fotografia Canindé Medeiros |
Heraldo Palmeira
Estávamos
naquela conversa sem futuro do pós-almoço no sujinho da esquina de casa. Temos
a turma diária, prazerosa. Vamos esticando o tempo, tomando uma última – nunca
é a última – cervejinha, o “cafezinho do almoço” – nunca é “o”, sempre é “um
dos” – incluído no preço da deliciosa comida caseira.
Tudo é
assunto, do futebol ao penúltimo escândalo da política – não há último, sempre
virá o próximo –, o casamento do garçom que ainda está em lua de mel no
Nordeste... Claro, alguém envia uma mensagem informando que a masculinidade
dele está sendo contestada e todos querem saber se ele arranjou alguém para resolver
as tarefas nupciais, se casou com homem ou mulher, as gozações costumeiras que
apenas traduzem carinho.
No meio da algazarra,
o alerta da Defesa Civil chegou pelo celular: havia a previsão de uma
verdadeira tromba-d’água chegando a São Paulo. O céu iria desabar com direito a
ventos muito fortes e tudo poderia durar três dias. Avisei a todos e começamos
cada um a cuidar da vida a partir da notícia.
Apesar da
previsão alarmante e de o céu ficar com cara de tempestade, manteve-se a
escrita comum às cidades muito grandes: o mundo desaba num bairro, chuvisca no
vizinho e mais adiante ninguém nem sabe que choveu.
Assisti pela
vidraça da janela um resto de dia de chuviscos e algum vento. A partir de
determinado momento, começaram a chegar mensagens do meu sertão querido. Lá o
mundo estava desabando pra valer. A Defesa Civil errou por 2.736 quilômetros!
Taí um erro que me agradou.
Temos lá um
grande açude público, responsável pelo abastecimento da região. Depois de anos
de seca vimos, pela primeira vez, restar apenas um fiapo de lodo no fundo da
parede de concreto da barragem de quase trinta metros de altura. Uma imagem que
nos pareceu verdadeira assombração, havíamos visto aquele solo pela última vez
há cerca de sessenta anos, no tempo da construção da barragem. Desde então,
esteve sempre sob as águas.
O açude seco (fotografia Canindé Medeiros) |
Aquele fiapo de lodo era algo como uma ferida dolorosa na nossa
alma sertaneja, um espinho na garganta, um desassossego na alma, a dor de um
amor não correspondido.
Aquela secura esturricou o chão, a pele e o brilho dos nossos
olhos. Vendo o gigante seco, nos demos conta do tamanho do amor e da perda ao
mesmo tempo, do que ele representa na história do nosso arraial.
E as informações não paravam mais de chegar.
– No sítio de compadre fulano já vai em 60mm!
– Num sei aonde já passou de 87!
– Na prainha do balneário já deu 120!
– O rio de tal lugar está de ponta a ponta. A água está vindo para
o Gigante!
No fim da noite, o alvoroço já estava instalado: mais de 200mm de
água havia caído nas cabeceiras do Gargalheiras! E todos os seus afluentes das
cidades mais distantes estavam com água a granel e a caminho.
Nos meses anteriores algumas chuvas esparsas fizeram o trabalho
caprichoso da natureza, umedecendo o lençol freático e as grotas da rota das
águas. Com isso, o chão estava pronto para virar corredeira e não reter a água
que viria.
De repente, a minha janela de chuviscos virou uma agência de
notícias de um aguaceiro que eu enxergava emocionado molhando o mapa da minha
memória. Imaginei cada palmo daquele chão que conheço desde menino e que sempre
está debaixo do solo que piso em qualquer lugar do mundo.
– O Gargalheiras está tomando água – gritava um num dos muitos
áudios que me chegavam. Sim, essa era a senha que todos desejávamos para
imaginar a festa no sertão, a fartura porvindoura.
Quando chove muito nas áreas urbanas fica claro que não sabemos mais
construir cidades, pois não há o que festejar, apenas remediar desastres
humanos e materiais.
