Katsushika Hokusai - A Grande Vaga (1833) |
Heraldo Palmeira
Batidas
na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho
Pra ter argumento
Mas fico sem jeito
Calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu
não sei
O dia era da tal Confraternização
Universal, o primeiro de mais um ano-novo. Dentro e fora da casa um silêncio
quase absoluto, como se a humanidade tivesse ido dar uma voltinha pela Via
Láctea sem hora para voltar – oxalá ficasse por lá, alguém pensou em silêncio!
Lembrei da correria que havia antes, as pessoas
se preparando para a passagem do ano. Toda aquela euforia, toda aquela
ansiedade que vai terminar em bebedeiras, cansaços, o de sempre!
Todos sabemos dos detalhes incontáveis. Roupas,
comidas, bebidas, mandingas, grupos que faremos parte, flores, simpatias,
antipatias, superlotações, vazios emocionais, alegrias, tristezas, esperanças, gritos,
silêncios, saudades, desencantos, desenganos, encontros e reencontros
esperados, indesejados ou temerários...
Tudo está no repertório da festa e uma
amiga terapeuta lembrou do terremoto que o fim de ano – aquele tempo em que
desejamos boas festas para todo lado e arrancamos felicidade seja lá de onde
for – pode causar na vida de muita gente, porque é também um momento que embute
alguns pontos que não costumam subir ao palco principal das festas quase
intermináveis.
A aflição dos dependentes químicos tendo
por perto a química que lhes devastou, o álcool como vedete principal de
ofertas quase sempre desatentas dos demais, a tal “umazinha só” que reabre a
porta do corredor do inferno.
A ansiedade dos depressivos obrigados a
conviver com uma alegria coletiva quase sempre superfaturada. Rondando, o
perigo da mistura de remédios e bebidas, das perguntas indiscretas ou vantagens
contadas pelos outros que podem entrar no ouvido como um punhal a caminho do
coração.
O pânico dos que sofreram abusos tendo de
cumprimentar e conviver – fugindo de qualquer encontro à sós na cozinha, a
caminho do banheiro, no elevador – com seus carrascos, quase sempre instalados
nos ambientes familiares e transitando na beira de um abismo de segredos ou
segredos de polichinelo silenciados pela conivência geral. Tudo isso sob o
pavor intenso de alguém pedir que vá ajudar exatamente aquela pessoa a pegar
alguma coisa na garagem ou em qualquer lugar solitário da casa.
Fim de ano, tempo de rever as bonanças e tempestades
da vida que ora é riacho manso passando debaixo da ponte ora é mar revolto e
incontrolável. Há hora de manobrar desse aguaceiro, há hora de ser tragado por
ele. Não há como fugir das marés feitas de ondas calmas que nos banham e vagas
poderosas que nos dão caldos violentos. É urgente aprender a navegar sem
escolher água, manobrar de acordo com o curso.
Não há como passar ao largo das misérias, dramas
e comédias humanos, do eterno movimento entre o claro e o escuro de todos os
dias, entremeado pelo lusco-fusco que não se permite decifrar se é do antes ou
do depois.
Quem sabe o que é parte do fim da madrugada
ou do início da manhã? Quem sabe o que é parte do fim da tarde ou do início da
noite? Esfinge! “Decifra-me ou devoro-te”, todos nós temos, em alguma medida,
nossos enigmas trancados, pontos indecifráveis.
Repetimos “boas festas” a esmo, até para
estranhos na rua. Acreditamos que uma virada de noite com um velhinho de
vermelho, ceia farta e presentes, ou muitos fogos e oferendas que multiplicam o
trabalho dos garis à beira-mar têm o condão de promover mudanças... Não há como
escapar de enxergar que vamos envelhecendo, muitos sonhos ficaram pelo caminho
e outros ficarão. Não é fácil decidir entre sofrer ou dar de ombros.
Deitado no sofá, depois do almoço do
primeiro dia do ano, tentei escapar desses pensamentos hiper-realistas sobre as
noites mágicas. Pelas janelas da casa foi possível olhar para o mundo além das
escotilhas do barco ancorado na zona de conforto. As águas estavam calmas, nada
balançava. Havia nisso um sopro de esperança.
O som da rede social resgatou a realidade. Amigos
em férias enviaram fotos deslumbrantes do fim de tarde do primeiro dia do ano
em Sorrento. Estavam em um tempo com sotaque italiano, à frente algumas horas
do meu.
