas. Fica-se entre a interpretação e a presença visual, o deliberado e o danificado, o sagrado e o profano. Mas as esplêndidas pinturas que nos olham de longe não nos fazem esquecer a inestimável quantidade de esboços, estudos, meandros, piadas e anotações que também eram produto de uma mente curiosa e animada, que fervilhava, tantas são as passagens escritas e desenhadas que enchem as páginas dos seus Cadernos.

            Às vezes, ele começava um desenho próximo à borda de um papel em branco, sem deixar espaço para sua conclusão. É como se e;e estivesse sempre projetando seus pensamentos e observações do mundo e, às vfezes, perdesse a tela e/ou a página do Caderno, com pressa e entusiasmo, ou sobrepusesse várias imagens até que se tornassem uma mancha negra quase identificável. É nos desenhos que Leonardo realmente ganha vida para mim, como em um desenho animado, é nos rascunhos, no criar, no planejar que morava o espírito dele.
Não sei quantos livros mais comprei ou li emprestados, que me prometiam explicar o sorriso da Mona Lisa e revelar os segredos da pintura de Leonardo. Tudo inútil. O artista, quase quinhentos anos após a sua morte, continua enigmático.
Em seu próprio tempo de vida ele já havia se tornado lendário, tanto que até mesmo o rei da França se encantou por seu trabalho. Seus biógrafos não lhe pouparam elogios:
“A sua extravagância imaginativa e verbal arrebatava, o esplendor da sua grande beleza poderia acalmar a alma mais triste, e as suas palavras poderiam mover a mente mais obstinada”.
Enquanto os seus requintados desenhos parecem ter sido os precursores do cinema, as suas criaturas de tinta em um punhado de painéis de madeira de lei fascinam a humanidade e seus diagramas, mapas e projetos de engenharia sobre milhares de folhas de papel são geniais. Mas o próprio homem, o criador, continua misterioso.
Quantas centenas de milhares de palavras já não foram escritas tentando transmitir a combinação extraordinária de talento e brio imaginativo que era a mente desse homem enigmático?
Leonardo provavelmente teria considerado todas essas pretinhas como pobres e desajeitados recursos para capturar-lhe a complexidade. Debaixo de um desenho minucioso de um coração dissecado, em uma das muitas páginas de seus estudos anatômicos deslumbrantemente precisos, ele escreveu:
“Que palavras se pode encontrar para descrever a disposição de um coração, como foi perfeitamente feita por este desenho? Meu conselho é para não se incomodar com as palavras, a menos que você esteja falando para os cegos”.
Parece que, para Leonardo, a representação gráfica era a forma mais adequada e precisa de comunicar uma verdade ou para passar uma mensagem para a posteridade. Infelizmente, seus auto retratos a tinta, lápis ou giz – que seriam os equivalentes à tal precisão cardíaca descrita pelo artista - não sobreviveram até nós.
Embora alguns historiadores de arte se esforcem para nos convencer de que eles identificaram imagens de Leonardo entre os seus muitos milhares de esboços e desenhos, ninguém pode provar que Leonardo tenha desenhado a própria face.
Os únicos retratos quase confiáveis mostram o grande gênio renascentista na velhice com longas madeixas e barbas fluindo – o epítome do sábio antigo. Veja à sua esquerda um desses supostos auto retratos:
Leonardo Da Vinci - Retrato de um homem, a giz vermelho / Francesco Melzi - Retrato de Leonardo (imagens Wikipedia)