Quando chove muito no sertão parece mágica, é um encantamento ver como
as águas, não importa quanto durou o tempo de seca, reconhecem seus monturos na
hora de refazer o curso secular, milenar por onde correm nas enxurradas em
busca dos seus leitos onde vão repousar. Haja água!
Água que nasce
Na fonte serena do mundo
E que abre um profundo grotão
Água que faz inocente riacho
E deságua na corrente do ribeirão
Águas escuras dos rios
Que levam a fertilidade ao sertão
Águas que banham aldeias
E matam a sede da população
Águas que caem das pedras
No véu das cascatas, ronco de
trovão
E depois dormem tranquilas
No leito dos lagos
Gotas de água da chuva
Alegre arco-íris sobre a
plantação
Águas que movem moinhos
São as mesmas águas
Que encharcam o chão
E sempre voltam humildes
Pro fundo da terra
Na manhã
seguinte, um dizia que perdera a bomba hidráulica e outro vira um trator
submergir, pois não deu tempo de correr para resgatar os equipamentos. Apesar
dos prejuízos havia um certo teor de alegria nos relatos pelo retorno das águas
A bomba
ficou esquecida e certamente ninguém vai pensar em resgatá-la, pois, para ela
ser encontrada, o nível das águas teria de voltar àquele ponto crítico nunca
visto antes.
O trator,
uma retroescavadeira de grande porte, foi resgatado depois de um habilidoso
trabalho dos sertanejos, contando com o auxílio de um poderoso trator de
esteira para arrastar a máquina de dentro do lamaçal e da água, pois estava
submerso com cerca de 1,5m de água sobre o teto.
O Gargalheiras enchendo o açude (fotografia Ivan Russo) |
Nos dias
seguintes, a cidade se pôs na espera por novos aguaceiros que pudessem aumentar
a lâmina d’água do gigante que comporta 44 milhões de m³. Só nessa primeira
lavada, o nível subiu para 12 metros de altura na parede da barragem. O
espetáculo da sangria do açude ocorre quando atinge 26,5 metros.
Por essas
contas, mais uma chuva e meia daquelas levaria nossa aldeia querida ao êxtase.
Água pra encher
Água pra reter
Água pra manchar
Água pra vazar a vida
Água
Aguaceiro
Aguadouro
Água que limpa o couro
Falam, nas falas modernas, de
segurança hídrica. Na verdade, a água que cai do céu benze o solo e a vida do
sertão. Ela vem como o complemento do nosso espírito sertanejo, como coisa de
Deus, recebida como um dom de renovar a vida, de garantir fartura nas
colheitas, na pesca e nos rebanhos gordos, de reconstruir o legado dos nossos
antepassados no trato da natureza como fonte de subsistência e de riqueza.
Na verdade, é uma água santa que
abençoa e renova a nossa identidade. É uma profissão de fé.
Água de beber
Bica no quintal
Sede de viver tudo
Que o tempo parava
E a meninada
Respirava o vento
Tinha sabiá, tinha laranjeira
Tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
Trechos de:
Planeta água (Guilherme Arantes)
Água (Djavan)
Fazenda (Nelson Ângelo)
Gostei muito! Mais um texto saboroso!
ResponderExcluirObrigado, meu caro. A água é um dos fulcros da vida lá de onde vim.
ExcluirOlá Heraldo,
ResponderExcluirUm texto belo como só pode ser vindo de uma Bic poeta, porém mesquinha, pois deveria escrever todos os dias, todos os assuntos e todas as notícias. E nos encantar sempre.
A chuva é milagre, gotas molhadas caindo de um céu sequinho de algodão doce. E nesse sertão embolado dos Guimarães Rosa mineiros até os de Heraldo do Acari, ela é dádiva de Deu. Que,talvez, cansado de tanta esturricância, troca a previsão. de lugar. Mas uma parte esquecida fica por aqui. E alaga e estraga e mata.
Brasilzão grande de grandes dimensões e diferenças.
Da conversa pós prandial de masculinidades feridas, do açude morto, do chuvisco na janela, da secura do chão da pele e dos olhos, por isso tudo, lhe sou grata. Pelo texto, pelo sertão, pelas chuvas...e pela Bic.
Até mais, muitos.