Sorrento (foto de Maria Bos) |
Haviam chegado a Roma na véspera, respirado
os ares da Cidade Eterna. Assistiram à queima de fogos nos arredores do
Coliseu. Suas vozes certamente engrossaram a gritaria – um verdadeiro
patrimônio italiano – da alegria de mais uma virada.
O clarão multicolorido cortando o céu
mostrou o momento de cumprimentar os queridos e os desconhecidos ao redor. Nada
diferente do que aconteceu no resto do mundo, em cerimônias regidas por cada um
dos vinte e quatro fusos horários riscados hipoteticamente sobre a superfície
do globo terrestre. A vida passando em vários tempos.
Nos dias seguintes, enviaram a claridade
cristalina de uma vila de pescadores na Costa Amalfitana, a escuridão profunda
de um fim de tarde na Sicília, no ambiente do Etna, naquela convivência tensa
de quem se aproxima da jaula da fera mas não pode passar a mão.
Vila de pescadores, Costa Almafitana (foto de Maria Bos) |
Vulcão Etna, Sicília (foto de Maria Bos) |
Mal piscaram e já estavam em Malta, na
sequência da expedição. Explorando o pequeno paraíso mediterrâneo, foram parar em
Gozo, outra ilha do arquipélago, onde Brad Pitt e Angelina Jolie viveram um
tempo numa casa de pedra, em família, para rodar o filme À beira mar,
cenário deslumbrante!
Ilha de Malta (foto de Maria Bos) |
Gozo, arquipélago de Malta (foto de Maria Bos) |
Os amigos estavam apenas iniciando sua
longa viagem anual que já os aproxima dos cem países carimbados nos passaportes
– sem contar os que visitaram mais de uma vez –, como uma odisseia particular cultuada
há muitos anos. Ainda passariam por Alemanha, Áustria, Israel e Jordânia.
Uma odisseia que vai permitindo
experiências, gravando imagens na memória, juntando suvenires, saudades, atravessando
o mundo como uma busca do melhor sentido da vida. Foi o destino que resolveram buscar
a cada amanhecer, a outra face de quem só sai de casa para viver o que disseram
para ser vivido.
Fiquei olhando as fotos e imaginando que
tudo não passa do mesmo jogo eterno de claro e escuro. É assim que se revela o
correr do dia que a gente enxerga como uma ideia não muito precisa de que o
tempo está passando.
As cartas estão na mesa. Ou vamos vivendo
tudo intensamente ou vamos perdendo o tempo que era nosso até um segundo atrás.
O mesmo tempo em que você leu esta palavra
exata já não é mais seu. Olhe para trás no texto e veja onde está agora a
palavra exata que acabou de ler. Está ali, um pouco mais atrás, antes das que
vieram depois, num tempo que foi meu passado imediato no momento em que escrevi
– agora bem mais distante – e agora já faz parte do seu passado imediato.
Bobagem? É mesmo! Olhe novamente para a
palavra exata e sinta quanto tempo já passou e você nunca mais vai conseguir
voltar exatamente ao ponto original da palavra exata. Aliás, qual era mesmo a
palavra exata que você leu lá atrás? Sim, é seu tempo indo embora sem lhe dar
qualquer satisfação. Talvez a única coisa exata é que não há nada a fazer, a
não ser viver intensamente ou murchar lentamente. Escolha de cada um.
Esta bobagem não significa nada no tempo
total de uma vida, até que a gente perceba que o tempo total vai sendo
rigorosamente consumido nesses fragmentos imperceptíveis. Vai doer a dor de que
tudo vai se perdendo; sorria em busca dos ganhos que ainda restam. De novo,
viver intensamente ou murchar lentamente. Independe da dor.
Um piscar de olhos pode impedir de ver um
pássaro que passou voando e que nunca mais passará naquele instante exato. Mesmo
se ele voltar, não foi e nem será, terá sido. É passado. Irrecuperável. Mas, e
as asas? Há voos. Brotar ou murchar.
O tempo passa? Não passa
No abismo do coração
O tempo nos aproxima
Cada vez mais
Nos reduz a um só verso e uma
rima
De mãos e olhos, na luz
Não há tempo consumido
Nem tempo a economizar
O tempo é todo vestido
São mitos do calendário
Tanto o ontem como o agora
Trechos de:
Resposta
ao tempo (Cristovão Bastos-Aldir Blanc)
O tempo
passa? Não passa (Carlos Drummond de Andrade)
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirO Tempo, na voz da Nana, é para matar em uma manhã preguiçosa de domingo. Mas a canção tem um verso que diz tudo ao descrever o danado do protagonista versus o bicho homem: “Porque sabe passar e eu não sei”. Bingo!