Mesmo os alegados retratos feitos dele por outros artistas, como é o caso do famoso perfil feito pelo seu aluno Francesco Melzi, acima à direita, não nos mostram a cara de Leonardo. Não há nenhum retrato corajoso, sugestivo do homem no seu apogeu, nenhuma imagem dele no seu ofício, trabalhando como artista ou engenheiro.
Desde os meus vinte e poucos anos, estudante na Itália, percebi observando as obras do artista que várias das suas criaturas são extremamente parecidas. Alguns semblantes presentes à Ultima Ceia lembram os rostos de anjos  ou os perfis dos guerreiros e até mesmo o seu Homem Vitruviano – supostamente um Leonardo jovem – da primeira vez que eu vi, não me pareceu estranho (rsrs)
Diante do que parece ser o uso de um mesmo modelo – tantos olhos, narizes, lábios, testas e sobrancelhas iguais - muita gente boa se pergunta....
Não poderia ser ele mesmo?
Biógrafos descrevem Leonardo como um homem muito bem apessoado, de clássico perfil grego. Há uma teoria, bastante conhecida, que jura de pés juntos que Leonardo usou seu próprio rosto como uma base dimensional para muitas de suas figuras, possivelmente até mesmo para a Mona Lisa. Muitos cogitam se, por acaso, Leonardo não teria pintado algumas de suas figuras olhando-se no espelho, que é sempre um bom professor quando se trata de retratar figuras humanas.
Alguns dos rostos andróginos de Leonardo têm as mesmas características, quase como se ele os tivesse retratado de memória. Mas não era esse o caso desse mestre, que fazia minuciosos estudos preparatórios de seus temas e os esboçava detalhadamente.
É mais como se ele tivesse uma diversidade de características em sua mente e que, quando se tratava de pintar um rosto ou um corpo idealizado – como é o caso do Salvador Mundi - ele misturasse o seu conhecimento real de anatomia com tais feições idealizadas, que são quase sempre as mesmas. Porém alguns dos retratos de Leonardo são claramente o resultado da pintura diante do tema, após muita observação de um modelo. Dele mesmo?
Em 1481 Leonardo recebeu a primeira grande encomenda de sua carreira: um painel da Adoração dos Magos para os monges agostinianos da Igreja de São Donato de Scopeto. As pinturas da Adoração eram populares em Florença, porque davam aos artistas a oportunidade de vestir os três reis do Oriente com as ricas sedas que faziam a cidade famosa. Mas o esboço de Leonardo rejeitou o estereótipo típico, nos quais Maria e o recém nascido Jesus sempre ocupavam o primeiro plano, com os adoradores circundantes e bem vestidos obedientemente os cumprimentando.
Em vez disso, ele colocou Maria no centro de um intenso drama psicológico: uma bela jovem com seu filho recém nascido, cercada por um vórtice de emoções humanas. Alguns dos personagens expressam surpresa e admiração, enquanto outros transmitem confusão ou mesmo angústia e desespero.
A alegria característica da iconografia da Anunciação tradicional não está em evidência. Como tal, a Adoração é a primeira das obras literárias de Leonardo: uma pintura focada em pistas alegóricas e de significado simbólico, em vez de uma representação explícita.
Infelizmente, toda essa qualidade não foi abstraída pelos bons frades. O painel ficou inacabado e não porque Leonardo o tenha abandonado. Pelo contrário: os monges, chocados com o trabalho iconoclasta, desistiram da encomenda e procuraram outro artista mais convencional.
Uma boa olhada nessa Adoração dos Magos inacabada, no entanto, é obrigatória para quem acredita que Leonardo se auto retratava. Os fãs dessa tese não prestam atenção nas datas dos trabalhos ou então acreditam que Leonardo se pintou jovem quando já era velho e vice-versa.
O certo é que se Leonardo for o senhor de barbas e cabelos esvoaçantes aí em cima, desenhado em 1515, quando então teria sessenta e três anos, ele também é um dos Reis na Adoração dos Magos, aí embaixo, esboçada em 1481. Observe a figura do homem idoso que leva a mão à cabeça:
Leonardo Da Vinci - Adoração dos Magos (detalhe) - imagem italian-renaissance-art.com