Ana,
ExcluirA Bic é apenas uma companheira de observações, parceira leal que enxerga o mundo como eu. Quem me dera ter assunto para todos os dias!
A chuva cai como milagre sobre nossos rincões. Talvez a diferença é que nós, matutos, ainda não nos urbanizamos para entupir bueiros e limpar a rua.
Hoje, faltei ao compromisso pandrial e fui cobrado - amanhã não levarei falta. A masculinidade colocada em xeque só deverá aparecer dia 3, ao fim das férias+núpcias e não será poupada. O resto da paisagem segue em seu lugar, item por item. E a Bic já está deitada agora, sem querer nada com a vida. Até muito mais!
O excelente Escritor Sr. HERALDO PALMEIRA, em "AGUACEIRO", nos descreve a alegria das Chuvas enchedoras de Açudes/Reservatórios, Lençol Freático, trazedora de FERTILIDADE, especialmente depois de uma grande Seca, em nosso Polígono das Secas.
ResponderExcluirDeveríamos irrigar mais aquela Região Nordeste, berço e alicerce da criação desse Brasilzão de quase 9 Milhões de Km2, herança do braço forte de nossos Pais Portugueses.
Parabéns e um Abração.
Flávio,
ExcluirEsse Polígono das Secas é um território extremamente fértil quando há água. É impressionante a mudança que testemunhamos. Ao menor sinal de chuva, o chão estorricado fica verde, como se houvesse um encanto guardado pela natureza - e há mesmo, a fertilidade!
Como você bem antevê, havendo irrigação teremos um oásis! Obrigado, abração.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirMinhas raízes estão na Mata e não no Sertão mas sempre que a sua BIC descreve assim tão belamente o Nordeste me sinto igualzinho ao “minino” do último verso da última canção: “e na despedida, tios na varanda, jipe na estrada e o coração lá....”
Porém nas entrelinhas do seu post, no erro de milhares de quilômetros da moça do tempo, na alegria de Canidé versus a dor das tragédias provocadas pelos aguaceiros alhures, leio um lembrete. Hoje depois de ter modificado nosso ambiente de maneira jamais vista no passado, de ter perturbado a maquinaria do clima e prejudicado o equilíbrio ecológico, nós e nossos mais de sete bilhões de colegas bichos homens somos uma força geofísica de alcance planetário, rumando a passos largos em direção à catástrofe ambiental.
Em Canidé, em São Paulo, nas Gerais , na China, na Austrália, na Amazônia, no deserto, nas praias, nas montanhas, de norte a sul, de leste a oeste, compartilhamos um mesmo endereço: a vasta Terra. Onde, pelo andar da carruagem, um dia as crianças não poderão mais respirar o vento, nem sentir o cheiro dos pés de laranja, nem comer aquelas mangas rosa colhidas do pé ainda quentes do sol da manhã.
Abração
Caríssimo,
ExcluirAinda bem que, em alguns pequenos e poucos lugares, ainda podemos festejar a chuva não como dança de índio, não como força destruidora, apenas como sopro divino. É o que conta a velha BiC Cristal azul, apesar do lembrete claro de que esses oásis estão sendo sumidos por nós.
Para meu orgulho, Acari é um desses lugares-oásis - talvez por coincidência, tem título duplo de "A cidade mais limpa do Brasil", sem bueiros entupidos, sem intenção de sabedoria e modernidades maiores do que as do Criador.
Tá difícil, eu sei. Até as mangas-rosas de hoje, quando aparecem, são tão fakes quanto as news. Ou trouxas que receberam o apelido da fruta e apenas esfumaçam o juízo por breves momentos, sem passar nem perto do sabor e perfume das mangas maduras, no pé.
Por fim, para não deixar dúvida, o Canindé do meu aguaceiro é o Francisco querido, sacristão-fotógrafo de Acari, meu primo. Faz tempo que não vou ao Canindé do Francisco santo padroeiro, do Ceará. Onde a vida selou um compromisso meu com a BiC Cristal azul, em 1968. Essa é uma outra história que, um dia, talvez, eu conte. Teve até um jipe na estrada! Abração.