Seguinte: não tenho quase sessenta e cinco anos, tenho os anos que me restam e neles pode apostar que não vou virar escravo do hábito e “murchar” na mesma geografia cotidiana, não vou parar de mergulhar de cabeça apesar dos “caldos violentos”, não vou deixar de “viajar” em todos os sentidos da palavra - se bem que “ajustando o curso” (rsrs) - não vou desistir de projetos antes de tentá-los, de conversas antes que terminem, de perguntar e aprender sobre o que desconheço, de rir de mim mesmo e da imbecilidade humana.
Não, não vou aposentar as asas, não vou desacreditar do grande Tom ao dizer “que as noites ficam tão frias que só podem amanhecer”, não vou morrer lentamente sem brilho nos olhos, com um “espinho na garganta” em vez de uma “flor na boca”.
E, acredite, as suas pretinhas mágicas ajudam a tocar todos esses bons propósitos tão característicos dos primeiros dias do ano (rsrs)
Abração
Caríssimo,
ExcluirSim, a tal frase na voz de Nana parece ser ainda mais definitiva!
Pois é, não podemos nos deixar murchar e todos os demais ingredientes propostos na sua receita são de fato inarredáveis, no melhor estilo "irrevogável e irretratável" dos contratos. E enquanto houver lugar para risadas o GPS estará ajustado. E vamos nos valendo das pretinhas para criar aventuras. Abração.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirMe fez tanto pensar que desisto de escrever.
O claro o escuro. A alegria de viver. O medo do presente que nem foi direito e já virou passado. Se mais vale a festa ou a sesta. A tradição do feliz ou o sossego do descanso. As cores da tragédia ou o chope depois do enterro. A obrigação de estar alegre e o tempo escapando pelos cílios ou pelas mãos. Tanto faz, inexoravel.
O medo do encontro ou a mesmice tranquila do desencontro.
Isso não vai dar certo... Podemos conversar depois?
Obrigada de coração. Doído ou não, preocupado certamente. Mas preparado para muitos outros.
Até então.
Ana,
ExcluirPois é, às vezes, quadros aparentemente inofensivos acendem o pavio e catabluuuum! A abóbora da Cinderela vai pelos ares porque passou da hora.
Tem jeito não, sem escapatória. Fazer o quê? Apenas administrar o sinistro, diminuir as consequências e tocar em frente. Horácio Paiva, poeta, velho amigo dos meus primeiros anos, me enviou dois comentários a respeito do texto. Num deles, não titubeou:
TEMPO E ETERNIDADE
Já não tenho tempo
Compreendo
Como Santo Agostinho
Que o tempo é uma invenção do homem
Para contagem de seus dias
Mas tenho, Senhor, a Vossa eternidade
Onde, perene, caminho
Até, pois!
Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,
ResponderExcluirBela rememoração da época de Ano Novo ( dia da Confraternização Universal), contadas por um Poeta/Escritor que domina como poucos a difícil Língua Portuguesa.
Correrias, euforias, ansiedades... pouco antes da "virada", simpatias em cima da hora, e calmaria depois.
Amigos via Internet contam de suas viagens de volta ao mundo, mandando fotos. E começamos um Ano Novo, que desejamos especialmente para o AUTOR Sr. HERALDO PALMEIRA e Família, extensivo aos Leitores do "Conversas do Mano", que seja saboroso como a Maçã e doce como o Mel.
Parabéns e um Abração.
Flávio,
ExcluirObrigado pela leitura, suas palavras animam a continuar rabiscando. E agradeço seus votos, que retribuo. E que todos nós consigamos driblar os pontos difíceis que o cotidiano nos apresenta o tempo inteiro, para que tenhamos um ano positivo. Abraço.
Não sou de pegar carona, pois tenho carro e dirijo.
ResponderExcluirMas, desta vez, vou me utilizar dos meus amigos e dizer que seus comentários seriam os meus, se me permitirem.
Vou aproveitar a carona que estão me oferecendo para elogiar, de novo, mais um trabalho do Palmeira, e afirmar que os três textos que me antecederam foram primorosos porque exatos, adequados e irrepreensíveis.
No entanto, além de caroneiro, observo que cada um de nós interpreta o mesmo acontecimento de forma diferente.