Pode-se identificar nesse rosto o mesmo queixo poderoso, a mesma largura no rosto, a mesma estrutura óssea, os mesmos olhos e sobrancelhas do velho senhor de longas barbas do desenho anterior. O problema é que quando pintou a Adoração dos Magos Leonardo não tinha ainda trinta anos, já que nascera no dia 15 de abril de 1452. (rsrs)
Na realidade não se tem como provar quem era ou quem não era Leonardo entre as figuras das suas obras. Simplesmente não há registros históricos.
Então, tem-se procurado captar a essência indizível de Leonardo da Vinci nas suas tintas e palavras. Os biógrafos do século XXI sentem a necessidade de entrar na cabeça do artista, para tocar em sua alma emocional e na sua vida sexual desconhecidas. Na realidade o artista e cientista teve uma produção intelectual fragmentada, difusa e tentadoramente incompleta e, acredito, apenas a mente científica dele pode responder ao desafio visual que produziu.
Cada marca de seu lápis ou pincel é perfeita, mas aquilo que fascina mesmo é a representação que o artista fez dele mesmo, como ele conseguiu transferir suas ideias e filosofia para as telas ou papeis. O que ele fez na arte foi, claramente, um espelho de sua alma, e ele pôs algo de sua imagem até mesmo nos seus retratos femininos, porque esta é a natureza de um grande artista.
Leonardo pintava o mundo e seus modelos conforme sua íntima interpretação, conforme um filtro pessoal, como se a arte fosse para ele um diário, cada tela fosse uma página refletindo sua vida, cada esboço uma carta secreta, onde podemos ler seu humor, sua raiva, sua melancolia, suas incertezas e às vezes, com certeza, vislumbrar-lhe um auto retrato.
Mas onde?
É como se Leonardo tivesse tentado impor uma ordem sobre a desordem da natureza por ele observada, um sistema abrangente ou um grande plano. Como se os atos de olhar e desenhar e pintar fossem para ele atos de análise e como se tivesse sido com base nessas análises que o criador humano tentou reinventar o mundo. Refazendo o mundo natural nos próprios termos da natureza, totalmente obediente a causas naturais e efeitos, Leonardo criou um pássaro artificial e a reconstrução artificial da sua experiência visual na presença física de pessoas. Assim a máquina de voar, e assim a Mona Lisa.
O artista foi reverenciado pelos seus contemporâneos renascentistas como um gênio, mas também como um homem inconstante. O biógrafo Vasari, já no século XVI, disse sem rodeios que, constantemente, Leonardo não tinha a menor vontade de executar suas brilhantes ideias.
Esta imagem da desarrumação mental de Leonardo se dissipou no século XIX, quando a enormidade e a precocidade da pesquisa do artista foram reconhecidas por estudiosos, que analisaram suas notas manuscritas e ficaram surpresos com os seus saberes de anatomia, meteorologia, engenharia e arte.
Aquele homem que voava de uma ideia inacabada para outra descrito por Vasari foi desmentido e a cultura moderna passou a cultuar Leonardo como a mente suprema da Renascença, explorando problemas científicos e estéticos em paralelo. No entanto, sua melancolia era real e nos assombra.
É verdade que ele não completou muitos de seus grandes projetos, preferindo se dedicar às pesquisas, mas esse seu modus operandi foi a sua maior contribuição para a nossa ideia de arte. Ao valorizar o desenho e as experiências mais do que as encomendas dos príncipes, Leonardo mostrou sua crença de que a arte é um trabalho mental autônomo e não meramente artesanato.
Durante as pesquisas realizadas em torno do Salvator Mundi quando da sua atribuição ao florentino, foi interessante acompanhar os debates e tentar aprender com os detalhes do trabalho do artista que vieram à tona.
A descoberta do Salvator Mundi lançou muita luz sobre o relacionamento da Grã-Bretanha com Leonardo – a pintura pertenceu ao rei inglês Charles I – e sobre a estupenda coleção de desenhos do artista, que está nas mãos da família real inglesa desde o século XVII.
Muito se falou, então, da possibilidade dos retratos de Leonardo não serem representações de pessoas reais e das suas figuras bíblicas não serem o que parecem. Tomemos, por exemplo, as faces de Santana e de São João Batista em duas pinturas diferentes. Seus rostos são extremamente semelhantes.
Leonardo Da Vinci - Virgem e criança com Santana (detalhe) / Leonardo Da Vinci - São João Batista (detalhe) - imagens elliottingotham.wordpress.com / wikimedia.org 

Leonardo modelou os rostos de forma idêntica, não como se eles estivessem relacionados por parentesco, mas como se fossem a mesma pessoa em um mesmo tempo. Ele teve a mesma – e grande! - dificuldade em alinhar tais narizes ao lado de seus sorrisos iguais, exatamente da mesma maneira.
E, embora os olhos dela estejam fechados e os dele abertos, a ponte do nariz é idêntica, a separação de seus cabelos idem e seus queixos indistinguíveis. Mesmo a iluminação em suas faces é a mesma. No entanto, Leonardo também se esforçou para disfarçar do espectador tais semelhanças girando os rostos em diferentes direções.
Teria Leonardo, ao pintar São João Batista, propositadamente decidido fazê-lo parecido com a sua santa tia avó? Não se sabe. O fato é que poucos historiadores da arte notaram a semelhança Talvez não tenham podido ver tantas similitudes por serem cientistas e acreditarem que os artistas renascentistas copiavam a natureza ou ilustravam histórias, e portanto não pintariam duas figuras com o mesmo rosto.
Só que estamos carecas de saber que a maioria dos artistas se auto retrata e durante as “conversas” da atribuição da tela, gostei de saber que um poeta - Ralph Waldo Emerson – identificara a semelhança entre os personagens de Leonardo da Vinci e escrevera sobre o tema depois de uma visita ao Louvre:
“Leonardo da Vinci tem mais auto retratos aqui do que em qualquer outro Museu e eu gosto muito deles, das mesmas características e identidade que saltam fora tanto de homens como de mulheres. Vi o mesmo rosto em suas telas, acho que seis ou sete vezes. “
Leonardo Da Vinci - São João Batista (detalhe) / A Mona Lisa (detalhe) - imagem br.pinterest.com

Dizem pelas esquinas acadêmicas que a figura do Salvator Mundi, pintada sobre um painel de madeira, que descreve Cristo com a mão direita levantada em bênção e a mão esquerda segurando um globo de vidro, pode ter sido um auto retrato de Leonardo.
Será?
Veremos numa próxima conversa.


24/01/2020

Aguaceiro

fotografia Canindé Medeiros


Heraldo Palmeira
Estávamos naquela conversa sem futuro do pós-almoço no sujinho da esquina de casa. Temos a turma diária, prazerosa. Vamos esticando o tempo, tomando uma última – nunca é a última – cervejinha, o “cafezinho do almoço” – nunca é “o”, sempre é “um dos” – incluído no preço da deliciosa comida caseira.
Tudo é assunto, do futebol ao penúltimo escândalo da política – não há último, sempre virá o próximo –, o casamento do garçom que ainda está em lua de mel no Nordeste... Claro, alguém envia uma mensagem informando que a masculinidade dele está sendo contestada e todos querem saber se ele arranjou alguém para resolver as tarefas nupciais, se casou com homem ou mulher, as gozações costumeiras que apenas traduzem carinho.
No meio da algazarra, o alerta da Defesa Civil chegou pelo celular: havia a previsão de uma verdadeira tromba-d’água chegando a São Paulo. O céu iria desabar com direito a ventos muito fortes e tudo poderia durar três dias. Avisei a todos e começamos cada um a cuidar da vida a partir da notícia.
Apesar da previsão alarmante e de o céu ficar com cara de tempestade, manteve-se a escrita comum às cidades muito grandes: o mundo desaba num bairro, chuvisca no vizinho e mais adiante ninguém nem sabe que choveu.
Assisti pela vidraça da janela um resto de dia de chuviscos e algum vento. A partir de determinado momento, começaram a chegar mensagens do meu sertão querido. Lá o mundo estava desabando pra valer. A Defesa Civil errou por 2.736 quilômetros! Taí um erro que me agradou.
Temos lá um grande açude público, responsável pelo abastecimento da região. Depois de anos de seca vimos, pela primeira vez, restar apenas um fiapo de lodo no fundo da parede de concreto da barragem de quase trinta metros de altura. Uma imagem que nos pareceu verdadeira assombração, havíamos visto aquele solo pela última vez há cerca de sessenta anos, no tempo da construção da barragem. Desde então, esteve sempre sob as águas.
O açude seco (fotografia Canindé Medeiros)