No meu caso, digo que o início do ano traz muita nostalgia, tanto por ter sido excelente, quanto dolorido, saudoso, pela falta de entes queridos que já se foram;
Tanto porque os feriados de Natal e Ano Novo deram uma folga às atribulações, como os problemas, as adversidades, reiniciaram como se nada tivesse acontecido;
Tanto pelos esforços despendidos para que as Festas fossem excelentes, quanto para constatar que o retorno do cotidiano vai requerer mais ainda luta e destemor da minha parte;
Tanto pela alegria do congraçamento, da união familiar, de filhos, netos, noras, parentes, amigos, quanto pela tristeza da solidão, pois cada um dos que estiveram comigo e minha esposa voltaram para suas casas e afazeres;
Tanto pelo barulho, pelas vozes altas, risadas, histórias divertidas, pessoas envolvidas nos comes e bebes, quanto pela volta da realidade, de uma casa em silêncio e vazia;
Tanto pela juventude esfuziante, suas energias, brincadeiras, que animam o ambiente e o tornam contagiante, quanto depois pela inércia, pois três idosos vivem como se estivessem em um mausoléu!
Não há como, a meu ver, fugirmos da realidade, do dia a dia, das vitórias e derrotas, que marcarão mais um ano em nossas vidas.
Mais centenas de dias à espera do momento que nossas atribulações ficam suspensas, deixadas de lado, ignoradas, e que nos dão o devido impulso para festejarmos mais uma data no calendário, apesar da saudade que vamos acumulando a cada ano desses encontros e festas maravilhosas ou não.
A espécie humana, além das suas características positivas e negativas, seria também dotada de saudade, nostalgia, tristeza, aquela que dói, machuca, e não nos deixa esquecer?
Acho que nascemos, vivemos e morremos, tendo as nossas vidas elaboradas pelos acontecimentos do passado:
Se muito dolorosos, o cotidiano será pesado, esmagador;
Se ainda temos nossos pais, filhos, netos, noras, a maioria dos amigos conosco, então viver será mesmo uma alegria.
E, se perceberam, sequer mencionei o dinheiro, o vil metal, que não compra amizade, amor, afeto, compreensão, tolerância, solidariedade, consideração ... pois tais sentimentos são invisíveis, diferente do dinheiro, que é algo concreto.
Não há como a moeda adquirir o que não vê, haja vista que sentimentos não se pesam; não estão embalados; não são comprados por quantidade.
Sendo assim, lembro que escrevi anteriormente que deveríamos fazer todos os dias do ano um Natal.
Palmeira confirmou, no seu belo e pungente artigo.
E, meus amigos, manifestaram-se desejando que a saudade fosse deixada de lado, e que vivêssemos alegremente.
FELIZ NATAL!
Bendl,
ExcluirObrigado, meu caro. Como "disse" ao Flávio, vocês sempre me animam a estocar papel e tinta e rabiscar com palavras generosas aos meus textos.
Essas festas mexem com a gente, principalmente com o passar do tempo da vida, porque nos remetem aos encantos que sentimos na infância e vão nos colocando a nu diante da realidade, dos desencantos. Portanto, melhor viver o que nos cabe da melhor maneira. Abraço.
Heraldo, você disse muito ao dizer:
ResponderExcluir"As cartas estão na mesa. Ou vamos vivendo tudo intensamente ou vamos perdendo o tempo que era nosso até um segundo atrás."
Mas como disse o grande, imenso Carlos,
"O tempo passa? Não passa
No abismo do coração".
Então que escutemos o coração e sigamos seus impulsos, porque essas são as coisas boas que vamos levar conosco, e, como o disse Galileu e Moacir nos contou, "temos os anos que nos restam", e como muito bem disse o Moacir, "não vamos aposentar as asas".
Sem nos esquecermos de não deixar que nossa alegria empane a dor dos que sofrem, mas, quem sabe, possa servir para trazer ao menos um sopro fresco no escuro em que estão.
Um abraço do Mano
Mano,
ExcluirAndo me convencendo de que o "imenso Carlos" está certo ao nos induzir a tentar controlar o tempo, para que ele não passe. E ele trava no abismo do coração que, como todo abismo, é um precipício para nosso equilíbrio, um perigo de desabamento.
Mas é possível levar em conta o que você diz, ouvir o coração e seguir seus impulsos, batendo as asas que o não devemos aposentar, como bate pé o Caríssimo. É o único jeito de a gente voar sobre a falta de chão que as dores do mundo nos causam e pousar lá adiante, em qualquer istmo que apareça na rota como ponto de apoio para o trecho seguinte da aventura. Abraço.