Aquele fiapo de lodo era algo como uma ferida dolorosa na nossa alma sertaneja, um espinho na garganta, um desassossego na alma, a dor de um amor não correspondido.
Aquela secura esturricou o chão, a pele e o brilho dos nossos olhos. Vendo o gigante seco, nos demos conta do tamanho do amor e da perda ao mesmo tempo, do que ele representa na história do nosso arraial.
E as informações não paravam mais de chegar.
– No sítio de compadre fulano já vai em 60mm!
– Num sei aonde já passou de 87!
– Na prainha do balneário já deu 120!
– O rio de tal lugar está de ponta a ponta. A água está vindo para o Gigante!
No fim da noite, o alvoroço já estava instalado: mais de 200mm de água havia caído nas cabeceiras do Gargalheiras! E todos os seus afluentes das cidades mais distantes estavam com água a granel e a caminho.
Nos meses anteriores algumas chuvas esparsas fizeram o trabalho caprichoso da natureza, umedecendo o lençol freático e as grotas da rota das águas. Com isso, o chão estava pronto para virar corredeira e não reter a água que viria.
De repente, a minha janela de chuviscos virou uma agência de notícias de um aguaceiro que eu enxergava emocionado molhando o mapa da minha memória. Imaginei cada palmo daquele chão que conheço desde menino e que sempre está debaixo do solo que piso em qualquer lugar do mundo.
– O Gargalheiras está tomando água – gritava um num dos muitos áudios que me chegavam. Sim, essa era a senha que todos desejávamos para imaginar a festa no sertão, a fartura porvindoura.
Quando chove muito nas áreas urbanas fica claro que não sabemos mais construir cidades, pois não há o que festejar, apenas remediar desastres humanos e materiais.
Quando chove muito no sertão parece mágica, é um encantamento ver como as águas, não importa quanto durou o tempo de seca, reconhecem seus monturos na hora de refazer o curso secular, milenar por onde correm nas enxurradas em busca dos seus leitos onde vão repousar. Haja água!
Água que nasce
Na fonte serena do mundo
E que abre um profundo grotão
Água que faz inocente riacho
E deságua na corrente do ribeirão
Águas escuras dos rios
Que levam a fertilidade ao sertão
Águas que banham aldeias
E matam a sede da população
Águas que caem das pedras
No véu das cascatas, ronco de trovão
E depois dormem tranquilas
No leito dos lagos
Gotas de água da chuva
Alegre arco-íris sobre a plantação
Águas que movem moinhos
São as mesmas águas
Que encharcam o chão
E sempre voltam humildes
Pro fundo da terra

Na manhã seguinte, um dizia que perdera a bomba hidráulica e outro vira um trator submergir, pois não deu tempo de correr para resgatar os equipamentos. Apesar dos prejuízos havia um certo teor de alegria nos relatos pelo retorno das águas
A bomba ficou esquecida e certamente ninguém vai pensar em resgatá-la, pois, para ela ser encontrada, o nível das águas teria de voltar àquele ponto crítico nunca visto antes.
O trator, uma retroescavadeira de grande porte, foi resgatado depois de um habilidoso trabalho dos sertanejos, contando com o auxílio de um poderoso trator de esteira para arrastar a máquina de dentro do lamaçal e da água, pois estava submerso com cerca de 1,5m de água sobre o teto.
O Gargalheiras enchendo o açude (fotografia Ivan Russo)

Nos dias seguintes, a cidade se pôs na espera por novos aguaceiros que pudessem aumentar a lâmina d’água do gigante que comporta 44 milhões de m³. Só nessa primeira lavada, o nível subiu para 12 metros de altura na parede da barragem. O espetáculo da sangria do açude ocorre quando atinge 26,5 metros.
Por essas contas, mais uma chuva e meia daquelas levaria nossa aldeia querida ao êxtase.
Água pra encher
Água pra reter
Água pra manchar
Água pra vazar a vida
Água
Aguaceiro
Aguadouro
Água que limpa o couro
Falam, nas falas modernas, de segurança hídrica. Na verdade, a água que cai do céu benze o solo e a vida do sertão. Ela vem como o complemento do nosso espírito sertanejo, como coisa de Deus, recebida como um dom de renovar a vida, de garantir fartura nas colheitas, na pesca e nos rebanhos gordos, de reconstruir o legado dos nossos antepassados no trato da natureza como fonte de subsistência e de riqueza.
Na verdade, é uma água santa que abençoa e renova a nossa identidade. É uma profissão de fé.
Água de beber
Bica no quintal
Sede de viver tudo
Que o tempo parava
E a meninada
Respirava o vento
Tinha sabiá, tinha laranjeira
Tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
Trechos de:
Planeta água (Guilherme Arantes)
Água (Djavan)

Fazenda (Nelson Ângelo)


20/01/2020

Borboleta míope


Aquarela - Ana Nunes








Ana Nunes

Óculos redondos
Nos olhos coloridos em asas de borboleta
Que na distância míope
Não vê o musgo delicado entre as placas do caminho
Nascido em capricho para o caminhar cego
Sem linhas e cores

A tinta da amora
Põe vermelho no bico do beijaflor
No voo furtacor
furta do açúcar da flor
do pólen em patinhas de abelha
Que bebe em porcelana fina
De tão fina partiu-se em cacos
Que misturados à cera do favo
Fizeram ouvidos moucos
Não ouvem os sinos da campainha-azul
Que sem destino e sem rumo
Entram nas fendas do caminho
E se perdem em águas turvas.

Águas de barquinho de papel
Que sem mais infância se desmancha em dobras
Brancas da roupa mal passada
E em rugas de mãos cansadas
Que tentam os óculos redondos
Nos olhos míopes
Mas já não veem as asas da borboleta.


15/01/2020

As Mulheres do Mestre

Leonardo Da Vinci - Ginevra de'Benci (imagem Google Art Project, wikimedia.org)

Moacir Pimentel
Depois da pororoca de Monas Lisas há que teclar sobre a qualidade excepcional de mais alguns retratos de Leonardo da Vinci e da conexão entre o artista e seus modelos. Ali rolava algum tipo de “química” pois o pintor dotava as suas mulheres com personalidade e essa é, talvez, a característica que torna tão perspicazes e reais tais obras de arte.
Vasari afirmou, por exemplo, que o Mestre conseguira fazer a Mona Lisa sorrir contratando músicos e comediantes para entretê-la.
“Enquanto ele pintava seu retrato, pessoas tocavam e cantavam ou contavam piadas a fim de tirá-la da melancolia e fazê-la feliz. E, nesta obra de Leonardo, havia um sorriso tão agradável, que era uma coisa mais divina do que humana”
É mais provável, penso eu, que o próprio Leonardo se desse bem com as mulheres, embora digam que não as amava. Seja lá como for, há mistério nas mulheres de Leonardo. Não é apenas a Mona Lisa que nos provoca com aquele sorriso enigmático e tão distante. Outras senhoras do pintor estabelecem com seus observadores relacionamentos ainda mais dinâmicos.
Em seu primeiro retrato Leonardo quase encheu o painel com o rosto triste e reflexivo e de olhos grandes e amendoados de uma Ginevra de'Benci, a moça que inaugura o post.
Na Itália, o retrato de Ginevra foi revolucionário, pois nunca antes na história da arte uma figura feminina olhara assim diretamente para os olhos do espectador, o confrontara pessoalmente, perfurando com sua mirada o plano da imagem para estabelecer uma relação psíquica no tempo humano. Leonardo representou essa mulher em termos dramaticamente novos e diversos: imbuída de vida psíquica.
Esse olhar nada tem daquele divertimento íntimo da Mona Lisa mas sim um enfado maravilhosamente luminoso. Ginevra envolve os que a contemplam em seu devaneio poético por causa dos seus lábios cerrados em uma linha de irritação e mesmo dos anéis dos cabelos repetidos nas folhas de zimbro – ginepro em italiano - que podem muito bem definir o caráter espinhoso da modelo.
Essa cabeça arrogante retesada sobre o pescoço rígido, as pálpebras pesadas e semicerradas que lançam sombras sobre as íris cerceando a comunicação, o sutil estrabismo do olho esquerdo acentuando a ausência de foco do semblante, os olhos estreitados enquanto ela atura o pintor e a arte, revelam a alma sensível de uma da maiores intelectuais do seu tempo.
Ginevra é toda corpórea mas totalmente impenetrável. E é isso o que nos mostra Leonardo nesse retrato: justamente essa ocultação, em um olhar que parece nos considerar de cima para baixo. O próprio pintor explicou essa mirada gelada e desprovida de sedução com o famoso ditado:
“Os olhos são as janelas da alma”.
Enquanto que Vasari descreveu o retrato como uma “cosa bellissima” esse rosto é também inquietante talvez porque nele a moça surja contida, senhora de si e dona de suas emoções.
E então Leonardo cometeu o primeiro grande avanço no retrato secular quando pintou a sua Senhora com um Arminho. Liberado dos contornos do perfil numismático, o retrato é um exemplo de contraponto ao ideal clássico, uma livre narrativa que movia a cabeça, o tronco e os membros de um corpo humano em diferentes posições e direções.
“Quando visto de vários pontos de vista”, escreveu Leonardo em seu Tratado sobre a Pintura, “cada ação humana é mostrada como infinita em si mesma”.
O retrato de Cecilia Gallerani, a amante do duque Ludovico Sforza, aclamada por sua beleza incomparável e inteligência esfuziante, é franco e sensual. Cecilia foi pintada interagindo com alguém fora do quadro e a esse feito nada se igualava em retratos contemporâneos ou anteriores.
Esta mulher dona de si mesma gira em seu próprio eixo enquanto segura firmemente o animal que alude ao arminho que era o emblema do duque, seu amante. A mão exibe a força e rima, em forma, com o animal sob seu controle sugerindo assim que a criatura afiada e feroz podia tanto representar um aspecto da personalidade da moça quanto alguém sob seu domínio.
Leonardo Da Vinci - Senhora com Arminho (imagem wikimedia.org)

Menos reflexiva e mais direta e sexy do que a Ginevra e com certeza do que a Lisa essa senhora acaricia um animal de estimação bastante fálico, enquanto se vira sutilmente com um meio sorriso como se saudasse o amante. E então a pintura sai dos trilhos clássicos para sugerir drama erótico e jogos emocionais.
As características revolucionárias dessa imagem - seu claro-escuro suave, o contraste nítido entre a carne viva e o limbo escuro do fundo, o olhar atento da modelo como se tivesse sido atraído por algo fora de nossa visão - foram imitados no retrato e na fotografia moderna tantas vezes que é difícil para nós compreender a imensa originalidade da pintura.
Os retratos de Leonardo são milagres de teatralidade, e isso a gente percebe antes mesmo de considerar seu desenho incrivelmente sensível, a coloração requintada, a composição dinâmica e os corpos humanos infinitamente reais. Eles não são jamais “bonitinhos”, planos ou maçantes. Leonardo da Vinci pode até não ter gostado de mulheres, mas trabalhava duro para lhes dar os retratos que mereciam, cheios de vida e caráter.
Tomo emprestadas algumas das pretinhas dos Cadernos do Mestre:
“A aquisição de qualquer conhecimento é sempre de utilidade para o intelecto porque dele pode expulsar coisas inúteis e reter o bem. Pois nada pode ser amado ou odiado a menos que seja conhecido pela primeira vez.”
E é só por isso que eu passo a teclar sobre outra pintura polêmica - A Madona Benois, também apelidada de Madona da Flor - que hoje é considerada um dos mais antigos trabalhos de Leonardo da Vinci e faz parte da coleção do Museu Hermitage em São Petersburgo, na Rússia.
Leonardo Da Vinci - A Madona da Flor (imagem leonardodavinci.net)

Durante séculos, A Madona da Flor simplesmente desapareceu. Em 1909, porém, a pintura emergiu de repente em uma exposição de pinturas organizada pelo arquiteto Leon Benois, que acabou vendendo-a para o Hermitage, em 1914.
Parece que ela havia sido transportada da Itália para a Rússia na década de 1790, provavelmente por um amante das artes de nome Alexander Korsakov. Após a sua morte, o filho de Korsakov vendeu a Madona para um comerciante e, eventualmente, ela chegou às mãos da família Benois, em 1880.
Desde o final do século XV obras de arte realistas semelhantes à Madona Benois passaram a retratar pessoas mais autenticamente, graças aos estudos da anatomia humana feitos pioneiramente por Michelangelo e Leonardo da Vinci.
Embora tenha havido alguma dúvida sobre a atribuição da Madona Benois a da Vinci, chegou-se ao consenso de que ela fora realmente pintada por Leonardo quando ele ainda era um dos aprendizes do mestre Andrea del Verrocchio.
Aos quatorze anos Leonardo já era considerado um mestre e um membro da Guilda de São Lucas. No entanto, e ao contrário do que se possa pensar, o gênio não nasceu sabendo pintar. Ele foi treinado por Verrocchio e sua fidelidade ao mestre era profunda e por todos conhecida. Na verdade, Leonardo pode ter sido o modelo para duas das obras do seu professor: um David esculpido e um anjo pintado por Verrocchio no trabalho de nome Tobias e o Anjo.
Verrochio - Davi (imagem br.pininterest.com) / Tobias e o Anjo (detalhe), imagem wikimedia.org


Foi só no ano de 1478 - decisivo para o artista – que Leonardo, além de ter se desligado de Verrocchio, se aproximou da família Medici, que iria oferecer-lhe muitas oportunidades de trabalho. Ele trabalhou ao mesmo tempo tanto na Madona Benois quanto numa Adoração dos Magos para o altar da Capela de São Bernardo.
Na obra e dentro de uma moldura de bronze mora uma mulher jovem, brincalhona e sorridente com um menino nu no colo. Vestida com trajes renascentistas e de cabelos trançados, ela é real e sorridente e parece feliz da vida. Ao contrário de muitas outras obras renascentistas, o bebê parece fascinado pelas flores que segura com as mãozinhas em vez de segurar um objeto sagrado.
Uma janela no fundo deixa entrar a luz na sala onde os dois se sentam, iluminando-lhes os halos e as expressões faciais que parecem ser os elementos visuais mais importantes dessa pintura: são naturais e sinceras. A mulher está sorrindo em adoração ao seu bebê que, por sua vez, parece não lhe dar a menor bola, entretido com as flores.
Leonardo Da Vinci - A Madona da Flor (fetalhes), imasgens wikimedia.org

O que diferencia essa pintura de obras até maiores de Leonardo é justamente a intimidade entre as duas figuras e o amor dessa mãe tão bem capturados pelo artista. Há calor, frescor e naturalidade na emoção dessa mulher e na vivacidade dessa criança, perdidos em uma brincadeira raramente vista em um assunto tão religioso.
Depois dessa Madona muitas outras pinturas parecidas foram elaboradas e, em seguida, cópias delas foram produzidas em série. Rafael pintou sua própria versão da pintura: a Madona da Rosa. O próprio Leonardo pintou muitas outras cenas notáveis da mãe e da criança: a Madona do Cravo, a Madona Litta e a Madona com a Criança e a Romã.
imagens filevychaboutart.blogspot.com.br, wikimedia.org, artsdot.com, artrue.ru

No entanto, apesar das similitudes entre a Madona e tantas outras mães e meninos pintados pelo artista – com cravos, dando de mamar, com romãs etc - a atribuição da Madona de Benois a Leonardo só foi bem sucedida porque da Vinci fez alguns esboços preparatórios da pintura.
Um desses estudos – veja o desenho à direita na base da montagem acima - mostra exatamente a mesma figura mariana sorridente depois pintada como a Madona Benois só que com um menino Jesus brincando com um gato. Todas as características desse desenho espelham a pintura final da Madona Benois, embora Leonardo tenha desistido do bichano e resolvido pintar o garoto voltado para a mãe e brincando, em vez, com flores.
Estava resolvida a celeuma: o esboço da Madona do Gato foi o elo perdido entre Leonardo da Vinci e a Madona Benois, a prova irrefutável que colocou um ponto final nos questionamentos da atribuição.
E então em 2008 um outro óleo, de nome Salvator Mundi, foi atribuído a Leonardo da Vinci.
Mas dele falaremos em uma outra conversa.